quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Aquelas terras grandes...

"(…) Nestes prados da Quinta dos Cavalos não há cavalos nenhuns. Só João vai caminhando pela berma da estrada e o viajante pára ao lado dele. Não sendo velho é uma figura antiga, delida pelo tempo, ou pela vida. E há nele  uma servitude primitiva que este viajante já julgava extinta. De manhã tirou-se de cuidados e foi à vila ao médico espanhol, à boleia dum vizinho. Em breve se despachou e agora não há transportes, não tem remédio senão voltar a pé. Tem a mãe à espera em casa, já muito velha, e ainda mais achacada do que ele. Há mais irmãos, mas desgarraram todos depois que voltaram de Angola. Foram para lá quando eram pequenos, cresceram nos colonatos do Cunene. Havia o gado e aquelas terras grandes… Agora o que lhe vale é o rendimento mínimo.
Quando o carro estaca no meio do largo, ali à beira dum salgueiro-chorão, João ainda não acreditou que o viajante parou na estrada e o trouxe  para casa. O que lhe vale é o rendimento mínimo. E ao vê-lo assim, a afastar-se cabisbaixo, convence-se o viajante de que deu boleia a um símbolo de alguma coisa maior. (…)"
[Peregrinação da Lapa a Riba-Côa, Âncora edit. Lx 2012]

sábado, 25 de agosto de 2018

Hecatombes

Nas estradas do nosso país há todos os dias uma guerra de Tróia. E o melhor Homero dela é o humor do Kusturica.
O resultado são hecatombes atrás de hecatombes, que não comovem os deuses.

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Canalhices

"(…) Há que atentar na história dos Encontros de Trancoso. Aqui há uns anos, numa feliz conjugação astral, veio à fala o presidente da Câmara com dois cidadãos do mundo. Eram eles um brasileiro de lusas raízes, arquitecto e compositor entre mais dotes, e um tal Barbas de méritos prováveis de quem nada se apurou. Logo os três se deram conta de não existir no país uma entidade que congregasse os labores de artistas, filósofos, pensadores e cientistas. E consideraram Trancoso o lugar ideal para uma contínua reflexão sobre os males do planeta, através da arte, da ciência e das novas tecnologias. Os três criaram a FACTO logo ali, como quem diz a Fundação para as Artes, Ciências e Tecnologias - Observatório.
O objectivo da FACTO era a promoção de projectos de carácter transdisciplinar, transcultural, transnacional e intermediático. Seja lá isso o que for, em boa hora lhe deram nascimento, que assim veio a ter lugar o primeiro encontro internacional de arte e ciência, a que chamaram o Espírito da Descoberta. Um tal espírito visava promover um momento de informação e debate, gerando uma visão mais ampla, diversificada e profunda de algumas das mais fascinantes descobertas da ciência e das propostas da arte, questionando a sua natureza, os seus fins e o universo humano nelas envolvido.
Perante o duvidoso jargão da propaganda, cresce ao viajante a muita perplexidade. Mas logo veio em apoio de tão peregrino evento uma procissão de aclamadores, entre eles um filósofo europeu, presidente da Associação Mundial de Críticos de Arte, que era também a cabeça honorária do Tribunal Europeu do Ambiente.
Uma tal instituição, que anos atrás já naufragara na Bélgica, por culpa dos governos que faltam aos compromissos, das multinacionais cuja bandeira é o dividendo, e de corrupções avulsas, achara por fim em Londres um porto de acolhimento. Foi nessa altura que o já citado brasileiro-luso se tornou seu director. E os Encontros Internacionais de Arte e Ciência, já firmados em Trancoso, deram então lugar às sessões do Tribunal Europeu do Ambiente. O Espírito da Descoberta cedeu passo às Origens do Futuro, muito embora pareça ao viajante, em linguagem mais terrena, que à tal fome de aventuras visionárias se juntou aqui a mais singela vontade de comer. (…)"

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Feira de Agosto

Há um sobressalto na paisagem. Do céu fugiu a cor. A brisa bate à porta. Vem entrando Saturno, o melancólico.

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Panteão?!

A proposta da SPA de que os restos mortais do Zeca Afonso sejam trasladados para o Panteão Nacional é uma supina patetice. Pior que essa só a do Sá-Carneiro!
Em termos de Liberdade, e de Abril, e de Portugal, um só nome seria consensual: o Salgueiro Maia, que nunca aspirou a nada e fez só o que tinha a fazer.
Os tugas são uns patetas!

terça-feira, 21 de agosto de 2018

O facilitador

No tempo em que os animais falavam e o país era um deserto, o dótor Relvas foi secretário de estado da administração local. Foi quando se divertiu a mandar formar técnicos locais para a operação de aeródromos que não existiam no mato. Quem fazia o serviço era a Tecnoforma, gerida por um tal passos coelho que mais tarde havia de ser primeiro-ministro dum governo de retornados. Uma tal aberração acolhia uma ministra das finanças que de finanças nada sabia, uma ministra da Justiça que andou por aí a fechar tribunais e a meter a justiça num inferno, e o próprio dótor Relvas como adjunto da administração local.
Foi então que passou pela cabeça do Relvas reduzir a administração e poupar: reagrupar e abolir municípios, esse feudo do PPD, que era um manancial inesgotável de arranjinhos e negociatas, e já vinha desde os tempos do Mouzinho da Silveira.
Só que… a direcção da ANMP estava nas mãos do Ruas de Viseu, o tal que mandou apedrejar os fiscais do ambiente! E, quando ele ouviu o Relvas ganir que ia reduzir os municípios, rosnou-lhe um larga o osso terminante. O Relvas meteu o rabo entre as pernas e eliminou 1200 freguesias. Fodeu a vida a mais uns milhares de patetas e ficou todo contente, antes de voltar ao seu papel de facilitador de negócios.
O governo anda agora a pensar em corrigir a argolada. E quando já toda a gente tinha esquecido o dótor Relvas, não é que o cabrão voltou a fazer-se ouvir? Ainda ladra, esse pulha!

sábado, 18 de agosto de 2018

Selvajarias

Ele precisava dum cão para lhe guardar o quinteiro. E foi o Chico Preto que um dia lho arranjou. Ele prendeu-o numa argola antiga e lá o deixou ficar, a mulher tratasse dele.
Nas férias  do Verão o cão via um de nós e parecia que chorava. Gania que era uma dor de alma. Quando o soltávamos, corria desvairado e atirava-se à água fria do tanque.
Até que viemos a descobrir que a água fria era para ele um refrigério. E que ele nos proibia de o soltar por selvajaria pura. Porque o cão vivia rodeado de pulgas que já cobriam o chão e ameaçavam afligir as pessoas.
Mais tarde ele meteu o cão na camioneta, chegou à estrada da quinta dos areais, uma lonjura, e abandonou o pobre, que assim se libertou.
Ando a ler os processos de Moscovo, do cabrãozinho do Stalin, há cem anos atrás. E ele há diferenças entre uma coisa e outra. De quantidade, mas não de qualidade, que a paranóia é a mesma.

Pobres

Este alvenel é um herege. Anda ali a rebocar a cabeceira da igreja de São Pedro, entre um chorrilho de obscenidades. Coitado do santo, que tem que ouvir isto tudo.
A igreja é muito antiga. E quando foi preciso um dia dar-lhe um jeito, foram-se buscar pedreiros à Galiza, pois por cá 50 mil obreiros andavam ocupados a derreter o ouro brasileiro na construção do convento de Mafra, que havia de albergar 300 franciscanos.
Lá vieram os galegos, e logo foram encontrar escondidas na parede novas Trovas do Bandarra, que há 200 anos estavam ali guardadas para escapar à santa inquisição.
Pobre Bandarra, pobres obreiros de Mafra, pobre alvenel herege, pobres de nós!

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Feira d'ano

Nesse tempo a feira de S. Bartolomeu durava três dias e era o centro da vida de toda a região. Nela se pagavam as rendas das courelas, se compravam ou se vendiam gados, se levava uma camisa nova, uma blusa de chita para a filha, um par de tamancas para a patroa… Agora a feira dura mais que uma semana. Mostram-se máquinas e carros e artistas e diversões e passeia-se avenida abaixo avenida acima.
Eu era ainda um cachopo, mal me lembro. Estava com a minha avó materna, debaixo dos freixos grandes, e resolvemos comprar um melão que vinha do Ribatejo. Havia ali um monte deles. Mas o que ela comprou já estava tocado e eu refilei:
- Ó avó, este melão metade está estragado! E vai ela, com a doçura que só ela tinha:
- Temos de ajudar a viver o homenzinho, que remédio!
De facto, muito embora não pareça, outro remédio não há.

domingo, 5 de agosto de 2018

Betadine

O homem levantou-se, reuniu os apetrechos de pesca e chamou o filho. De caminho meteu na bolsa uma embalagem de Betadine.
É um pescador inveterado. Mas aprecia a pesca e não os peixes dela. Esses devolve-os à água. Pega no Betadine, lambuza com ele as beiçolas feridas pelo anzol, e lá vai o peixito a rabiar.
O filho acompanha-o, para aprender a respeitar a natureza.