domingo, 28 de fevereiro de 2010

Relíquia antiga - XI

Jubiloso por se ver chegado a casa, o dionísio deputado meteu a chave à porta, ainda mal refeito do susto que apanhara na galeria vaca sagrada. Os embates parlamentares tinham-lhe deixado a cabeça em água, de modo que resolveu passar por lá, em busca dum alívio para os neurónios. Havia uma instalação dum artista jovem, estas coisas, por vezes, são desopilantes.
Avançou pela álea dos ulmeiros, em frente da escadaria majestosa, e foi tomando por desleixos do jardineiro uns ramos velhos estendidos no chão, que ao fundo serviam de poleiro aos vultos negros dos melros. Logo, porém, se desenganou, ao tropeçar numa pernada de latão fosco, ali caída no saibro da alameda. Fazia parte da instalação.
Mas o pior havia de surgir, quando deu de caras com o burburinho que fervia à entrada do recinto. Uma sexagenária trotava no empedrado, alheia aos alçapões da arte contemporânea, quando embateu no feixe de rústicas varas de salgueiro, espécie de micado gigante, ali instalado para emoção estética dos visitantes. A pobre mulher caíra desamparada e tinha perdido os sentidos, ia ali um alvoroço. Alguém reclamava uma ambulância aos gritos, enquanto um jovem, com ar de crítico de arte, sustentava que o vulto da criatura fazia parte da instalação, sem ele a obra não era mais que uma capela imperfeita.
E assim foi que o deputado dionísio aproveitou o alvoroço para se pôr ao fresco, agitações absurdas era o que menos lhe faltava. Ainda não sabia que o mais grave estava para vir.
Entreabriu a porta, a sonhar com um banho que haveria de resgatar-lhe as ideias, mas logo deparou com o vestíbulo da entrada estranhamente vazio. E mais despojado havia de encontrar o restante da casa, onde apenas fraldas de camisas boiavam como náufragos aflitos, e peúgas desirmanadas, e fatos em desespero à procura dum cabide. No sítio do toucador, onde fora o quarto de dormir, estava de plantão uma ríspida carta da mulher, a avisá-lo de que mudara o que era dela, para uma casa onde pudesse finalmente viver em paz. E de que já dera baixa do apartamento na agência imobiliária.
O dionísio deputado sentiu-se desabar, à medida que foi escorregando rente à parede, parecia mesmo um relógio do salvador dalí. Convocou, em desespero, uns restos de auto-estima, e acabou a noite a dormir no hotel.
Voltou no dia seguinte, a reunir despojos da hecatombe. E auscultava o silêncio da oca habitação, quando à porta a campainha veio sobressaltá-lo. Era uma senhora, trazida pela agência, armada de fitas métricas e blocos de anotações. Achara há dias despejado o apartamento familiar, quando voltou dum congresso de médicos em malta.
Tenteando, foram ambos vencendo os embaraços. E partiram dali à procura de almoço.
[ibidem]

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Depois de uma tarde de pavor...

... a luz divina de Sorolla.

Queixamo-nos de quê?!

O produto... e os modos de o produzir.
O lucro tem destinos e volumes que as imagens não mostram.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

O leito das ribeiras

A tragédia da ilha da Madeira presenteou Alberto João Jardim com um balão de oxigénio político suplementar. E até os madeirenses, aqueles que não morreram, encontram nela um bote salva-vidas. Porque o seu improvável governante já deu ordens para se abaixarem os leitos das ribeiras.
Portugal, o achincalhado rectângulo onde cubanos vivem, é o mais prejudicado. Juntou mais uma às tragédias conhecidas.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Deserção

Mais parece que foi desta que o sol desertou. De vez!

Fado corrido

Vão estes, aqueles vêm, à procura dum destino. Na falta dele, inverteram a marcha.

O que a casa gasta!

Estes dois hectares foram o campo da feira, durante séculos. Até que um dia chegou a modernidade, e o país acabou inundado pelos equívocos peregrinos do progresso.
O campo foi requalificado. Quer dizer betonizado, impermeabilizado, coberto a pedra e cimento. Transformado num deserto pós-moderno, onde nem falta um exótico passeio da fama.

Felizmente nem o lugar é uma ilha de encostas abruptas, nem aqui passam ribeiras violentadas. E ninguém se teme de hecatombes, já que o Távora, embora nasça perto, é um sossegado riozito. Mas são iguais o erro e a insânia, e a velha trampolinice.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Relíquia antiga - X

Ainda mandei um e-mail a avisar o pentágono, a ver se desvendava o pedigree do bicho. É que eu tinha perfeita consciência do que podia acontecer, sabia muito bem que tipo de fera estava ali sobre a mesa. Vira-a em acção nos desertos da líbia e nos planaltos da balcânia, em noitadas febris diante da televisão, quando a guerra era uma aventura de joistique, à hora do jantar. Mas nunca imaginei uma tal hecatombe, subida às proporções que esta havia de atingir.
Tudo começou quando resolvi instalar-me na vasta secretária do pai, para trabalhar à vontade. E, ao fim de um dia de aturado labor, tinha à minha frente uma réplica perfeita do abutre sombrio, o mais-que-perfeito demolidor de paisagens, saído dos laboratórios da américa para domesticar o mundo. Foi ao vê-lo que julgo ter afinal compreendido o que sente o coração dum general americano. Pois aquele gerador de escombros, exibindo um arsenal assustador enquanto piscava luzes de aviso, infundia um pavor misterioso, pintado assim da cor da morte dos teatros de operações da tartária.
O pior foi à noite, quando o pai chegou. Esticou o pescoço incrédulo para os destroços da secretária, enquanto a gravata distraída ia varrendo colas e limalhas, restos de tinta e rebites de plástico. Quando viu em ruínas a seda italiana, perdeu a compostura de corrector da bolsa. E logo ergueu, furibunda, a mão direita, desenhando no ar um gesto de catástrofe.
Assim tão explicitamente ameaçada, não tardou a fera a reagir. Já o silvo agudo das turbinas invade a sala inteira, já o rotor vigoroso distribui pelo ar estaladas de raiva, já a poderosa força ascensional a coloca no ar em posição de tiro. Um míssil inteligente enquadrou o agressor, e ali mesmo o reduziu a pó, no meio da fumarada dos gases tóxicos.
Foi logo a seguir que se ouviu desabar com estrondo a esquadra de santa bárbara, quando o chefe encerrou o expediente da noite e apareceu fardado na rua. Depois foi o passadiço do mercado de arroios, que a fera confundiu com uma ponte estratégica. À saraivada das bombas de neutrões não escapou um único bombeiro, vinham a correr apagar os incêndios e morreram crispados nos bicos das agulhetas, no meio da babilónia da pascoal de melo. Mesmo a trupe dos arrebentas, à porta do bar de alterne, acabou às postas na calçada, oportunamente grelhada a laser. O abutre sombrio tomou-lhes as sombras musculadas por uma tropa qualquer da infantaria de marinha sérvia. E só parou por falta de combustível, quando o comando estratégico lhe respondeu com o silêncio aos apelos febris de reabastecimento em voo.
O pentágono acabou a pedir-me um relatório circunstanciado, e eu exigi à nato a reconstrução do bairro. Lá em casa cortaram-me, aos gritos, a ligação à internet, e o avô decretou o embargo total aos mercados da américa. Com toda a razão. Mete a gente em casa estes toiros corridos, sem fazer ideia das manhas que trazem na cabeça.
[ibidem]

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Haiti: o país impossível

Com vénia ao dr. Luís Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal

Os lamentáveis sucessos decorrentes do terramoto de Port-au-Prince têm servido para dar a conhecer ao Mundo um país muito pobre e cheio de contradições. O Haiti é um país deslocado no espaço e no tempo. É um país de africanos longe de África, um país de pobres mesmo ao lado do império dos ricos. É um país onde os benefícios do progresso não chegaram, onde a esperança de vida à nascença não ultrapassa os 60 anos, e onde o futuro não é risonho para as populações jovens.
O Haiti fica situado na Ilha Hispaniola, de cujo território ocupa um terço, constituindo a parte restante a República Dominicana. Foi a esta ilha que Colombo aportou, em Dezembro de 1492, quando chegou às Índias Ocidentais. E foi aqui que, pela primeira vez, tomou contacto com os índios americanos que habitavam a ilha, os quais, passado pouco tempo, tinham desaparecido completamente.
Os haitianos são hoje 10 milhões, a viver num território do tamanho do Alentejo. Mas em 1950 eram 3 milhões, o que mostra bem o elevado crescimento populacional. O país tem a taxa de natalidade mais alta do hemisfério ocidental. 50% dos haitianos têm menos de 20 anos, e 50% deles são analfabetos. Existem ainda 2 milhões a viver fora do país, sobretudo na República Dominicana e nos EUA.
Nos séculos XVII e XVIII, o Haiti terá sido um país agricolamente rico (sobretudo em açúcar), e essa foi uma das razões que fez levar milhares de escravos negros para a ilha. Mas hoje o solo está esgotado, erodido e empobrecido pela desflorestação e pela agricultura intensiva. Uma escassa produção agrícola (café, manga) é insuficiente para alimentar a população. 40% do orçamento do Haiti é assegurado pela ajuda internacional. 1% dos haitianos mais ricos detêm 50% da riqueza. Este facto ilustra bem as contradições existentes.
Se tivesse ocorrido há 100 anos, a destruição de Port-au-Prince teria sido um processo irreversível. A selva voltaria a ocupar o lugar dos edifícios, tal como aconteceu nas cidades abandonadas dos Maias. E os haitianos estariam condenados a estiolar à míngua de recursos. Seria mais um exemplo de colapso social, à semelhança de tantos que se verificaram ao longo da história da Humanidade.
Mas neste tempo de globalização a tragédia entra nas nossas casas, e o mundo não pode ficar indiferente. Os países mais ricos, com os EUA à frente, vão, por isso, reconstruir o Haiti, e já se fala de um novo plano Marshall. A ajuda americana será acima de tudo concretizada por uma forte injecção de dólares, e a reconstrução será feita com materiais americanos. Servirá mesmo para ajudar a estimular a economia americana e para criar postos de trabalho. Mas aos americanos interessa sobretudo evitar a emigração em massa dos haitianos para os Estados Unidos.
O Haiti é hoje, claramente, um país com uma população acima da sua capacidade de carga, um forte candidato a uma ruptura iminente. A manter-se a actual taxa de natalidade, a sua população será de 20 milhões daqui a 50 anos. Ora o bom senso mostra que isso é uma impossibilidade económica e ecológica. Dá que pensar e revela a dimensão dum problema para o qual é difícil antever uma solução.
O futuro do Haiti é, pois, sombrio. Ajudar o país, como tem sido feito até agora, é uma solução transitória, e nada resolve a longo prazo. Porque a ferida fica aberta, e é errado pensar que constitui um problema só dos haitianos. Mais tarde ou mais cedo, as réplicas deste tremor de terra irão chegar ao mundo dos ricos, porque deste Haiti todos nós fazemos parte. Num mundo globalizado, não há colapsos parciais. E o eventual colapso do Haiti não será bom para ninguém. Quando chegar a hora, o mundo inteiro pagará a factura. Possivelmente mais cedo do que se imagina.

Insanidades - 3

Dados recentes atestam o que só deixa surpresa a cegos megalómanos: o tráfego da Portela, e dos outros aeroportos nacionais, sofreu um decréscimo acentuado no último ano. É esse o previsto resultado da emergência geral das finanças, das ondas recessivas da economia que seguramente não vão desaparecer, das errâncias ascendentes dos preços do petróleo, e dos apertões da vida, que fustigam milhões.
Insistir na construção dum novo aeroporto, como urgência nacional, nas circunstâncias presentes, mais que uma temeridade muito nossa, mais que uma teimosia aventureira, releva duma irresponsabilidade muito antiga.

Insanidades - 2

Aqui há uns anos, uns tantos militares fizeram o que tinham a fazer pelo país e voltaram ao quartel. Entregaram o poder na sua sede natural, que são as instituições dum regime democrático resultantes da escolha eleitoral, e ficaram calados. E olhados globalmente, têm sido desde então uma das poucas corporações profissionais cujo desempenho não faz corar de vergonha a pátria cabisbaixa.
Agora duas dúzias deles vêm à praça pública com um pronunciamento, em forma de carta aberta. Consideram aberrante que se chame casamento à união de duas pessoas do mesmo sexo, recentemente aprovada no parlamento. E reclamam que se faça um referendo, para esclarecer a questão.
Mais lhes valera manterem-se caladinhos. A um lado porque ninguém lhes reconhece credenciais específicas na definição dos cânones. A outro porque se lhes adivinha a intenção de contestar o facto, mais que a designação dele. E finalmente porque diversas matérias, bem mais graves e prementes, fustigam a Pátria e afligem o coração dos múltiplos patriotas.
Mais lhes valera manterem-se caladinhos, e não virem acirrar a insânia geral.

Insanidades - 1

Fernando Nobre possui, enquanto criador e dirigente da AMI, uma imagem sem mancha. E a sua inesperada candidatura à Presidência da República, vindo a verificar-se, suscita perplexidades. Cada um é para o que nasce, e dificilmente alguém o julgará predestinado para voos de presidente.
Assim à primeira vista, nem a Pátria tem razões para rejubilar com o seu voluntarismo, nem a esquerda dela tem motivos de sossego. Já da parte de Cavaco Silva, que certamente vai recandidatar-se, a história é toda outra.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Relíquia antiga - IX

A tia patrocínio viveu num tempo feliz, em que havia muitos pobres. Ela então deu-se ao luxo de escolher o seu, entre tanta oferta. Escolheu o asdrúbal, que tinha quarenta e cinco anos e aparentava setenta. Era reformado do mar, e um dia disse que deixara de embarcar porque já ninguém esperava por ele em porto nenhum.
Três vezes por semana, às dez da manhã, o asdrúbal subia ao segundo andar, pela escada de serviço. E tinha sempre a tia a recebê-lo. Mandava-lhe lavar as mãos na pia da cozinha e o asdrúbal não perdia tempo, por causa do cheiro da sopa que vinha do fogão. Quando era inverno, a tia patrocínio fazia questão em que ele tirasse o velho sobretudo amarrotado, queria ver se ele trazia alguma coisa por baixo, que lhe aquecesse o peito. Às vezes, depois do primeiro prato de sopa, dava-lhe uma camisola de lã, das antigas que por lá tinha. E o asdrúbal ficava agradecido, embora visse perfeitamente que eram camisolas de mulher.
Depois do terceiro prato de sopa, a tia patrocínio mandava a criada guardar no tacho de alumínio que o asdrúbal trazia os restos do jantar, dava-lhe duas moedas e recomendava sempre que não fosse gastá-las em vinho. O asdrúbal jurava que não, tropeçava num agradecimento atribulado, guardava o tacho de alumínio debaixo do braço, e dizia deus lhe pague senhora até depois de amanhã. A tia patrocínio juntava as mãos sob a écharpe, num recolhimento íntimo, via-se mesmo que o asdrúbal lhe estava abrindo as portas do céu.
Um dia veio a revolução, e o que valeu à tia patrocínio é que já tinha o céu aberto. Porque o asdrúbal deixou de aparecer lá em casa. O mundo tornou-se uma coisa incompreensível, a rua era todo o santo dia um frenesi de gente numa agitação desconhecida, e o asdrúbal passava por ali mas nem olhava. Eu sei estas coisas porque ele mas contou, alguns anos mais tarde, já a tia cá não estava. Explicou-me que nessa altura as pessoas se tinham tornado diferentes, que a vida se transformara num vendaval saudável. Não era verdade, claro, mas havia mesmo quem dissesse que a gente das fábricas esgotava aos domingos a lagosta toda do mercado. E ele não sabia explicar bem, mas não lhe dava jeito na alma passar por ali e subir à cozinha do segundo andar. Confessou-me que nesse tempo até ele esteve tentado a acreditar na vida outra vez. Mas depois a revolução acabou, e com o tempo as ruas foram ficando calmas e as pessoas caladas. Ele ficou outra vez sozinho, e um dia achou que o melhor era voltar à escada de serviço do segundo andar.
Desde então quem recebe o asdrúbal sou eu, quando ele arranja forças para subir a escada. Se eu tivesse uma revolução, dava-lha. Pudesse eu, e nada me custava dar-lhe um sindicato ou um lenine. Assim, sou eu quem ganha o céu, à custa dele.
[ibidem]

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Foder-nos a vida

A turbamulta desses bem-vestidos, que andam a oferecer a alma pela liberdade de expressão, e pelo estado de direito democrático que já dão como defunto, dispõe afinal de horas e horas de tempo de antena em televisões, em rádios, em jornais, para atenazar o governo e foder-nos a vida. Não lhe faltam jornalistas serviçais, nem papagaios amestrados, nem comentadores pagos, nem juízes apaniguados, nem sindicalistas vesgos, nem esquerdistas de várias bandeiras, prontos a colaborar. Não lhe escasseia a gamela, ao fim do mês. Contam mesmo com o discreto beneplácito do presidente que temos, garantido pelas provas que já deu.
É tudo uma questão de dor de corno e de fome de poder. Porque o governo em funções pouca coisa mais tem feito do que executar no terreno a política da mesma turbamulta: pôr a gentalha no lugar que lhe compete, porque isto em Portugal não é o da Joana. Nunca foi, embora tenha parecido.
Ora essa é a política que a turbamulta havia de pôr em prática, se fosse mais que uma súcia de parasitas impotentes. Se tivesse tomates para o fazer, num estado de direito democrático com liberdades de expressão.

A sequela

O Miguel de Vasconcelos original acabou morto a tiro, na manhã de 1 de Dezembro de 1640. Porque, como é sabido, era secretário de estado da vice-rainha, a duquesa de Mântua, constituindo uma peça-chave da política do conde-duque de Olivares em Portugal.
Em boa hora posto no seu lugar, deixou no entanto uma sequela. Chama-se Paulo Rangel, e é hoje deputado europeu no Parlamento de Estrasburgo. Isto enquanto não fizerem dele o novo capo do PSD, partido que há muito tempo anda em desespero à procura de cabeça. Entre mais coisas, e a golpes de retórica e demagogia infrene, foi ele que tornou possível a um partido em estado pré-comatoso ganhar as passadas eleições europeias. O que foi uma chatice, porque assim os portugueses só se podem queixar de si próprios. É que a sequela pede meças ao original.
Num momento de particular incerteza e gravidade, em que o país resvala para as unhas dos especuladores financeiros e das agências de rating, a irresponsabilidade, a inconveniência e o oportunismo político do deputado do PSD podem mais do que qualquer sentido patriótico. Por isso ele não hesita em declarar que sim senhor, que Portugal está numa situação semelhante à da Grécia, e pode agravar-se mais. O país já não é um estado de direito por culpa do governo, que põe em causa a liberdade de expressão, e quer controlar a imprensa, e a rádio e a televisão.
Para que conste! E os abutres da finança não venham dizer depois que ele não avisou a tempo!

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Padrões

No Portugal antigo, o dos heróis do mar, plantaram-se padrões. Eram de pedra, espetados na areia de plagas remotas. Por lá se desfizeram em pó.
No Portugal moderno, o dos aventureiros, mudaram os padrões. Agora são de betão, de cor berrante no descampado aflito. E é o mesmo pó que os espera.
Só faltam a Portugal os padrões do V Império, que já temos prometido. Garantem uns patriotas que havemos de lá chegar. Aos poucos, para não levantar a poeirada.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Relíquia antiga - VIII

A primeira vez que ela me saltou da poltrona e se dissolveu no ecrã, à vista de toda a plateia, foi quando uma das crianças da família trape, acostumada a vê-la na primeira fila, veio tomá-la do braço para lhe ouvir, à noite, o embalo da voz, antes de adormecer.
A nossa vida já não corria bem há uns tempos. E não minto se disser que tudo se deveu à incorrigível mania que ela tinha de adiar tudo para depois do casamento. Quando passeávamos no parque, era sabido que só aceitava sentar-se comigo nos bancos onde passava toda a gente. Experimentei várias vezes levá-la à margem do rio, quando à tarde o sol convidava a um repouso debaixo dos salgueiros. Cheguei a estender na relva a manta que trago sempre na mala do fiat, enviesado modo de lhe tornar a sesta mais convidativa. Mas ela escapulia-se, entre risos, e punha-se a refrescar os pezinhos na água, a ver se apanhava à mão as bogas que passavam, a abrir a boca entre os juncos.
E assim me foi arrefecendo a paixão. De modo que fiquei muito tempo em cuidados, sem saber bem como livrar-me dela.
Um dia descobri-lhe uma insopitável tendência para o melodrama, e decidi levá-la à matine, para ver em que paravam as modas. Mal sabia eu as peripécias que haviam de vir. É que estava ali no ecrã tudo quanto a fazia feliz. Um fidalgo distante e sedutor, a manada dos filhos a precisar de mãe, e uma fada que se perdera a caminho de casa e se abrigara no jardim. Com aquela música dos anjos, o céu, a havê-lo, era por certo assim.
Nunca a vi tão feliz, decerto foi por isso que não mais deixou de ir à matiné das três, até vir a criança tomá-la do braço, como já ficou dito. E, quando a família trape saiu de cena, já ela não podia dispensar-lhe o convívio e continuou a dissolver-se no ecrã. Um dia a história dirá que foi ela a salvação da menina escarlate, na solidão da Geórgia, quando o vendaval do destino lhe desabou em cima e o dandy dos bigodes desertou, batendo com o portão. Noutra ocasião, hibernava um poeta russo na tundra siberiana, de alma retalhada e incapaz dum verso, foi ela que se meteu, intrépida, aos frios dos urais, inçados de guardas vermelhos, para guiar o pobre a uma cidadezinha onde haveria salvamento. E, numa tarde de tombstone city, ela mais uma vez não hesitou em pôr-se do lado dos bons, e segredou à orelha do xerife o nome do homem que matou o liberty valance.
Num domingo dei por ela a passar para a matiné, sem imaginar que a via pela última vez. Nessa tarde foi juntar-se a um grupo de anarquistas espanholas, que defendia heroicamente uma portela qualquer da sierra de guadarrama, para salvar Madrid dos tércios mouros do franco. Não sei onde é que ela aprendeu a manejar os fuzis de repetição, creio que não havia limites para aquele coração febril. Mas a correlação de forças era desesperada, e os alfanges berberes acabaram a cevar-se no sangue nobre das guerrilheiras libertárias.
Ela nunca mais voltou. E, durante uma semana, até eu me reconciliei com a escumalha dos fascistas.
[ibidem]

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Chacais

Insinua-se a hora dos chacais. E ver atolados nela bloquistas e pecepistas não faz bem a corações sensíveis.
Não matará, que os tempos não aconselham. E o que não mata engorda, é dito velho. Oxalá seja verdadeiro!

Falas de papagaio

Emigrar faz parte do modo de ser português.

No final do séc. XIX, houve décadas em que 6% da população partiu.

Na década de 1960, houve anos em que saíram do país 100 mil portugueses.

No actual momento, a necessidade, o desencanto e o espírito de risco continuarão a levar milhares de portugueses a mudar de país.

Leio estas coisas num diário de referência e pasmo do que leio. Depois ponho-me a pensar e acerto a mira: mais do que linguajar de papagaio, isto são é falas de filho da puta.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Ecos da Sonora - XXII


No meio de muitas outras, tem a Sonora esta grande vantagem: uma vez começada a gravação, já não pode o leitor abandonar a obra, nenhuma prece ao Pai lhe fará passar o imbebido cálice. E foi assim que eu li integralmente o romance de José Luís Peixoto, Uma Casa na Escuridão. A qual também podia ser a escuridão numa casa, cujas primeiras páginas já me tinham passado pela mão, e andavam ali de pousio, no remanso duma prateleira.
Os capítulos são seis: O Amor, O Amor É Tudo O Que Existe, As Invasões, O Amor É Impossível, A Peste, e O Amor É A Solidão. O narrador é autodiegético, e faz o que tem a fazer. Observa, e sente, e diz, e começa assim: ERA UMA VEZ O FIM DE TARDE.
Depois aparece um pai que escreve sonetos e morre, e que antes de morrer mata madalena. O meu pai ficou no jazigo dos homens da família. Das seis prateleiras que o jazigo continha, o meu pai ficou na segunda da esquerda. Em cima, estava o seu pai. No lado direito, estava o pai do pai, o pai do pai do pai, e o pai do pai do pai do pai do meu pai. Em baixo, estava o lugar vago para mim. A minha prateleira.
Enquanto sim e não, há a mãe que come muito e se baba. E gatos preguiçosos, muitos gatos. E há uma escrava miriam, colega da madalena. Há um editor preso, um violinista que é um cavalheiro, e o príncipe de calicatri, que sabia dizer obrigado em mais de 90 idiomas e andara a correr mundo. Com o tempo, aparece a dona do palácio der siliae, que é visita lá de casa mas não é grande peça.
Um dia entram em cena os invasores, que logo decepam os membros ao infortunado narrador. E há soldados com barba até à barriga, e roupas assim de ferro, e espadas vermelhas de sangue. Depois há o visconde de dedodida, e numerosas crianças, e abundantes tabuleiros de sopa e de papa, muita papa.
O discurso narrativo é um infindável desfile de joguinhos de palavras, de rodriguinhos formais, de trocadilhos previsíveis, de quiasmos de pau, de acumulações não significantes, de repetições espúrias. As duas integrais páginas 106 e 107 desvendam-nos um narrador que repete 297 vezes o ininterrupto refrão quero morrer. Melhor só uma novena da quaresma.
A contracapa da obra ensaia uma linha de leitura, promete uma alegoria magistral do fim duma civilização que é, sem dúvida, a nossa (...). Mas não há alegoria nenhuma. Há um rapazinho que tem um pesadelo, caótico como os pesadelos. O rapazinho adormece no fim de cada capítulo e acorda no início do seguinte. Por fim morre, inesperadamente. E a narrativa termina, por não haver quem lhe dê continuidade.
Ou eu me engano muito, ou este tipo de literatura reparte campos e fins com a arte contemporânea da moderníssima casa de Serralves, que encandeia os visitantes com grandes planos do olho do cu, passado a creolina. A substância artística que a anima é a mesma de Lullaby Spring, criação de 2002 dum génio inglês da contemporaneidade, Damian Hirst, leiloada pela Sotheby's em Junho de 2007, por 13 milhões de euros. Nunca obra dum artista vivo atingiu tais valores, e não é sem motivo. É que a peça é um armário metálico de produtos farmacêuticos, cheio de comprimidos pintados à mão.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Relíquia antiga - VII

Quando os paisagistas da expo 98 resolveram plantar a palmeira de java ali à beira da doca dos olivais, não previram as funestas consequências do acto. Pois logo os pardais da zona oriental, cansados do vil ambiente, se lhe vieram anichar nos braços. E, como toda a gente sabe, quando os pardais se juntam nos braços duma palmeira, a imundície é mais que muita.
A primeira vítima foi o guarda-nocturno, encontraram-no debaixo da palmeira quando a manhã começava a nascer, hirto e já cadáver. Mantinha a arma no coldre e trezentos e sessenta e sete escudos no bolso, além de apresentar no alto da cabeça um buraco redondo. Tudo isso foi anotado pelo agente de serviço à ocorrência, o qual concluiu tratar-se dum crime muito encoberto.
Alguns dias depois, dois cidadãos do mali trotavam na aurora amena debaixo da palmeira de java. E quando um deles acabou de sacudir do cheviote um mofino excremento de pardal, reparou que o companheiro havia desabado no chão. Veio o agente de serviço à ocorrência, o qual anotou que a vítima apresentava no alto da cabeça um redondo buraco, sem outras marcas de sevícia. O agente concluiu tratar-se de um crime basto enigmático, e mandou calar a comunicação social.
Mas isso tornou-se difícil, depois que uma funcionária da limpeza da expo 98 apareceu esticada no pavimento, rodeada do aparato técnico da função e da imundície que imaginar se pode. Apresentava no alto da cabeça um buraco redondo, e tinha a vida presa por um fio. Às perguntas do agente de serviço apenas contrapôs um indicador esticado no ar, na direcção do céu. Comoveu-se o agente, com aquilo que tomou por devoção cristã. E ali ficou sentado, de queixo espetado na mão, indiferente ao cair da noite e aos agravos dos pardais. Parecia uma estátua conhecida.
E foi quando a aurora estendia já os dedos róseos sobre a doca dos olivais que o mistério se desfez. O agente de serviço nem queria acreditar no que via. Empoleirada no braço mais alçado, descansando na perna esquerda, estava ali, nem mais nem menos, que a galinha dos ovos de ouro. Volta não volta fugia do galinheiro, e vinha pernoitar com os primos à palmeira de java. Ora toda a gente devia saber que tais coisas não dão em bem.
[ibidem]

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

A fome e a fartura

Existem em Portugal pouco menos de 200 instituições de ensino superior, públicas e privadas, contando universidades, institutos politécnicos, e escolas superiores disto ou daquilo. Nelas se ministram, por pouco, cinco mil cursos de licenciatura, mestrado ou doutoramento. E haveria aqui razão para falarmos de fartura, se antes não houvesse um caso típico de fome oportunista e fartar vilanagem.
Temos então 17 instituições de ensino superior por milhão de habitantes. Na Inglaterra há 2,9; na Espanha, 2,1; na Grécia, 3,4. Na América, que é a terra da livre iniciativa, só é permitido abrir uma nova universidade para responder às necessidades de um mínimo de 2 milhões de habitantes. Com tal rácio, caber-nos-iam cinco.
Mas Portugal é há muito uma terra prometida. Só em Lisboa, são ministrados cinco diferentes cursos de licenciatura em Sociologia. Isto para não falar doutras paróquias, onde cursos iguais são frequentados por exíguos alunos, a 50 quilómetros da paróquia seguinte. E assim é que dispomos de excesso de cursos, de superabundâcia de instituições, de carência de professores qualificados, de baixos níveis de ensino, e da matemática impossibilidade de os elevar. E o mais curioso é que não há ministro da Educação e da Ciência dos últimos trinta anos, que não seja o primeiro a verberar o despautério.
De criação recente é a Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior, de quem se espera o milagre de avaliar o sistema e corrigir o absurdo. É pecha nossa, incompetência antiga, esta de não reconhecer a ordem dos factores. E oxalá fosse ela pecha única. Porque um reitor de Lisboa, reconhecendo a insustentável e nociva irracionalidade que campeia, acaba de nos confidenciar um sonho: construir uma universidade de referência internacional, nos terrenos do aeroporto de Lisboa. Nem mais!