quarta-feira, 26 de julho de 2017

Dona Elvira

Não sei onde é que ele foi buscar o vezo de fura-bolos. Mas tinha-o. Nem sei onde é que foi desencantar o apelido de Guinemer.
Um dia previu a falência dos moleiros milenares, que usavam a mó alveira para fazer farinha. E construiu a moagem, movida a gasóleo, para a farinha não faltar. Depois a farinha começou a vir de longe, em sacos, e ele foi para a África.
Dona Elvira estava casada com ele, e todos os dias subia a ladeira da Sobreposta para ir dar escola a Casteição. Ao fim da tarde descia e regressava a casa.
Quando o Guinemer partiu para a África, foi com ele. Até se saber mais tarde que acabou debaixo dum tractor, que um preto fez empinar e cambulhou.
A Dona Elvira só voltou na ponte aérea de 75, uma coisa que nunca aceitou bem.

terça-feira, 25 de julho de 2017

Curtos

Outono

Caem as folhas. Devagar. Aplicadas. Mas isso nem é o pior. Caem, também, os livros dos amigos na caixa do correio.
Trazem um abraço, às vezes beijos, e mesmo algum (sim, nunca fiando) protesto de amizade. Depois, pelas entrelinhas (falo ainda da dedicatória), a lembrança de quão agradável leitor vou ser.
Gosto do Outono. Mas não assim. Para ler os amigos, roubo no cinema, roubo no sono, roubo na preguiça. Chego à Primavera lido mas definhado. Houve momentos de suave aperto, de doce amargura. Mas pouco ri, muito pouco, não é mal lembrá-lo.
Os amigos não têm piedade. E, hão-de ver, para o ano voltarão, os sacanas, como se nada tivessem conseguido.
Fernando Venâncio

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Em boa hora

Há muitos anos, no Porto, fiz trabalho voluntário no armazém do Banco Alimentar, ali a Perafita. Ainda acreditava em gambozinos, pus-me a jeito.
O armazém recebia camiões de latas (tomate, frutas e leguminosas) que chegavam de Alcobaça. E sempre que uma lata era maltratada na cadeia de enchimento, acabava rejeitada.
A empresa disponibilizava todo esse material, que lhe aligeirava os impostos. Por isso o levavam a Perafita.
Logo à entrada do grande portão do hangar havia o Tarrafal. Era um espaço murado de alta rede, onde iam parar estes e outros donativos. Que só eram postos à disposição das instituições consumidoras quando eram libertados pelo responsável do Tarrafal.
Encostadas à altíssima parede, empilhavam-se paletes de embalagens que aguardavam a triagem. Mas numa manhã, um dia...
Não sei donde me chegou a inspiração. Parei o trabalho, saí do Tarrafal, e fui ter com a máquina de café que estava lá ao fundo, num desvão.
A certa altura ouviu-se um terramoto, um sobressalto, o que foi, o que não foi... Era uma rima de paletes de 500 kgs que tinha desabado, mesmo no sítio em que eu estava a trabalhar.
Olhei para aquilo, falei com o Vasco António, e nunca mais entrei no Tarrafal. Ofereci-me como leitor, na sonora de São Lázaro. Em boa hora!

domingo, 23 de julho de 2017

O quê?

Se não existisse música e pintura e poesia, a arte para que servia?
O que é que um homem fazia?

quinta-feira, 20 de julho de 2017

País?! O caralho! Uma seita!!!

Toda a gente sabe o que nunca foi segredo: o PPD estaria hoje a dormir sossegado nos braços do fascismo, se a história lhe não tivesse caído, de escantilhão, no colo.
Mas caiu. E o PPD adaptou-se, ajustou-se, aggiornou-se, sempre à medida das necessidades. Veja-se o caso de Manuel Pinto.
Chegou a ter previsto o Finalmente Hotel, no terreiro das freiras de Trancoso. Mas os fundos para construir o hotel foram parar a outro lado, e o Pinto desistiu. Chamou o Cavaco e abriu o lar dos velhos no Reboleiro.
Agora rebenta a bronca: o genro dele, advogado mestre de vigaristas, fingiu a morte num acidente de jeep, fingiu uma cremação inexistente e fugiu para o Brasil. O que vem a seguir está na telenovela em marcha. Basta ir vendo os média da corda, porque nem é preciso  imaginação.

terça-feira, 18 de julho de 2017

Lições dos bichos

Um adulto na Polónia

As cegonhas brancas de S. Pedro já partiram: a da torre sineira, a dos freixos altos, todas. Comeram os sapos-conchos que havia nas redondezas, deram carta de alforria aos filhos e lá foram. Até ao ano que vem.
Os casais são irrepreensivelmente fiéis, uma vez acasalados nunca mais se separam.
Contava-se mesmo o caso, numa aldeia lá para a Europa de Leste, em que uma fêmea se feriu numa asa, impedindo-a de voar. Quando lhes chegou o tempo, o macho partiu e a fêmea ficou na aldeia.
Os camponeses protegeram-na durante o longo inverno, e ela esperou até que o macho voltasse. Fizeram criação e ele voltou a partir. E ela voltou a ficar.
Por certo hoje já nenhum deles existe. Ficou a lenda, o exemplo, a edificação.

segunda-feira, 17 de julho de 2017

Máquina de fazer espanhóis

Vou à estação de comboios esperar alguém que chega. E lá acaba por chegar, com uma hora e tal de atraso. Volto a casa a altas horas.
A solução aqui é tornar-nos espanhóis. Basta perguntar ao Hugo-Mãe como é que funciona a máquina de os fazer. Porque isto assim não é vida que chegue a netos!

domingo, 16 de julho de 2017

Texto curto

Maré-vaza

Gostava muito dele e ainda gosto, que havemos de fazer do coração. Durante um ano foi quem me matou a fome. Saíra um dia do Porto Brandão e fez-se um homem, nascido de pescadores.
Hoje trabalha as mil figuras que há na pedra, habita num palacete com robínias muito antigas, navega num iate às costas do Brasil. Sou o primeiro marítimo da família que não sai para o mar a ver se mata a fome. 
Eu gostava muito dele e ainda gosto. Mas pica-me no olfacto um travo de maré-vaza, quando vou ali ao Parque dos Poetas.

Primavera indecisa

Tenho à espera a Feira Cabisbaixa atrás dum microfone, a Feira do O'Neill, a feira de nós todos, que um cego encomendou à biblioteca sonora. Mas encontro no jardim de São Lázaro a Primavera a hesitar.
As camélias já andam pelo chão e a Primavera a hesitar, incham os botões dos rododendros e a Primavera a hesitar, os rebentos das tílias a explodir e a Primavera a hesitar, os velhos da sueca, são quinhentos, a improvisar a banca e a Primavera a hesitar, e a mimosa das coxas tentadoras a faltar-me no passeio, o riso quotidiano, bons-dias mimosinha, e os dentitos de marfim, o drapejar da pestana, o peito da mimosa a faltar-me nos olhos, as formas arredondadas a morder-me no ventre e os pombos num badanal, a mulher desdentada a pedir-me um cigarro, a levar dois para a amiga encostada na esquina, a solicitar-me o favor dum lume, a mesura brejeira a agradecer-me, a aventurar se gosto de ir ao quarto e eu a dizer-lhe que não, um trunfo a cair na mesa a esquartejar a manilha e os pombos amotinados, e a mimosa que lá vem dobrando a esquina num riso de Gioconda a tentar-me de longe, os pés que já não comando na direcção dela, um instinto a farejá-la, a correr-lhe a garupa,o flanco acolchoado, o lago misterioso, quanto vale o teu riso mimosinha, a Primavera ainda a hesitar e eu a deslizar-lhe a nota na palma acetinada, um roçagar de leve, uma aflição de seda...
E vou-me então à Feira Cabisbaixa, à Feira do O´Neill, à feira de nós todos, que um cego precisa dela, e a Primavera enfim se decidiu.

[A publicar]

sábado, 15 de julho de 2017

O Garré, isso o que é?!

Assucede! Venho para casa tarde e a más horas, e oiço o pivot da rádio 2 falar do festival do Garré, não sei que mais. Do Garré?! Isso o que é?!
Isto após consumir horas dum tempo precioso a ouvir falar dumas coisas a que chamam literatura, e que não passam da telenovela que o Correio da Manha publica em fascículos há um mês. Basta juntá-los, resumi-los, dar-lhes um fio narrativo dito trágico, e apresentá-los como coisa nova: um casalinho, a menina, a droga, um criminoso, a polícia, a condenação.
Merda para a nossa vida, digo eu!

sexta-feira, 14 de julho de 2017

Só dele?!

Titanic
Há-de parecer que ainda tenho acções na companhia de Southampton mas não é verdade. Apenas me confunde que uma bactéria nova dê cabo do gigante em menos dum fósforo.
O navio, mordido por um iceberg, dormia há 73 anos no Atlântico Norte, a 3,8 kms de profundidade, com pouca luz e elevada pressão.
Mas uma bactéria nova, a halomonas titanicae, ameaça dar conta dele numa dúzia de anos. Só dele?!

quinta-feira, 13 de julho de 2017

O feno e os potros de Yorkshire

Escuta, vou falar-te do rapazito que o Álvaro de Campos tanto julgou amar. Era inglês, naturalmente, e tinha dezasseis ou dezassete anos quando o encontrou em Londres, numas férias do último ano de Glasgow. Frederik era o quinto filho dum pastor de almas de York, estudava arte dramática, e levava uma vida que não se poderia dizer fácil, pois a mesada do pai, quando havia necessidade de meias-solas nos sapatos, obrigava a apertar o cinto. Álvaro, sentindo que o rapaz estava em apuros, convidava-o frequentemente para jantar. Mas não era apenas essa a razão.
Como dispunham de tempo, passavam algumas tardes estendidos na relva de Hampstead, mas não iam além de algumas carícias, com receio de serem surpreendidos. Freddie falava do feno e dos potros de Yorkshire como se neles começasse o paraíso, e o outro ia-lhe revelando alguns segredos dos versos de Shakespeare e de Walt Whitman; um dia falou-lhe mesmo duns assomos de sensualidade que, nos sombrios corredores do liceu, havia sentido por uma espécie de rapariga, antes de ir para Glasgow; mas amar alguém assim era a primeira vez que lhe acontecia, acabou por dizer numa voz escura, quase espessa, que não era a sua. Ao despedir-se, Freddie pediu-lhe que passasse pelo seu quarto na manhã seguinte. Apesar da casa estar deserta a essas horas, o medo quase impedia que o amor lhe baixasse ao corpo. Foi numa dessas manhãs, quando o rapazito começou a recitar Shall I compare thee to a summer's day?/Thou art more lovely and more temperate..., que o Álvaro lhe mostrou como deveriam ler-se versos de Shakespeare, ou de quem quer que fossem: com a naturalidade que tem o correr da água e o ritmo da fala. Isso Frederik nunca mais o esqueceria.
Não me perguntes como soube eu tudo isto, seria muito indiscreto da tua parte.

[Eugénio de Andrade, O rapazito de York, pág. 408]

quarta-feira, 12 de julho de 2017

Rai de país!

Do DN de ontem: "Vocês têm sorte, que a lei não permite. Senão seriam todos executados". "Vamos acabar com vocês, com a vossa raça e com o vosso bairro de merda". "Vocês africanos têm de morrer. Deviam ser todos esterilizados".
A PSP actua como se vê, nos bairros cheios de pretos. País fora, em freguesias e pequenos municípios, o feudo é da GNR, na aplicação de coimas aos condutores indígenas.
A arbitrariedade é a mesma, porque a função é só uma: extorquir coimas aos cidadãos, com razão e sem nenhuma. Fazem currículo.
É um terror que atemoriza muitos. O país perde, não pouco!

terça-feira, 11 de julho de 2017

Spassiba, Irina!

Num velho arranha-céus colonial morava Irina, uma mulher muito branca que dava aulas na universidade. Ao lado vivia Ngo Diem, um velho vietnamita que cozia os feijõezitos de soja num fogareiro a petróleo. Portugueses, por junto, não eram mais de cinquenta. E tudo o resto eram negros, herdeiros da escravaria.
Eu não me sentia responsável por nada disso, e as mulheres negras não me diziam nada. Mas o comissário proibia as visitas de portugas, por razões de segurança. Um dia resolvi forçar a nota e visitar Irina.
Ela ofereceu-me uma cassete do Vladimir Visotsky, copiada do gravador duma búlgara que morava no patamar de baixo. Era uma voz muito rude e muito funda, duma garganta arranhada por fumo de cigarros e vodka de batata.
Sem perceber uma palavra da música, passei muito tempo a ouvi-la. Tempos depois sumiu-se-me a cassete, alguém a terá levado. Mas não levaram as canções do Visotsky.

segunda-feira, 10 de julho de 2017

Despojos

 
A nossa triste história está escrita. Nós é que não queremos lê-la!
 
" (...) Os homens moviam-se sem necessidade de ordens, os transmissões montavam os rádios, os condutores preparavam os guinchos de reboque, os enfermeiros tentavam retirar os corpos do interior da torre blindada.
Puxaram o corpo meio esmagado do furriel do esquadrão de cavalaria a escorrer sangue e espuma da boca, desceram-no desarticulado da velha lata para os braços do Bento que pegou nele ao colo como a um menino, a cara de criança em corpo de gigante a enfrentar do outro a face branca da morte, sem acreditar que já não estivesse vivo, deitou-o docemente à sombra dum arbusto compondo-lhe os membros, voltou pelo mesmo caminho na sua passada de urso cansado com a espingarda, que parecia um brinquedo, pendurada às costas, à espera de o mandarem fazer mais algum serviço.
- O apontador da metralhadora também está morto, esmagado pela torre que saiu dos encaixes. O condutor é que não sei, não se pode passar para o seu lugar - explicou um dos que tentava enfiar-se dentro da Fox. - Pelo menos os pés devem estar desfeitos.
- Para já é preciso tirar do buraco esse caixão com rodas! (...)
O pequeno alentejano passou por cima dos restos de carne em massa e do sangue fresco misturado com óleo engolindo os vómitos, agachou-se para não bater com a cabeça nos ferros amolgados, espremeu-se contra os restos do metralhador e do furriel (...)."
 
"(...) Eu sou administrador do concelho e presidente da Câmara, este é o meu secretário. O assunto que nos traz é, digamos, delicado, grave. É que soldados, julgo que da sua companhia, cometeram desacatos na cidade, faltaram ao mais elementar respeito que todos os portugueses devem à nossa História... (...)
- Penduraram, veja só, um garrafão de vinho vazio na mão da estátua do Camões que se encontra na marginal lendo os Lusíadas virado para a Índia, e colocaram um chapéu de palha roto na cabeça do Infante D. Henrique, que está no Largo da Alfândega! Eu, como autoridade administrativa venho exigir em nome do povo da cidade (...)".

domingo, 9 de julho de 2017

Torre de Moncorvo

O destino era a aldeia do Larinho, onde um editor ia apresentar uma nova edição. Porque nem tudo em Portugal acontece na cidade ou a 50 Kms do mar. Há quem resista, por uma qualquer razão. Foi assim que eu fui parar a Torre de Moncorvo. 
A igreja matriz é quase uma sé. É certo que as talhas barrocas não são fulgurantes, e são de barro pintado. Mas há para lá do transepto um cadeiral de bispos que dá que pensar.
Ali ao lado, o museu do ferro da serra do Reboredo foi uma surpresa. Lembro-me muito bem, numa incarnação há muitos anos, de quando fui o capitão vermelho e transportei, de jeep ou de Renault 4, um gabinete inteiro de técnicos, (engenheiros, topógrafos, desenhadores, porta-miras e outras gentes), que tinham chegado de África e era preciso pôr a trabalhar. Tempos de brasa!
O plano seria retomar a exploração do ferro da serra do Reboredo e transportá-lo para Sines, onde uma siderurgia se ocuparia dele. O transporte previa-se de comboio, sendo preciso ligar a estação do Pocinho a Vila Franca das Naves.
Em Sines ainda deve haver um terminal ferroviário vastíssimo, por certo inacabado. A mim só me competia andar abaixo e acima, ao serviço daquela gente toda.
Certa vez trazia um engenheiro timorato, sentado no R 4 no lugar do pendura. Saímos do Pocinho e íamos para Lisboa. Mas ao chegar a Celorico da Beira o homem foi à estação, comprou um bilhete e foi de comboio para Lisboa.
Tranquilamente, eu continuei sem pendura no velho Renault 4.

sábado, 8 de julho de 2017

Tancos, há meio século

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O Pereira era açoreano, e treinava auto-rotações com um aluno num taxiway secundário, como manobra de emergência. A geringonça punha o focinho no ar, como um guarda-chuva que roda por si, e vinha descendo controladamente até chegar ao chão. Em frente não havia visibilidade.
Foi então que o Brito, sempre cheio de pressa, precisou de descolar na direcção contrária. Saiu a rapar, e se a torre lhe interditou a manobra, não ficou notícia disso. O Pereira acabou por desabar mesmo em cima do Brito.
Nunca vi um ilhéu transformado num torresmo com tamanha eficácia. Era um negro pedaço minúsculo, e um ferimento de alma que se não descreve. Terá sido entregue à mãe numa urna fechada, e ainda bem.

sexta-feira, 7 de julho de 2017

É uma alegria!

Os agravos, para não dizer as agressões, os roubos, os desfalques de património, praticados contra os militares e a Pátria nas últimas décadas, não têm descrição.
Pagaremos por isso um alto preço, todos. Ricos e pobres!

quinta-feira, 6 de julho de 2017

Só mais uma, do Lobo Antunes!

Os pobrezinhos
Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram os pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida.
Os pobres, além de serem obviamente pobres, deviam possuir outras características imprescindíveis: irem à missa, baptizarem os filhos, não andarem bêbados, e sobretudo manterem-se orgulhosamente fiéis à tia a quem pertenciam. Parece que ainda estou a ver um homem de sumptuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba, responder, ofendido e soberbo, a uma prima distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria.
- Eu não sou o seu pobre; eu sou o pobre da menina Teresinha.
O plural de pobre não era pobres. O plural de pobre era "esta gente". No Natal e na Páscoa as tias reuniam-se em bando, armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e outras delícias equivalentes, e deslocavam-se piedosamente ao sítio em que os seus animais domésticos habitavam, isto é, um bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas, junto à estrada militar (...). E as minhas tias preveniam-me logo, enxotando-os com as costas da mão:
- Não se chegue muito, que esta gente tem piolhos. (...)
Os filhos dos pobres definiam-se por não irem à escola, serem magrinhos e morrerem muito. Ao perguntar as razões destas características insólitas foi-me dito com um encolher de ombros.
- O que é que o menino quer, esta gente é assim. (...)
Ao amor dos pobres presidiam duas criaturas do oratório da minha avó, uma em barro e outra em fotografia, que eram o padre Cruz e a Sãozinha, as quais dirigiam a caridade sob um crucifixo de mogno. (...)
Na minha ideia o padre Cruz e a Sãozinha eram casados. Tanto mais que no Almanaque da Sãozinha se narravam, em comunhão de bens, os milagres de ambos.
Creio que foi por essa época que principiei a olhar, com afecto crescente, uma gravura poeirenta atirada para o sótão, que mostrava uma jubilosa multidão de pobres em torno da guilhotina onde cortavam a cabeça aos reis."

quarta-feira, 5 de julho de 2017

Atentados


D. Carlos
Príncipe Luís Filipe
No dia 1 de Fevereiro de 1908, a las cinco de la tarde, o bragança rei D. Carlos e o príncipe Luís Filipe foram vindimados no Terreiro do Paço pelo Buíça e o Costa, dois membros da Carbonária. Os adiantamentos à Casa Real e o ultimato inglês a propósito do mapa cor-de-rosa foram o enquadramento da coisa.
A 28 de Junho de 1914, em Serajevo, capital da Bósnia, morreu o arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do império austro-húngaro, e a mulher Sofia de Hoenberg. O atentado foi levado a cabo por Gavrilo Prinzip, e tinha como objectivo a criação da Grande Sérvia.
Foi neste quadro que deflagrou a 1ª guerra mundial, que deu como fruto 15 milhões de mortos.
Não se pretende aqui estabelecer qualquer relação entre uma coisa e outra. Apenas foi assim.

terça-feira, 4 de julho de 2017

Cá se fazem!

Há muitos anos, quando abriram a estrada nova, que do Largo seguia para Norte, para a Senhora da Cabeça, para Penedono e Lamego, vieram aí para a aldeia uns técnicos das obras. À falta de melhor chamaram-lhe fiscais. E um deles terá lançado os olhos às moças que punham roupa a corar nas lajas da fontana.
Uma delas era a Fátima, da numerosa ninhada do Vasco das Neves, a outra era filha do Zé Barbeiro e chamava-se Lurdes.
Que beberagem deram elas ao fiscal não o sabemos hoje, e já cá não anda a Gracinda do Casimiro, esse Fernão Lopes dos tempos medievais. Sabemos só que o pobre do fiscal morreu a expelir da boca uns vermes esquisitos. E ontem foi a enterrar a Fátima do Vasco.
Tinha um bisneto a cargo, um rapazola duns dezoito anos, ninguém sabe quem cuidava mais de quem; se o Miguel da bisavó, se a bisavó do Miguel. Davam a mão um ao outro.
A mãe do rapazola foi levada pela heroína, uma coisa que entrou aí no mercado para salvação dos pobres.
Eu não sei o que vai ser da vida do Miguel, nem lho pude perguntar. Vinha num comboio que chegou atrasado ao funeral, e eu tinha mais que fazer.

segunda-feira, 3 de julho de 2017

Parece!

O mundo move-se (parece!) à medida da capacidade de armazenamento do iPhone. Começou em 4,8 gigas e já vai em 256.

O uso da net pode ter o mesmo efeito que o álcool
Os jovens não são educados para a empatia e não estão preparados para a resiliência, para lidar com a adversidade. Estão numa idade em que a importância do grupo se sobrepõe à família. Esse trabalho tem de ser feito numa idade precoce. (...)
O que explica essa falta de noção?
O efeito de desinibição que estas tecnologias têm sobre muitas pessoas é um bocado como o álcool. Depois de beber uns copos, as pessoas começam a fazer e a dizer coisas que noutras circunstâncias não diriam ou fariam. Para algumas pessoas, a utilização da internet tem o mesmo efeito que o álcool. (...)
[in DN de 29/6/17]

domingo, 2 de julho de 2017

O que é, e foi, essa merda do SIRESP?

Escrito por uma dessas jornalistas das que se agora usam (Valentina Marcelino), o DN de ontem dedica duas páginas confusas ao Siresp. E a coisa é, nem mais nem menos, do que uma rede de comunicações de emergência, que deverá funcionar em situações anormais. A prática, no entanto, mostra que há circunstâncias em que o telemóvel dum agente é mais eficaz do que essa merda. Porque o território ficou cheio de buracos negros, onde a cobertura é nula.
O já esquecido ministro Daniel Sanches, dos saudosos tempos do Cavaco, do BPN e quejandos, recebeu então uma única função: assinar o decreto constitutivo da primeira versão. Depois disso obnubilou-se e não mais se ouviu falar dele. Agora as coisas estoiram, é claro!

sábado, 1 de julho de 2017

Formalistas

O papel do formalismo na revolução de 1917
Enquanto os bolcheviques faziam a
revolução, os formalistas russos contavam
sílabas aos versos e procuravam
o narrador nos romances do século
dezanove. Não sei se as sílabas assobiavam
como as balas na rua, ou se o narrador
subia à tribuna do capítulo para gritar
a estranheza que, segundo os formalistas,
distinguia o discurso literário do outro. Então,
gritavam os revolucionários, há uma
distinção de classe entre o romance
e o mundo? Nós, que somos reais, e andamos
aqui aos tiros para nos libertarmos
da reacção, não passamos de criaturas
banais ao lado desses heróis narrativos
que só são diferentes porque nasceram
da cabeça dum escritor? Vamos mas é
pôr ordem nisto: nada de separar
literatura e revolução. Está
bem, disseram os formalistas. Vamos escrever
com fogo, pólvora, baionetas - fuzilando
a métrica, decapitando a estrofe, cortando
o narrador da sua realidade concreta. E deram
o argumento final ao citar assim Shakespeare
quando falou em "palavras, palavras, palavras",
contra os que só usavam a retórica, ignorando
a realidade. E concluíram: "Se em vez disso
tivesse dito "batatas, batatas, batatas", não teria
morto a fome a ninguém. O argumento
não convenceu os inimigos do formalismo,
e a revolução continuou, com uns a morrerem
por falta de batatas e outros a serem mortos
por se recusarem a engolir as palavras."