sábado, 31 de janeiro de 2015

Bisturi

A Europa destas elites malsãs é um abcesso infectado. E o que fizeram os gregos foi espetar-lhe um bisturi.
É pouco, e arriscado, e contingente. Mas é o curativo primordial.
Este governo de traidores está naturalmente contra. Porque vive da infecção e só sobrevive nela.

O discurso do filho da puta

Em versão prosaica e integral. 

A razia da nação

Ao serviço do dividendo dos "nossos credores".

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Pirete

O Antero tem uma vinha em Valongo dos Azeites. Logo que as uvas pintaram foi-se a ela, vindimou-a, e foi descarregar as balsas na Adega Cooperativa.
A questão veio depois. A concorrência e os caprichos do mercado não deixaram na caixa do tesoureiro com que pagar o calote.
A adega propôs-lhe pagar em géneros. E o Antero lá aceitou, que o mal menor é muitas vezes um bem. Trouxe para casa o vinho a quatro e meio, e agora vende-o a cinco. 
Eu aproveito, e assim ganha toda a gente: o Antero, os bebedores e a Adega Cooperativa. Só perde esse camafeu da ministra das Finanças, um estafermo que já contava com o IVA para pagar o justo juro aos «nossos credores». Pois que lhe sirva este pirete das Caldas!

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

A propósito

A RTP emitiu ontem um trabalho inglês indispensável, a propósito dos 70 anos da insânia nazi: Maidanek, Bergen-Belsen, Auschwitz, Dachau, Treblinka, Sachsenhausen, Teresienstadt ... Demolidor, se não arrepiante. 
Nem surpreende que o tenha exilado para horários impróprios, pois só alguns ingénuos acreditarão que a nossa televisão (mesmo a pública) está ao serviço da formação e da ilustração do povo.
O propósito, hoje aqui, são outros factos. Com 60 anos.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Inevitável, embora incompreensível

Com ganhos para a América, pois quem?!

Primeiro os gregos, há séculos. Agora os gregos, outra vez

(...) As promessas de relançar a economia, de pôr fim à "crise humanitária" que a Grécia atravessa há seis anos por culpa das medidas de austeridade adoptadas a mando da troika e do "corte de cabelo" à dívida externa foram o que garantiu a vitória de Tsipras este fim-de-semana. Mas, tal como ao longo da campanha, os credores voltaram a dar mostras ontem de que não estão dispostos a renegociar o resgate. A batalha, como o novo primeiro-ministro declarou ontem, começa agora.
(Jornal i, 27Jan)

(...) Neste momento, o consenso europeu está reduzido à obediência cega às posições alemãs, o que tem como consequência uma cada vez maior contestação ao projecto europeu nos outros estados. Nenhuma federação pode subsistir se a mesma se revela uma estratégia de domínio dos outros países apenas por um deles. E se por enquanto a União Europeia até pode acomodar uma saída da Grécia, a verdade é que essa saída nunca será a vacina que robustecerá o paciente, ao contrário do que alguns iludidos julgam. A saída da Grécia será um turbilhão que varrerá todos os países do Sul, pondo toda a estrutura em colapso. A Europa caminha para uma tragédia de que esta vitória do Syriza foi só o primeiro acto.
(Luís Menezes Leitão, Jornal i, 27Jan)


(...) É óbvio que a vitória de Tsipras provocou reações em toda a União Europeia, por um lado de entusiasmo e para a direita uma obrigação de refletir de modo a mudar as políticas que tem vindo a seguir e, obviamente, a austeridade, que tantos malefícios tem provocado.
A União Europeia está a mudar, como se tem visto, por exemplo, com a posição de Mario Draghi, ilustre economista e presidente do Banco Central Europeu. E o êxito extraordinário que Alexis Tsipras conseguiu no domingo passado vai ajudar imenso. Tenhamos, pois, como sempre disse, esperança, porque melhores dias virão. Inevitavelmente.
(Mário Soares, DN, 27Jan)

CRÓNICA, SAUDADE DA LITERATURA

Manuel António Pina, (ed. Assírio & Alvim) diz assim:

«(...) E o mesmo em relação a outros ditos de uso corrente em entrevistas, conferências de imprensa e declarações mais ou menos públicas. Toda a gente sabe que "não confirmo nem desminto" significa «como é que este tipo soube?»; que "o assunto está a ser estudado" significa «não faço a menor ideia do que se trata»; que "ganhe o melhor" significa «precisamos de ganhar, nem que tenhamos que oferecer um casaco de peles à mulher do árbitro»; (...) que "os altos interesses nacionais" significa «convém-me que»; que "reduzir o peso do sector público" significa «passar a patacos as EP's que dão lucro e fazer os contribuintes pagar os prejuízos das outras»; que "competitividade" significa «salários baixos»; que "flexibilidade das leis laborais" significa «despedimentos fáceis»; que "competência" significa «é do meu partido»; (...) que "estou muito contente por vir cantar a Lisboa" significa «saquei uma boa maquia a estes pategos»; que "o Porto é a capital do trabalho" significa «preciso dos votos daqueles parolos»; (...) e por aí adiante. (...)»
JN 12/12/1987

«Há 20 anos éramos esquerdistas, maoístas, trotskistas, guevaristas, anarquistas; hoje somos todos neo-liberais e post-modernos (enfim, quase todos...). De Gaulle disse que éramos "la pègre", "la chienlit"; não fazíamos a barba, tínhamos longos cabelos, óculos redondos, blue-jeans sujos, camisas de flanela, sandálias; os mais radicais boina e saca maquisard (...). Eram os tempos heróicos do "2 cavalos" e do LSD, do punho fechado, das correrias à frente da polícia de choque, do amor livre, do excesso e da poesia. 
Os tempos agora vão mais para a prosa, para Megas Ferreiras & Vascos da Graça Moura, para a monogamia e para os preservativos. E para os carros caros, as camisas de seda, as gravatas Balmain, os "pubs", a heroína. Os "hippies" tornaram-se "yuppies" e mudaram-se do Vavá para o João Sebastião Bar e do Piolho para o bar do Sheraton; já não celebramos a Marx, Marcuse e Mao, nem aos seus profetas Cohn-Bendit, Geysmar, Sauvageot, Rudi Vermelho Dutske, mas à Wall Street, à Reaganomics, ao sucesso e ao dinheiro. (...)» 
JN, 05/03/1988

«(...) Se D. Sebastião, em vez de ter levado porrada, tivesse arrasado os mouros à espadeirada, não teria tido o sucesso que teve pelos séculos fora. E se Sá Carneiro não tivesse morrido no desastre de avião, e tivesse ganho tudo, as presidenciais, as legislativas e as autárquicas, hoje não tinha metade dos admiradores que parece que tem em todos os partidos. (...)»
JN, 06/02/1991

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Visão outra

Cuja leitura ajuda a entender o imbroglio. 

Redes

O sol quente da manhã é benesse de um deus pródigo. Mas os charcos do caminho estão gelados, da frialdade da noite. 
Largo os bastões, sento-me numa pedra, abro o farnel. E puxo dum telefone, a ver se falo a um amigo que há-de ir a caminho de Évora, a tal. Não tenho rede e fico desolado.
Chega um gaio, com uma castanha no bico. Poisa ali na copa dum pinheiro, grasna e ri-se. Nunca lhe faltou rede nenhuma.

domingo, 25 de janeiro de 2015

A ninfa

[Quando este texto deu flor pus-me a olhá-lo de longe. Chamei-lhe conto perfeito e hoje insisto.]

Eram os olhos a maior perdição dela. Tão grandes que neles cabia o mundo, tão escuros e fundos que lembravam o mar. Depois vinha a estampa límpida do rosto, debaixo da gaforina asa de corvo. O lábio húmido, a carnação macia, a flor da face cheia de mistério, a prometer abrir-se num sorriso que não chegava a abrir. O resto era o colo generoso, o ventre inquieto, as colunas das ancas a prometer abismos.­­­­­­
Ninguém sabe explicar como apareceu ali, criada na aldeia, aquela ninfa antiga. Olhava-se para ela e vinham à lembrança as deusas primitivas da fertilidade. O mesmo nome, Pristila, era um sinal pagão.
Dava escola para os lados de Aveiro, e vinha a casa sempre que podia. Chegava na carreira, ao fim da tarde, porque o pai, atento à vida, a reclamava. A bem dizer a aldeia inteira o exigia.
Na vila sabia toda a gente que o Tunante não era boa rês. Era um vilão bastardo, que fazia deste mundo uma coutada de caça. E todos lhe guardavam respeitinho, mais por instinto primário de defesa, do que por atributos que não tinha. A ninfa confundiu nele a brutidade grosseira com predicados de macho dominante. E quando vinha à vila, a passear, nem lhe escusava as momices atrevidas, nem os avanços de bruto galaroz. E acabou, já mansa e confundida, a enlear-se no assédio do bargante.
No dia em que as férias começaram chegou a ninfa à vila, desceu da carreira ao fim da tarde. Uma outra que vinha do comboio havia de pô-la em casa. Mas o Tunante estava à espera dela. Cercou-a de rapapés e cortesias, havia de lhe mostrar a loja nova, logo à entrada das muralhas.
A ninfa deixou-se conduzir. E quando veio a hora da carreira, à beirinha da noite, prometeu-lhe o Tunante que um amigo a levaria a casa, de carrinho, à moda das princesas. E ela logo se rendeu, enleada em semelhante gentileza. Tinha mesa posta e banquete preparado, bom presunto, melhor queijo, de vinho bastava-lhe um dedal, não estava acostumada.
A princípio o Tunante foi cordato, coroou-a de rapapés, quis levá-la com bons modos. Penteou-lhe a gaforina, passeou-lhe as mãos no flanco, encheu-lhe o copo de vinho. E abriu-lhe um botão do peito, só para ter uma visão.
A ninfa aos poucos cedeu, o coração num galope. Dum lado o corpo inteiro a amotinar-se, o sangue a romper as veias, o ventre incendiado a extravasar. Doutro lado um grande medo, a cara dele a perder as feições, e um gesto tão poderoso que a assustava.
Quando quis despir-lhe a blusa, a ninfa ainda resistiu. Mordeu o lábio para evitar um grito, cruzou os braços no peito sublevado, refugiou-se no medo. E o Tunante deteve-se um momento, pareceu abandonar o campo de batalha. Foi ajeitar, ao canto, as mantas que lá tinha. Depois apagou a luz, ergueu numa braçada a ninfa amedrontada e foi estendê-la no chão.
Lá fora passaram socas a tropear na calçada. Porém a ninfa hesitou, reteve outra vez um grito. E já dois braços poderosos lhe sujeitavam o corpo, e as pernas brutas lhe apartavam as colunas, e rudes mãos lhe devassavam o peito. As socas na calçada voltaram a tropear, mas a ninfa retraiu-se. Conteve a respiração, não fosse ouvir-se lá fora o ranger do bragal que estilhaçava. Por três vezes entrou nela um vendaval, três vezes a desfolhou. Depois caiu uma escuridão desamparada, e um lago que arrefecia.
Por fim bateram à porta, era o outro que chegava. Aconchegou a ninfa no banco de trás do seu Volvo marreco e arrancou. Antes de a deixar em casa foi parar na carreteira dos moinhos do Alcaide, ninguém ali passava àquela hora.
O Tunante recolheu as mantas, fechou a porta da loja. Uma ninfa desfolhada dava casamento certo, era raspar-se um homem para o Brasil ou sujeitar-se aos códigos. Porém, em sendo o festim a meias, era ela assumida marafona e os códigos sossegavam. Cumprisse o amigo a sua parte e ficava o problema resolvido.
Quando o Outono chegou, depois das primeiras chuvas, o Tunante subiu para a camioneta e foi recolher à aldeia uns contratos de centeio. Bem o avisaram as sibilas, que desfizesse o negócio, que por lá tinha a morte prometida. Mas ele guardou a sovaqueira no casaco e lá subiu a encosta, a governar a vida. Um homem não saiu para outra coisa das mãos do criador.
O pai da ninfa já estava à espera dele, sentado no balcão. E quando o viu saltar da camioneta, de machado nas unhas foi-se a ele. O outro ficou surpreendido, não podia acreditar. Estendeu a mão à sovaqueira e pôs-se a ladear, queria ver se era verdade. Mas o homem trazia no carão a fúria dum deus irado, como quem chega duma tragédia antiga, o melhor era levar a coisa a sério. E desatou a correr.
As mulheres espreitavam à janela, gente havia que parava pelas hortas, a olhar, silenciosa. A própria tarde parou, a ver um homem cavalgar estrada abaixo, atrás doutro que fugia. Quando o sentia mais perto, virava o braço para trás e disparava. Disparou à passagem do ribeiro, e à horta da Teresa Côta, e à subida do negrilho, e à curva da fraga grande.
Agora chegámos nós à fundeira da encosta, e já cruzámos a estrada, e temos à nossa frente o açude da ribeira. Não nos sobra mais que um tiro, e já nos queima o pescoço o bafo de um deus irado. O Tunante apontou-lhe ao coração e disparou. E o machado, que lá vinha como um raio, enterrou-se-lhe no ombro.
Mas vem dalém um pastor, a correr em altos berros, vem salvar esta desgraça. O primeiro já está morto, nada podemos fazer. Para que nos serve o segundo, um vagabundo. E num golpe de machado abriu-lhe a cabeça ao meio.

Borda d'Água, lixo tóxico e cabras mochas

No meio do sertão surge um estanco, com ar de papelaria. E eu entro nele para comprar o Borda d'Água, que vislumbro no meio da colorida imprensa cor-de-rosa.
O dono oferece-me a raspadinha, promete o euromilhões. Respondo que nunca jogo. Mas na estante há uma surpresa extraviada, inesperada, essa pérola de imaginação da ficção narrativa do Afonso Cruz, Para Onde Vão os Guarda-Chuvas. Oxalá não ganhe bicho aqui.
Também se vende o CM, o jornal mais folheado em Portugal, sem dúvida porque é a maior estrumeira tóxica que existe na nossa imprensa. Mas o dono lê o JN, habituou-se a ele num café que há anos teve. E até agora nunca mais mudou.
Vende-se também queijo da Serra, mas do de cabra não há. Só no mercado semanal, duma velha que atura três cabras mochas e tem na horta um cardo para o coalho. O cardo dá flores bonitas, no Verão, muito bonitas. Que às vezes resistem aos pintassilgos.

sábado, 24 de janeiro de 2015

A casa de Saud

Comecemos por aqui, o resto vem a seguir.
A Arábia Saudita pertence há muitas décadas ao grupo dos grandes produtores de petróleo barato, pois lhe basta abrir a torneira e vê-lo correr sem custos maiores de exploração. O país é uma teocracia despótica, profundamente anti-democrática e socialmente terrorista.
A América comprometeu-se há décadas a proteger e garantir o poder da casa dos Saud... desde que o governo saudita aceitasse o compromisso de usar apenas o dólar como moeda nas transacções do petróleo. (O uso doutra moeda levaria de imediato ao colapso do dólar e das finanças da América).
A ameaça e a tentativa de usar moeda estranha ao dólar no mercado do petróleo foi fatal para o Kadhafi da Líbia e o Saddam do Iraque. Esses déspotas oprimiam os seus povos, era urgente libertá-los da tirania. (A Síria e o Irão também vinham na lista, que foi interrompida por visíveis motivos de força maior).
De forma que fica tudo entre amigos, entre cúmplices, entre fariseus, entre traficantes. Mesmo quando há sectores da Arábia Saudita que apoiam a Jihad, financiam fundamentalismos e secretamente pactuam com o EI. O tal que corta o pescoço a reféns, a jornalistas, a povos e a outros crentes.

Na Lapa

O sol, esse filho pródigo, já subiu até à Cruz de Pedra. Mesmo as cotovias rejubilam. Agora só lhe falta percorrer a longa cumeada, até parar no castro de Casteição.
Ainda tarda. Mas é tempo de ir reunindo as plantas no viveiro, que vem aí o momento de as meter à terra.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Primavera a fingir

As circunstâncias tornaram-se propícias: na véspera instalaram a Internet e eu descontraí enfim; a manhã trouxe um sol primaveril, a negar as previsões dos manda-chuvas; a Caixa tinha pago ainda uma vez a reforma duma vida longa. E assim me decidi a abandonar o fojo, a mandar à bardamerda a austeridade e a dar uns sinais de vida. Fui comprar um chá de bergamota com florinhas de aciano e almoçar num restaurante à beira dum riozinho das minhas predilecções. Isto na cidade que me está mais à mão, uma que tem, nas alturas da sé, um traseiro desnudo e insolente exibido a Castela.
Nos passeios havia montões de neve, suja e dura, congelada, restos do nevão da véspera. E uns automóveis arriscavam-se nas ruas às apalpadelas. A aragem cortava como facas apesar do céu azul, e eu lancei mão dum bastão ferrado de montanheiro que anda na mala do carro. Há muitos anos que o trouxe de Krimml, uma cascata alpina que fui ver em tempos mais promissores. Salvou-me de me estatelar no gelo, enquanto andava à procura duma latinha do chá.
No restaurante estavam à minha espera uns sabores muito antigos, à beira do riozinho. E às tantas faiscou à flor da água um guarda-rios, um pássaro fugidio que é azul com pinceladas de fogo. Parou à minha frente no braço dum salgueiro, mirou as trutas que flanavam na corrente e foi à vida, como as setas disparadas.
Eu pedi à camareira uma embalagem e trouxe para casa o almoço que sobrou, porque era demasiado. E assim voltei às falácias da puta da austeridade, porque afinal a primavera era a fingir.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Nine eleven?

Não é possível dizer melhor o que foi aquilo e o que pretendia. 
[rapinado aqui]

Dez minutos de leitura

Sobre a alienação da TAP, às mãos duma quadrilha de facínoras, ignorantes, cobardes e traidores.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Havemos de voltar

 À crítica, à poesia, à arte das palavras havemos de voltar. E mesmo aos palavrões, tendo que ser. 
Se a força nos fugir, alguém há-de ajudar.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Semanada

Não fora a horta, e os cuidados que requer a terra dela, não sei bem como teria sido esta minha semana. O carro esteve de baixa um ror de tempo, a exigir uma junta da culassa que se queimou por causa dum antigelo. A França parece que entrou em guerra e eu ainda não vi imagens dela, porque os artistas da MEO já por duas vezes agendaram a montagem duma antena, e duas vezes faltaram. Dum telefone e da Internet o melhor é nem falar para não levantar a lebre. Não sei como se vive hoje sem eles, mas só mos prometeram daqui por uma semana.
Ficou-me um tambor de roupa aprisionada na máquina. Entre inconfessáveis subtilezas, os alemães têm fama de entendidos em forjas e tecnologias. E sê-lo-ão. Foi por isso que uns artistas mandaram vir da Alemanha o aparato, pediram-me por ele uma fortuna e instalaram-mo em casa.
O manual de instruções é um alcorão completo. Por deformação profissional li-o mais do que uma vez, e concluí que à máquina só lhe faltava falar. Escolhi um programa adequado à roupa suja, e tudo correu bem até chegar a centrifugação. Aí desatou a máquina aos coices e aos pinotes, e na emergência decidi cortar-lhe o pio, antes que me deitasse a casa abaixo.
Pudera, a pobre! Os profissionais do ramo instalaram-na num buraco, ligaram-lhe as entradas e as saídas, prontíssima a funcionar. Mas não lhe retiraram os quatro ferrolhos que a protegiam durante o transporte. Com o programa interrompido, o tambor deixou de abrir, por lógicas de básica segurança.
Estava então a correr a quinzena das Festas, que desta vez foi uma rebaldaria. Às quartas a ceia da Consoada, o Ano Novo a chegar às quintas, lá pelo meio uns sábados e uns domingos onde se ganharam direitos ao lazer, conforme vem escrito nos códigos em vigor. De forma que as oficinas fecharam quinze dias, e os artistas foram-se às rabanadas e a uns copitos em família.
Eu acabei por me esquecer da roupa, abdiquei da informação, fiz o que pude para resistir ao black-out malsão, à paralisia inútil, a uma grande vontade de partir em viagem sem destino. Mas fui-me à horta e preparei a terra para os mimos que hão-de vir na primavera. Quando o cavername se queixava, ouvia um rádio antigo que ali guardo. E por pouco confiar nos romances que hoje se premeiam, fui ler outra vez Os Cus de Judas, dum Lobo Antunes que ainda não era um génio, e ajudou então a pôr a Europa a ler-nos.
Entretanto uns nómadas suíços andaram aí uns dias, aqueceram o rabo ao madeiro das tradições e partiram outra vez. É que para lá dos Pirinéus trabalha-se. E é justamente por isso que os indígenas mereceram sempre o fadário andarilho que há gerações os persegue.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015