domingo, 23 de dezembro de 2018

Deluxe!

Daquele tempo já não há quem se lembre, tanto que nem existiu. Mas eu nunca mais me esquece. Saíamos dos aviões a pingar suor e sangue, as botas encharcadas e os fatos de voo numa lástima. O jipe ia-nos buscar à placa e descarregava-nos no barracão da esquadra, onde uns velhos aparelhos de ar condicionado mantinham a Bissalanca respirável.
No bar tínhamos água de Vichy a cinco mil réis o copo. As fontes todas da pátria corriam na valeta dos caminhos, lacrimejando entre Minho e Alentejo. Mas nós tínhamos Vichy, muito cara mas termal, muito deluxe!

Urgências

Circunstâncias casuais levaram-me a acompanhar uma pessoa amiga à urgência dum hospital. E o que seria um exercício breve e rotineiro transformou-se em meia dúzia de longas horas de espera. Deu para chegar a casa à meia-noite.
As ambulâncias iam e vinham num corrupio, os bombeiros manobravam macas, os médicos e os enfermeiros mal davam para as encomendas a atender os pacientes. Eram todos velhos e idosos, os pacientes, já no fio da navalha, um deles vinha mesmo embrulhado em celofane, como os chocolates do Natal. 
Às vezes um clínico desapertava a bata, esquecia o estetoscópio pendurado no pescoço, e vinha cá fora fumar ao canto um cigarro furtivo. Eu acompanhava-o na escapadela, todo contente por não ser médico, por não ser bombeiro, por não ser doente, por não ser um chocolate do Natal. 
Mas fugia da sala de espera colectiva, para não ouvir as conversas das mulheres de rabo grande, que ensurdeciam o ar e não davam descanso aos telemóveis.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

A curva da chouriça

No Inverno de 43 não havia nada em Lisboa, além da miséria das senhas de racionamento. Da Europa chegavam estrondos da guerra, da qual nos livrava um santo milagreiro de nome já esquecido. E a Espanha matava a fome como podia, sarando as feridas doutra guerra já passada.
De forma que, ao chegar o Natal, os patrões aguardavam que eu lhes mandasse da aldeia carregamentos de fruta, de queijos e fumeiros, em grandes cestos vindimos despachados no comboio ao domicílio.
A estação ficava a trinta quilómetros. E o carro de bois carregado, ao passo lento das vacas, demorava uma boa meia dúzia de horas.
A meio da noite saímos de casa, eu, um criado mais um cão. E no cimo da carga tivemos o cuidado de levar feno para os bichos e lenha para fazer uma fogueira. O frio era de rachar.
E lá passámos Trancoso e o Chafariz do Vento, da Broca para baixo era sempre a descer. Foi quando começaram a aparecer fusos de gelo nos focinhos das vacas. À medida que as pobres respiravam, os vapores gelavam sem demora, era uma lástima.
Quando a manhã começou a clarear chegámos nós à curva da chouriça, em que a estrada fazia volta inteira a dois passos da estação. Parámos um migalho, para descansar os bichos e fazer uma fogueira. Mas tínhamos as mãos tão engaranhadas que os dedos recusavam acender os fósforos. Por sorte nossa deu connosco um cristão do Feital, que vinha da estação e subia para casa. E meia hora depois recuperámos ânimo.
Despachámos a carga ao domicílio, e voltámos bem melhor.

sábado, 15 de dezembro de 2018

Era uma vez...

"Vinte mil índios à direita, mais vinte mil à esquerda, e o Gary Cooper sozinho."
Era altura do anjo da guarda agir. Doutro modo… um cobói, uma cultura, um império iam à vida!