Jubiloso por se ver chegado a casa, o dionísio deputado meteu a chave à porta, ainda mal refeito do susto que apanhara na galeria vaca sagrada. Os embates parlamentares tinham-lhe deixado a cabeça em água, de modo que resolveu passar por lá, em busca dum alívio para os neurónios. Havia uma instalação dum artista jovem, estas coisas, por vezes, são desopilantes.
Avançou pela álea dos ulmeiros, em frente da escadaria majestosa, e foi tomando por desleixos do jardineiro uns ramos velhos estendidos no chão, que ao fundo serviam de poleiro aos vultos negros dos melros. Logo, porém, se desenganou, ao tropeçar numa pernada de latão fosco, ali caída no saibro da alameda. Fazia parte da instalação.
Mas o pior havia de surgir, quando deu de caras com o burburinho que fervia à entrada do recinto. Uma sexagenária trotava no empedrado, alheia aos alçapões da arte contemporânea, quando embateu no feixe de rústicas varas de salgueiro, espécie de micado gigante, ali instalado para emoção estética dos visitantes. A pobre mulher caíra desamparada e tinha perdido os sentidos, ia ali um alvoroço. Alguém reclamava uma ambulância aos gritos, enquanto um jovem, com ar de crítico de arte, sustentava que o vulto da criatura fazia parte da instalação, sem ele a obra não era mais que uma capela imperfeita.
E assim foi que o deputado dionísio aproveitou o alvoroço para se pôr ao fresco, agitações absurdas era o que menos lhe faltava. Ainda não sabia que o mais grave estava para vir.
Entreabriu a porta, a sonhar com um banho que haveria de resgatar-lhe as ideias, mas logo deparou com o vestíbulo da entrada estranhamente vazio. E mais despojado havia de encontrar o restante da casa, onde apenas fraldas de camisas boiavam como náufragos aflitos, e peúgas desirmanadas, e fatos em desespero à procura dum cabide. No sítio do toucador, onde fora o quarto de dormir, estava de plantão uma ríspida carta da mulher, a avisá-lo de que mudara o que era dela, para uma casa onde pudesse finalmente viver em paz. E de que já dera baixa do apartamento na agência imobiliária.
O dionísio deputado sentiu-se desabar, à medida que foi escorregando rente à parede, parecia mesmo um relógio do salvador dalí. Convocou, em desespero, uns restos de auto-estima, e acabou a noite a dormir no hotel.
Voltou no dia seguinte, a reunir despojos da hecatombe. E auscultava o silêncio da oca habitação, quando à porta a campainha veio sobressaltá-lo. Era uma senhora, trazida pela agência, armada de fitas métricas e blocos de anotações. Achara há dias despejado o apartamento familiar, quando voltou dum congresso de médicos em malta.
Tenteando, foram ambos vencendo os embaraços. E partiram dali à procura de almoço.
[ibidem]