quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Haiti: o país impossível

Com vénia ao dr. Luís Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal

Os lamentáveis sucessos decorrentes do terramoto de Port-au-Prince têm servido para dar a conhecer ao Mundo um país muito pobre e cheio de contradições. O Haiti é um país deslocado no espaço e no tempo. É um país de africanos longe de África, um país de pobres mesmo ao lado do império dos ricos. É um país onde os benefícios do progresso não chegaram, onde a esperança de vida à nascença não ultrapassa os 60 anos, e onde o futuro não é risonho para as populações jovens.
O Haiti fica situado na Ilha Hispaniola, de cujo território ocupa um terço, constituindo a parte restante a República Dominicana. Foi a esta ilha que Colombo aportou, em Dezembro de 1492, quando chegou às Índias Ocidentais. E foi aqui que, pela primeira vez, tomou contacto com os índios americanos que habitavam a ilha, os quais, passado pouco tempo, tinham desaparecido completamente.
Os haitianos são hoje 10 milhões, a viver num território do tamanho do Alentejo. Mas em 1950 eram 3 milhões, o que mostra bem o elevado crescimento populacional. O país tem a taxa de natalidade mais alta do hemisfério ocidental. 50% dos haitianos têm menos de 20 anos, e 50% deles são analfabetos. Existem ainda 2 milhões a viver fora do país, sobretudo na República Dominicana e nos EUA.
Nos séculos XVII e XVIII, o Haiti terá sido um país agricolamente rico (sobretudo em açúcar), e essa foi uma das razões que fez levar milhares de escravos negros para a ilha. Mas hoje o solo está esgotado, erodido e empobrecido pela desflorestação e pela agricultura intensiva. Uma escassa produção agrícola (café, manga) é insuficiente para alimentar a população. 40% do orçamento do Haiti é assegurado pela ajuda internacional. 1% dos haitianos mais ricos detêm 50% da riqueza. Este facto ilustra bem as contradições existentes.
Se tivesse ocorrido há 100 anos, a destruição de Port-au-Prince teria sido um processo irreversível. A selva voltaria a ocupar o lugar dos edifícios, tal como aconteceu nas cidades abandonadas dos Maias. E os haitianos estariam condenados a estiolar à míngua de recursos. Seria mais um exemplo de colapso social, à semelhança de tantos que se verificaram ao longo da história da Humanidade.
Mas neste tempo de globalização a tragédia entra nas nossas casas, e o mundo não pode ficar indiferente. Os países mais ricos, com os EUA à frente, vão, por isso, reconstruir o Haiti, e já se fala de um novo plano Marshall. A ajuda americana será acima de tudo concretizada por uma forte injecção de dólares, e a reconstrução será feita com materiais americanos. Servirá mesmo para ajudar a estimular a economia americana e para criar postos de trabalho. Mas aos americanos interessa sobretudo evitar a emigração em massa dos haitianos para os Estados Unidos.
O Haiti é hoje, claramente, um país com uma população acima da sua capacidade de carga, um forte candidato a uma ruptura iminente. A manter-se a actual taxa de natalidade, a sua população será de 20 milhões daqui a 50 anos. Ora o bom senso mostra que isso é uma impossibilidade económica e ecológica. Dá que pensar e revela a dimensão dum problema para o qual é difícil antever uma solução.
O futuro do Haiti é, pois, sombrio. Ajudar o país, como tem sido feito até agora, é uma solução transitória, e nada resolve a longo prazo. Porque a ferida fica aberta, e é errado pensar que constitui um problema só dos haitianos. Mais tarde ou mais cedo, as réplicas deste tremor de terra irão chegar ao mundo dos ricos, porque deste Haiti todos nós fazemos parte. Num mundo globalizado, não há colapsos parciais. E o eventual colapso do Haiti não será bom para ninguém. Quando chegar a hora, o mundo inteiro pagará a factura. Possivelmente mais cedo do que se imagina.