segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

A curva da chouriça

No Inverno de 43 não havia nada em Lisboa, além da miséria das senhas de racionamento. Da Europa chegavam estrondos da guerra, da qual nos livrava um santo milagreiro de nome já esquecido. E a Espanha matava a fome como podia, sarando as feridas doutra guerra já passada.
De forma que, ao chegar o Natal, os patrões aguardavam que eu lhes mandasse da aldeia carregamentos de fruta, de queijos e fumeiros, em grandes cestos vindimos despachados no comboio ao domicílio.
A estação ficava a trinta quilómetros. E o carro de bois carregado, ao passo lento das vacas, demorava uma boa meia dúzia de horas.
A meio da noite saímos de casa, eu, um criado mais um cão. E no cimo da carga tivemos o cuidado de levar feno para os bichos e lenha para fazer uma fogueira. O frio era de rachar.
E lá passámos Trancoso e o Chafariz do Vento, da Broca para baixo era sempre a descer. Foi quando começaram a aparecer fusos de gelo nos focinhos das vacas. À medida que as pobres respiravam, os vapores gelavam sem demora, era uma lástima.
Quando a manhã começou a clarear chegámos nós à curva da chouriça, em que a estrada fazia volta inteira a dois passos da estação. Parámos um migalho, para descansar os bichos e fazer uma fogueira. Mas tínhamos as mãos tão engaranhadas que os dedos recusavam acender os fósforos. Por sorte nossa deu connosco um cristão do Feital, que vinha da estação e subia para casa. E meia hora depois recuperámos ânimo.
Despachámos a carga ao domicílio, e voltámos bem melhor.