terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Relíquia antiga - VII

Quando os paisagistas da expo 98 resolveram plantar a palmeira de java ali à beira da doca dos olivais, não previram as funestas consequências do acto. Pois logo os pardais da zona oriental, cansados do vil ambiente, se lhe vieram anichar nos braços. E, como toda a gente sabe, quando os pardais se juntam nos braços duma palmeira, a imundície é mais que muita.
A primeira vítima foi o guarda-nocturno, encontraram-no debaixo da palmeira quando a manhã começava a nascer, hirto e já cadáver. Mantinha a arma no coldre e trezentos e sessenta e sete escudos no bolso, além de apresentar no alto da cabeça um buraco redondo. Tudo isso foi anotado pelo agente de serviço à ocorrência, o qual concluiu tratar-se dum crime muito encoberto.
Alguns dias depois, dois cidadãos do mali trotavam na aurora amena debaixo da palmeira de java. E quando um deles acabou de sacudir do cheviote um mofino excremento de pardal, reparou que o companheiro havia desabado no chão. Veio o agente de serviço à ocorrência, o qual anotou que a vítima apresentava no alto da cabeça um redondo buraco, sem outras marcas de sevícia. O agente concluiu tratar-se de um crime basto enigmático, e mandou calar a comunicação social.
Mas isso tornou-se difícil, depois que uma funcionária da limpeza da expo 98 apareceu esticada no pavimento, rodeada do aparato técnico da função e da imundície que imaginar se pode. Apresentava no alto da cabeça um buraco redondo, e tinha a vida presa por um fio. Às perguntas do agente de serviço apenas contrapôs um indicador esticado no ar, na direcção do céu. Comoveu-se o agente, com aquilo que tomou por devoção cristã. E ali ficou sentado, de queixo espetado na mão, indiferente ao cair da noite e aos agravos dos pardais. Parecia uma estátua conhecida.
E foi quando a aurora estendia já os dedos róseos sobre a doca dos olivais que o mistério se desfez. O agente de serviço nem queria acreditar no que via. Empoleirada no braço mais alçado, descansando na perna esquerda, estava ali, nem mais nem menos, que a galinha dos ovos de ouro. Volta não volta fugia do galinheiro, e vinha pernoitar com os primos à palmeira de java. Ora toda a gente devia saber que tais coisas não dão em bem.
[ibidem]