domingo, 7 de fevereiro de 2010

Relíquia antiga - VIII

A primeira vez que ela me saltou da poltrona e se dissolveu no ecrã, à vista de toda a plateia, foi quando uma das crianças da família trape, acostumada a vê-la na primeira fila, veio tomá-la do braço para lhe ouvir, à noite, o embalo da voz, antes de adormecer.
A nossa vida já não corria bem há uns tempos. E não minto se disser que tudo se deveu à incorrigível mania que ela tinha de adiar tudo para depois do casamento. Quando passeávamos no parque, era sabido que só aceitava sentar-se comigo nos bancos onde passava toda a gente. Experimentei várias vezes levá-la à margem do rio, quando à tarde o sol convidava a um repouso debaixo dos salgueiros. Cheguei a estender na relva a manta que trago sempre na mala do fiat, enviesado modo de lhe tornar a sesta mais convidativa. Mas ela escapulia-se, entre risos, e punha-se a refrescar os pezinhos na água, a ver se apanhava à mão as bogas que passavam, a abrir a boca entre os juncos.
E assim me foi arrefecendo a paixão. De modo que fiquei muito tempo em cuidados, sem saber bem como livrar-me dela.
Um dia descobri-lhe uma insopitável tendência para o melodrama, e decidi levá-la à matine, para ver em que paravam as modas. Mal sabia eu as peripécias que haviam de vir. É que estava ali no ecrã tudo quanto a fazia feliz. Um fidalgo distante e sedutor, a manada dos filhos a precisar de mãe, e uma fada que se perdera a caminho de casa e se abrigara no jardim. Com aquela música dos anjos, o céu, a havê-lo, era por certo assim.
Nunca a vi tão feliz, decerto foi por isso que não mais deixou de ir à matiné das três, até vir a criança tomá-la do braço, como já ficou dito. E, quando a família trape saiu de cena, já ela não podia dispensar-lhe o convívio e continuou a dissolver-se no ecrã. Um dia a história dirá que foi ela a salvação da menina escarlate, na solidão da Geórgia, quando o vendaval do destino lhe desabou em cima e o dandy dos bigodes desertou, batendo com o portão. Noutra ocasião, hibernava um poeta russo na tundra siberiana, de alma retalhada e incapaz dum verso, foi ela que se meteu, intrépida, aos frios dos urais, inçados de guardas vermelhos, para guiar o pobre a uma cidadezinha onde haveria salvamento. E, numa tarde de tombstone city, ela mais uma vez não hesitou em pôr-se do lado dos bons, e segredou à orelha do xerife o nome do homem que matou o liberty valance.
Num domingo dei por ela a passar para a matiné, sem imaginar que a via pela última vez. Nessa tarde foi juntar-se a um grupo de anarquistas espanholas, que defendia heroicamente uma portela qualquer da sierra de guadarrama, para salvar Madrid dos tércios mouros do franco. Não sei onde é que ela aprendeu a manejar os fuzis de repetição, creio que não havia limites para aquele coração febril. Mas a correlação de forças era desesperada, e os alfanges berberes acabaram a cevar-se no sangue nobre das guerrilheiras libertárias.
Ela nunca mais voltou. E, durante uma semana, até eu me reconciliei com a escumalha dos fascistas.
[ibidem]