domingo, 16 de julho de 2017

Texto curto

Maré-vaza

Gostava muito dele e ainda gosto, que havemos de fazer do coração. Durante um ano foi quem me matou a fome. Saíra um dia do Porto Brandão e fez-se um homem, nascido de pescadores.
Hoje trabalha as mil figuras que há na pedra, habita num palacete com robínias muito antigas, navega num iate às costas do Brasil. Sou o primeiro marítimo da família que não sai para o mar a ver se mata a fome. 
Eu gostava muito dele e ainda gosto. Mas pica-me no olfacto um travo de maré-vaza, quando vou ali ao Parque dos Poetas.

Primavera indecisa

Tenho à espera a Feira Cabisbaixa atrás dum microfone, a Feira do O'Neill, a feira de nós todos, que um cego encomendou à biblioteca sonora. Mas encontro no jardim de São Lázaro a Primavera a hesitar.
As camélias já andam pelo chão e a Primavera a hesitar, incham os botões dos rododendros e a Primavera a hesitar, os rebentos das tílias a explodir e a Primavera a hesitar, os velhos da sueca, são quinhentos, a improvisar a banca e a Primavera a hesitar, e a mimosa das coxas tentadoras a faltar-me no passeio, o riso quotidiano, bons-dias mimosinha, e os dentitos de marfim, o drapejar da pestana, o peito da mimosa a faltar-me nos olhos, as formas arredondadas a morder-me no ventre e os pombos num badanal, a mulher desdentada a pedir-me um cigarro, a levar dois para a amiga encostada na esquina, a solicitar-me o favor dum lume, a mesura brejeira a agradecer-me, a aventurar se gosto de ir ao quarto e eu a dizer-lhe que não, um trunfo a cair na mesa a esquartejar a manilha e os pombos amotinados, e a mimosa que lá vem dobrando a esquina num riso de Gioconda a tentar-me de longe, os pés que já não comando na direcção dela, um instinto a farejá-la, a correr-lhe a garupa,o flanco acolchoado, o lago misterioso, quanto vale o teu riso mimosinha, a Primavera ainda a hesitar e eu a deslizar-lhe a nota na palma acetinada, um roçagar de leve, uma aflição de seda...
E vou-me então à Feira Cabisbaixa, à Feira do O´Neill, à feira de nós todos, que um cego precisa dela, e a Primavera enfim se decidiu.

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