quinta-feira, 10 de abril de 2025

As Aves 6-3

À medida que os tanques ocupavam a cidade, seguiam-nos multidões eufóricas que enchiam de ruído largos e pracetas. Era a hora do ranger de dentes que chegava. Já rasga este ministro as temerosas vestes, já outro arranca os cabelos às punhadas, não poucos ameaçam desfazer-se em prantos, um por falência de ânimo, outro por sobrecargas de consciência, todos por contrição tardia. Mas o ministro da guerra acaba por achar uma saída, neste compasso extremo incumbe-lhe o mandato, mais que a ninguém. Avance este ordenança de picareta em punho, logo ao fundo do túnel nos aguardam as luzes do ministério da marinha, saímos o portão do arsenal como simples paisanos, gritamos um viva ao reviralho indispensável sendo, ninguém dará por nós.

E assim foi, que estes soldados trazem a redenção, não são jacobinos cortadores de cabeças. Ninguém dará por eles, como ninguém deu pelas notícias primeiras dos jornais, são as de ontem e do costume, se traziam alguma actualidade logo ali a perderam, os próprios ardinas calaram o pregão.Há-de, porém, ser verdade, se quem o diz é o jornal de maior circulação em Portugal, uma multidão de excelências esteve a inscrever-se no livro de cumprimentos ao Chefe do Estado, que é a excelência máxima, por acaso moramos no mesmo bairro mas não andamos tu-cá tu-lá todos os dias, era o que mais faltava, ninguém nos levava a sério, daí usarmos destas cortesias para nos declarar veneradores e atentos, e mais que tudo obrigados, e foram elas a excelência Costa, presidente da Câmara Corporativa, e a excelência Baptista, ministro do Interior, e a excelência Santos, procurador geral da República, e a excelência Marchueta, governador civil de Lisboa, e a excelência Sebastião, presidente do município da capital, e a excelência Rosas, governador do banco que manda cunhar os dinheiros do império, e a excelência Medina que é embaixador, e ainda as excelências Pinto e Rebelo que não se sabe o que são, e, se mais alguém veio cumprimentar o venerando Chefe do Estado e aqui não é designado, é do repórter a culpa, por não ter reparado em tudo quanto havia que ver, ou de quem lhe censurou a peça, por ter ele visto mais do que devia.

E no paraíso terrestre dum milionário do estanho, por entre centenas de convidados da melhor sociedade internacional, conviveram durante oito dias sete barões, seis condes, cinco princesas, quatro lordes, três duques com as respectivas duquesas, finalmente um rei e uma rainha, e a famosa begun Aga Kahn. Tão ilustre e luzida comitiva é que vinha a calhar a esta mulher, sentada ali sozinha no banco dos réus do terceiro juízo criminal da Boa-Hora. Tem trinta anos e acaba de ser detida na cidade do Porto, onde levava há doze uma vida de trabalho pacato, com falsa identidade. Um dia já distante agarrou nos comandos do avião da TAP que vinha de Casablanca, e andou pelas cidades do país a distribuir panfletos, há trezentos anos era o canto do cego a chorar pelas feiras a Índia que se afogava, hoje requerem-se outras técnicas, o destino é parecido. E foi assim que choveram panfletos em Beja, em Faro, no Barreiro, em Lisboa, não se pense que os tanques arrancam dos quartéis por ter passado mal a noite um capitão. Chama-se Helena esta mulher, que volta finalmente ao nome que lhe incumbe, e vai ser condenada aos curros do Aljube, se nenhum milagre vier a acontecer. Por pouco iludia até ao fim os troianos da Pide, e agora descobre toda a razão que tinha, ao predizer que a derradeira e final salvação havia de ser um oportuno levantamento militar.

De militares quem sabe é o Serviço de Informação Pública das Forças Armadas, morreram em combate o primeiro cabo Fernandes,de Paço de Arcos, o segundo-sargento paraquedista Tomé Costa, de Bubaque, concelho dos Bijagós, este provavelmente negro, e um capitão do Alvendre, para quem não souber uma aldeia a três quilómetros da Guarda, já teve um castro e um castelo e agora não tem nem um nem outro, que o primeiro foi derrubado há muito e o segundo foi destruído agora, e mais dois soldados, o Gaspar de Valongo e o Correia de Cinfães, o primeiro cabo Castro, que não era de pedra, como o outro, e veio de Guimarães, e o furriel Melo, este da Vila da Feira.

Alguns deles seriam homens casados, é o natural da vida, se tinham filhos quem vai agora pôr os olhos neles, incómoda questão que nos fica em aberto, não sabemos responder. O mais certo, porém, é ser a maioria gente solteira e descomprometida, jovens que mal tinham começado vida, reparemos nas fracas patentes de quem ainda não passou da flor da juventude. Pois forte razão havia para todos se manterem nesta ocasião bem vivos e atentos, a oportunidade não se repetirá, acaba de ser proclamada a rapariga ideal deste ano, tem desassete vicejantes anos, é no Porto que vive e chama-se Ana Paula. Anda um homem à procura a vida inteira, tantas vezes se engana, e se repete, e mulher a gosto nem vê-la, e agora tínhamos aqui toda a papinha feita, salvo seja, a rapariga ideal nestes exactos termos, porque os testes não mentem, muito menos ia agora enganar-se o olho clínico do júri. (Cont.)

quarta-feira, 2 de abril de 2025

As Aves 6-2

O povo de Cacilhas começou a descer o portaló dos barcos que atravessam o rio, e tropeçou nos soldados que faziam guarda às esquinas da praça, não é que viesse a despropósito uma revolta da tropa, importa é saber a mando de quem estes vão e com que fins, quem terá ouvido aqui alguma inconfidência é o rei de bronze que está ali de vigília no meio do terreiro. Mas tudo isto são manobras de populacho republicano, delas se precata el-rei, indiferente e alheio a esta disputa, tanto precisávamos nós de o saber e ficamos na mesma.

Vem descendo a avenida esta mulher, traz encostado ao peito um ramalhão de cravos, parece que vai engalanada para a festa, e ainda não sabe que a uma festa se dirige. É dia de aniversário na casa onde trabalha, razão de tão generosa provisão de flores, modo maior de coroar a fidelidade dos clientes. Mas desde manhã cedo se estão ouvindo na rádio velhas cantigas há muito proibidas, do Zeca Afonso e outros, ou dormem hoje os censores ou alguma coisa aqui aconteceu, entre boatos e rumores toda a gente anda num alvoroço, e mais que todos o patrão timorato, fechou o restaurante e mandou para casa os empregados, escusadas são as flores. Ao chegar ao Rossio encontra a mulher os primeiros soldados, simpáticos parecem, se não é justo dizer que mais parecem civis, em cima do camião da tropa. Um deles pediu-lhe um cigarro, num gesto que há-de considerar-se peregrino, visto o tempo e as circunstâncias, ofereceu ela um cravo vermelho, era o que tinha. O soldado engrinaldou-o na boca da espingarda, por um momento olhou a obra e achou que estava bem, porque sorriu. A mulher viu-se tomada por um contentamento que não sabe explicar. Deu o seu gesto em repetir-se, sem o saber tinha baptizado a revolução. E soltara, entre o povo e a tropa, uma conivência de que ninguém tinha memória.

Também Geneviève guarda lembranças da revolução mas ruas de Paris, em 68, delas nos está dando entusiasmada conta. Gabriel vai ouvindo e acaba a sorrir, discretamente. Lembro-me bem, concede ele, o mundo viu como se esgotou nas bombas a vossa gasolina que ninguém distribuía, por isso andou a pé nos bulevares muita gente que não tinha melhor pretexto para o fazer. O mundo viu as vossas duquesas, podres de chiques, a distribuir boquinhas de êxtase e cigarros de luxo à juventude que incendiava automóveis e esventrava calçadas, entre batalhas com esquadrões da polícia, enquanto um barão de Rolls-Royce distribuía comunicados de apoio à revolta, conduzido pelo motorista de uniforme. O mundo inteiro ouviu-os gritar que era proibido proibir, que ser realista era pedir o impossível, e exercícios que tais. Dizem que foi assim a vossa revolução, uma espécie de tédio da fartura, e não serei eu a negá-lo, também entre nós houve coisas parecidas, vistas à proporção. Mas, ao comparar histórias e lembranças, convém saber primeiro de que estamos falando. Nesse tempo, talvez houvesse no meu país um português antigo, não sei onde, com memória de ter lido, alguma vez, um jornal que não fosse retalhado pela censura. Três quartos dos meus concidadãos nunca tinham visto uma urna de voto, viciada se convinha. e quem tivesse menos de cinquenta anos não vivera um único dia da vida em liberdade. O ponto de partida da minha revolução era a penúria original, era a mordaça abjecta, era a histórica cegueira, era a mentira iníqua. Andaram entre nós os vossos pensadores, que a novidade e os ecos de anarquia atraíram, lembro-me deles a analisar movimentos e a semear ilusões, a explicar como se virava o mundo sme patrões, a empurrar docemente o povo para becos sem saída. Da memória das vossas revoluções, o que reverencio é o estrondear da tomada da Bastilha, é o fragor fugaz das barricadas da Comuna, é o pavor da vossa fidalguia empoada e o começo do mundo que se lhe seguiu, bom ou mau tenha sido.

Vão três pessoas aconchegadas no limitado espaço duma carruagem de comboio, em conversa amena sob o dossel da noite, parece que tudo as vai aproximando, até que vem meter-se entre elas um mar inteiro de distância. Há uma perturbação no ar, ao instinto sagaz de Geneviève não escapa a intolerância radical de Gabriel, que não disfarçou o sarcasmo, será tudo obra do cansaço e do rodar da noite. A mulher deixa cair a última pergunta, primeira de todas na lógica das curiosidades, quer saber por que vão neste comboio os viajantes. Porque a revolução é como o velho Cronos, responde Gabriel, cedo se põe a devorar os filhos, mormente os que mais ideal e maior zelo lhe entregaram, é dos livros que nenhum logrará escapar. Mais não disse Gabriel, e a isto não soube Geneviève o que responder, quiçá ficou na mesma, o silêncio instalou-se.

Gaspar lamenta o rosto da mulher a fechar-se, próprio de quem se ausenta, distante vai já Gabriel, recostado finalmente na poltrona, de olhos fechados, as mãos cruzadas sobre o ventre inquieto. É da natureza da revolução, pensa Garpar, tão difícil de levar à prática por não haver possível consenso sobre ela. Ponham-se dois a discuti-la, que logo este alega um sofisticado mal-de.vivre onde aquele argumenta com a fome ancestral da terra, sonha um com o devaneio da liberdade sem limite, quando outro aspira apenas à mesquinha dignidade original do ser humano. Todo o movimento é ditado pelo modo como cada homem vê o mundo, segundo o lugar que nele ocupa, houvesse geral entendimento sobre a revolução e logo ela se tornava supérflua.

A nós saiu-nos a personagem dos limites da urbanidade, apuradíssima no lugar e na circunstância, forçoso nos é silenciá-la. Ainda bem que Poitiers está perto, é o destino da mulher. Cabe agora a Gaspar devolver-lhe o saco de viagem, ela endireita a capa e despede-se numa cortesia discreta, se este aceno não foi uma afeição que apenas aflorou. No resto da noite só Gaspar velará, entregue ao fluir dos pensamentos. Acrescentemos nós aqui o que por dizer ficou, desses dias de júbilos e risos, de ilusões e de fraternidades que não vão repetir-se, desses dias de angústias e delírios em que a vida ganhou um final sentido novo, e a certeza segura de que o futuro estava ali, ao alcance da mão. (Cont.)

 

segunda-feira, 31 de março de 2025

As Aves 6-1

O comboio entrou devagar na estação de Bordéus, inundou de ruídos a majestosa nave desta catedral de tijolos e aço, erguida há um século pela fé no progresso mecânico, e parou ao longo do cais, com grande chiadeira de ferros. Ao fundo um relógio colossal marcava a meia noite. Cansados da imobilidade, os viajantes agitaram-se quando a luz crua dos holofotes invadiu o compartimento. A conversa parou, e Gaspar levantou-se a esticar o pescoço para a vastidão das plataformas, a geometria rígida das vigas de aço, a amplidão das grandes vidraças abertas para o nada da escuridão exterior. As coisas ganham outro sentido com a agitação febril das multidões diurnas, pensou Gaspar, enquanto uns poucos passageiros desciam ensonados ao cais e outros tantos embarcavam, por tão pouco nem valia a pena ter parado. E ficou a imaginar o frenesi cosmopolita alastrando pelas gares, burgueses apressados e mulheres perfumadas passando, ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó coisas todas modernas, up-lá hô! E tudo isto são êxtases de poeta sensacionista inebriado de estrépitos da modernidade, ou será este um modo de viajar pelo mundo para quem outro não teve, comparado com isto o meu país é um pequeno recanto de província.

Já, porém, Geneviève insistia, presa ainda no fio do discurso de Gabriel, a querer saber do confronto com os fantasmas antigos, como foi que as flores apareceram, não é muito comum ver militares a derrubar os mitos da história, bem ao contrário, se para eles vivem, nem a atulhar de flores a boca dos canhões, que para mais duros destinos foram feitos.

Quem tinha razão era o cabo João Saar, retomou Gabriel, depois duma hesitação. Por tão redonda ser a bola do mundo, tanto os portugueses andaram em frente, que vieram um dia a achar-se no exacto ponto donde haviam partido. O fim da guerra era o mesmo fim do império, e era o fim da tirania mais longa do mundo, Portugal acabara por dar a si próprio um nó cego, que só os militares podiam desatar. Ora é sabido como a tropa foi feita para executar as ordens que de cima para baixo sempre nascem, ao invés da geral natureza, em que tudo rompe de baixo para cima, e assim ficará justificado o traço peremptório de tantos regulamentos, e o terminal rigor dos códigos deontológicos. Não sendo de esperar que a ordem de levantamento brotasse um dia lá do alto, que é onde os mitos moram, e viesse descendo a longa escadaria, até chegar às mãos que obrigam a mover-se as culatras dos canhões, houve que fazer as coisas ao inverso, por uma vez seguindo as leis do ordinário mundo. Uma coluna de subalternos partiu de Santarém numa noite de Abril e galopou furtiva até Lisboa, ao romper da madrugada estava no Terreiro do Paço onde os ministros se juntavam, não tardou muito e já os carros de assalto do governo tomavam posição na Ribeira, prontos a tirar a limpo o que ali se passava. Se estes canhões apontados a nós se lembram de abrir fogo, era uma vez uma revolução, pensou o capitão rebelde, ciente da fraqueza dos seus meios.Para o que der e vier guarda no bolso uma granada, e avança pela rua do Arsenal, de braços levantados, disposto a parlamentar.

O homem está sozinho no meio da rua, diante dum carro de combate, o olhar fixo na boca do canhão. Ao lado, um brigadeiro floreteia o pingalim e grita ordens de fogo. E qualquer coisa remota se põe a estremecer, o mesmo nada indecifrado que se punha a vibrar no peito deste homem nos matos da Guiné, quando as granadas nocturnas de morteiro caíam a assobiar e lhe explodiam cegas à volta. Lá sempre havia o refúgio da terra, como um regaço materno acolhedor. Mas agora o homem está de pé em frente do canhão, à luz crua da manhã, os braços levantados sobre as pedras madrastas da calçada, e todo o peso do peito lhe assenta no fio gelado duma baioneta, se Deus terá hoje acordado cedo, era esta a hora de intervir.

Já o alferes recusa cumprir o comando hierárquico, já o brigadeiro vocifera ordens de prisão e repete a ordenança, que seja o soldado a disparar. Mas o canhão permaneceu calado, enquanto rodava lentamente a boca escura para os lados do rio, e foi nesse instante que a revolução venceu. Os mitos foram desabando na calçada em catadupa, a explodir nuam auréola de estilhas que luziam, pareciam afinal manipansos de filme em movimento lento, e no peito deste homem alguma indecifrada coisa voltou a serenar.

A esta hora acordava a cidade. (Cont.)

sexta-feira, 28 de março de 2025

As Aves 5-9

Incapaz de ver os erros do passado, só restava a Portugal passar a vida a repeti-los. Um dia tomou conta do governo um professor de Finanças, bisonho camponês que a igreja modelou num espírito de frade, austero, ardiloso, agudíssimo, implacável. Conhecia como ninguém a alma dos portugueses, era ele a sua mais perfeita imagem. Desdenhava da fatuidade dos salões e desprezava as multidões primárias, era um deserdado que só acreditava em elites. Não apreciava indústrias, por tanto se temer do ruído dos operários a sair do bojo das fábricas, proibiu a coca-cola para que não houvesse exemplos de sociedades eficazes, sonhava-se ministro dum rei absoluto deslocado no tempo, um Pombal despótico e tirano a quem sobrava a manha e faltava o esclarecimento. Governava o país do fundo duma vela, e, milagre supremo, pôs em ordem as finanças pelo cálculo mais elementar. Domesticado o povo pela inanição e pelo silêncio, mourejavam três quartos dum país infantilizado há séculos, para que o restante quarto vivesse à tripa forra. Era esta a lei universal do mundo.

Mas a história, que nunca tem pressa, acaba sempre por chegar, e o fim chegaria também aos impérios coloniais europeus. Os mapas do mundo começaram a mudar, ganhavam um país novo em cada dia. A França majestosa, do alto da sua soberbia, fugira da Indochina com as calças na mão, e retirara-se da Argélia antes que as mesmas lhe caíssem definitivamente pernas abaixo. Empurrados pelo vento, de gurupés apontado a casa, viam-se passar, mar acima, rebanhos de caravelas roídas pelos búzios, a adornar de fantasmas de almirantes de barbas e conquistadores zarolhos, de destroços de piratas e negreiros, de missionários comidos pelos cafres, de donatários cúpidos, de exploradores de sertões, e dos vagamundos de que falavam os livros antigos. Alheado do mundo na penumbra da cela, o professor de Finanças pôs-se a desfraldar os antigos cenários pintados da epopeia, a deformar a história para melhor dar vida aos mitos. Do dia para a noite as colónias deixaram de o ser, e a um toque de vara de condão sumiram-se no ar os portugueses de primeira, de segunda, de terceira, qualquer rústico de Fafe era tão português como um nómada qualquer do deserto de Moçâmedes, todos filhos duma nação que não cabia na Europa inteira, vastíssima de Lisboa à Sibéria, e o ponto mais alto e subido da pátria era o pico do Ramelau, na parte leste da ilha de Timor. Um dia, três mil soldados de chinelas, sem munições nem armas, vieram a achar-se em frente dum exército de quarenta e cinco mil indianos, que reclamavam Goa. Invocado ali o infante D. Henrique, logo ordenou o professor de Finanças que nem um português sobrasse vivo, para que o destino pátrio se cumprisse. Já sorte menos funesta colheu os dois amanuenses, que no forte de São João Baptista de Ajudá mantinham vivo o esplendor imperial, e velavam a memória do tráfico negreiro. Foi-lhes apenas ordenado que lançassem fogo à praça, antes de a abandonarem aos negros e baterem em retirada.

Um império de marionetas de feira, que durante séculos arruinara a alma da nação e punha a rir o mundo inteiro, tinha de acabar como sempre vivera. E quando a guerra começou nas fazendas do Congo e nos cafezais dos Dembos, abrindo o pano ao último acto da tragicomédia, ninguém ficou surpreendido quando o lapuz das Finanças atulhou de soldados os porões do Niassa e mandou levantar ferro para Angola, rapidamente e em força. A indolência e a cupidez, que tinham alimentado a vesânia do império, transformaram-se em paranóia. Diante do turbilhão que se podia imaginar, qualquer simples espírito cristão saberia que era urgente salvaguardar os povos, as vidas,os haveres, em vez de os lançar a todos num braseiro. Mas os políticos dementes de Lisboa tomavam-se por actores dum destino providencial, estavam ali para defender da barbárie a civilização ocidental. Vinha aí, sem demora, a terceira guerra mundial. E o país devia, assim,subir ao gólgota, para assegurar, no fururo, a salvaguarda do império e a redenção do mundo. Um dia, o mesmo mundo ia dar-nos razão.

Mas não chegou a dar. Nem nós a tínhamos, nem a prometida guerra apareceu a trazê-la numa bandeja. Em lugar disso, o que fez o mundo foi ostracizar-nos, foi mandar-nos rezar uma missa por alma, foi esquecer que existíamos. E realmente, se alguma vez o foi, o país de Portugal deixara de existir. O melhor da juventude era sacrificado no açougue dos sertões de África, ou desertava aos milhares, preferindo lavar à mão os pratos todos da Europa, a deixar-se trucidar nos escombros da história. Abandonado a si mesmo, a ver se escapava à fome, o povo há muito que fugira a salto, das aldeias abandonadas a velhos tristes, a crianças ao deus-dará.

De forma que, durante treze anos, a tropa fez das tripas coração, para dar aos políticos dementes de Lisboa o tempo de escreverem o testamento do império. Mas eles carregavam a maldição da Índia na alma, e passavam a vida a jurar que não haviam de ser a geração da traição. Preferiam a hecatombe dum exército derrotado a afogar-se no mar, ou a galopar sem norte pelo sertão, ao compasso dos tantãs da sanzala. Foi por isso que a minha revolução aconteceu. (Cont.)

segunda-feira, 24 de março de 2025

As Aves 5-8

Mas os filões do sertão haviam de exaurir-se, e um dia o Brasil tornou-se independente, com grande consternação geral. Assim desamparado, passou o reino a viver de mão estendida, governado por estrangeiros, ao sabor dos encontrões da história, igual a uma torrente que as leis da natureza impedem de estancar, e do alto do monte se despenha aos trambolhões. De mãos vazias, quando as deviam ter carregadas de vergonha, os poderosos do reino puseram-se a alimentar de lendas a escudela do povo, a entreter-lhe a alma com epopeias de bruma, a ofuscar-lhe os olhos com glórias de artifício, como se faz aos touros nas arenas. Entretanto burgueses do comércio foram tomando o lugar duma aristocracia degenerada e frouxa, desempregada dum império que há séculos inventara, e que não chegou a existir. Sonhavam só com uma noiva fidalga, com o aluguer dum título, com a pechincha dum brasão, para ascenderem ao baronato. O resto era um país de heróis do mar, a divagar entre quimeras, a consolar o ouvido com ecos de miragens, e a bradar às armas por esplendores de antanho.

Mais porque os meteram à força nos navios ingleses do que por acreditarem em tais brados, é que milhares de portugueses acabaram imolados nas trincheiras da guerra da Flandres, onde ninguémos chamou, onde ninguém os queria, ou vieram a morrer perdidos nas aldeias, dos peitos que trouxeram rebentados dos gases das granadas. Mas a maldição da Índia mantinha-se em vigor, e era preciso salvar as colónias africanas da cobiça europeia. Verdadeé que só os degredados lhes sabiam dizer o paradeiro, mas foi delas que a hidra passou a alimentar-se, com redobrada sofreguidão.

Gaspar ia ouvindo o companheiro sem pestanejar, já repeso de apressados julgamentos, dos juízos levianos que escutámos. A tão pouco se resume o drama português, que há muito tempo assim é e agora vemos repetido. Aos que tocam a guitarra falta a unha, a quem tem unha interdita-se a guitarra. Ganham os tocadores de rabecão. E com estes pensamentos questionava Gaspar a rudeza duma frase, a segurança duma afirmação. No íntimo, porém, a entender finalmente a imagem fatal do plano inclinado, por onde o país há séculos deslizava, no íntimo a entender que a guerra das colónias fora um maldito fadário inelutável, que só uma final rebelião podia ter quebrado. 

Geneviève tornou à sua. Por certo houvera em todo o reino algumas vozes críticas, quis saber por que ninguém afrontara o destino, durante tantos séculos. Concordou Gabriel que as tinha havido sempre, múltiplas e lúcidas, agudíssimas vozes de poetas, de metres e diplomatas, de alguns fidalgos e até príncipes da corte. Mas vozes insubmissas acabaram sempre em Portugal penduradas num prego atrás da porta, que é onde se enforcam os trastes sem valor, ou afogadas na poeira húmida de sótãos e masmorras. A começar pelo próprio Camões, que sem remorso foi deixado a morrer na indigência, antes de fazerem dele o símbolo da pátria. Ao longo dos tempos, todas as castas poderosas lhe usaram a épica voz para dar vida aos mitos de que se alimentaram, escondendo-lhe, porém, o verbo crítico, da estulta e fatal temeridade, da cupidez corrupta, da rudíssima e torpe ignorância, e por fim da mísera condição de abandono da pátria, caída em apagada e vil tristeza.

E outros houve, ao longo de séculos, que fizeram à pátria perguntas que ficaram sem resposta, e com ele irradiaram uma luz vivíssima, e acabaram na fogueira, ou na masmorra, ou no exílio, para sossego do trono e do altar. Em nome da pátria, os poderosos devoraram sempre os mais sabedores de todos, os mais insubmissos e os mais lúcidos, os Damiões de Góis e os Teives humanistas, os Vieiras e os Cavaleiros de Oliveira, os Verneys e os Ribeiros Sanches, e até os duros Pombais, quando existiram, os estrangeirados iluministas, os liberais malhados, os republicanos maçons, os socialistas utópicos, os Jesus Caraça e os Azevedos Gomes, os Rodrigues Lapa e os Pulidos Valente, as Marias Lamas e os Jorges de Sena e os Luíses Gomes, e outros quantos, nem um célebre bispo do Porto escapou. (Cont.)

quinta-feira, 20 de março de 2025

As Aves 5-7

Facto é que cedo houve quem se pusesse a falar dos fumos da Índia, que traziam mais riscos de vida que proveito. E alguma real voz afirmou, na assembleia das cortes, que a sustentação do império só poderia obrar-se por milagre. Entretanto a coroa alguma coisa havia enriquecido, Lisboa alcançou uma prosperidade requentada e balofa, é verdade que uns poucos ganharam uma carreira, outros muitos apressada sepultura, mas ao país geral restavam só miragens, a tornar cada vez mais imprecisa, cada vez mais difusa, a linha do horizonte. 

Como se tanto não bastasse ao reino, confundido entre um império que não chegava a sê-lo, e um mar feito cemitério de náufragos e mitos, um rei menor, fanatizado e débil, desembarcou em Marrocos, avançou pelo deserto e pôs-se a fazer negaças a Mafoma. Por lá deixou, insepulto, quanto de Portugal restava, salvou-o a honradez de lá morrer também. Assim órfão de tudo, numa agonia mortal que hoje ninguém poderá avaliar, só restou ao aturdido povo recusar as más novas que vinham de além-mar. Saudoso das miríficas glórias do oriente, incapaz de entender o destino, correu a sentar-se numa duna, cego do nevoeiro, à espera do rei que havia de voltar na espuma da maré.

É nossa humana condição geral. Por um dia ou por um ano, não raro durante séculos, todos negamos a realidade que nos é impossível suportar. O que há, porém, de trágico, no caso de Portugal, é que ele ainda hoje espera o rei que nunca veio, ainda hoje continua a buscar numa Índia qualquer a solução final, ainda hoje não aceitou que só no cais da sua terra se mantém firme o chão.

Com a sujeição a Espanha, e as derrotas e traições às mãos dos holandeses, tantas conquistas em breve estavam reduzidas a um par de praças decaídas. Nas feiras do reino começaram a correr folhetos a tostão, e os troveiros de rua profetizavam a queda iminente da Índia imperial, que figuravam já no leito de morte, com uma vela na mão. E o rei restaurador confidenciou a um visitante francês que a abandonaria com prazer, se houvesse um modo honroso de o conseguir.

Mas não havia então, nem haveria nunca. E cem anos depois, encontra o segundo viajante a mesma insânia imperial mudada para o Brasil. É verdade que tudo aqui era diferente. Enquanto na Índia se tentou ordenar uma impossível sociedade de guerra e de comércio, onde o mais ínfimo gesto se escorava, cada dia, no gume duma espada, o Brasil foi terra generosa, vaca leiteira do reino fecundada pelo sangue de escravos, que se desentranhou em proventos para os mercadores europeus. Mas o resultado final foi semelhante. Enquanto na Europa se ia inventando a riqueza pela experimentação e pela indústria, continuavam os portugueses a perseguir miragens, a cortar as amarras que os prendiam ao cais, a arrancar as raízes da alma e a lancá-las ao mar como coisas inúteis, ofuscados somente pelo brilho das pepitas do Rio das Velhas. E agora era a própria governação real quem degolava o reino, quem a mãos ambas lhe torcia o garrote nas veias por onde a vida devia fluir, quem deliberadamente lhe metia a cabeça no laço da forca inglesa. A harmonia das núpcias entre o altar e o trono atingia o esplendor. Lisboa aguardava no cais a chegada do trigo francês com que matava a fome, e nos pátios corria uma aragem atávica e fadista, dada às tragédias de faca e alguidar, que era fruto dum espírito alienado e sorna, afeito à delação dominicana. O rei desbaratava o que não tinha, um dia morrerá sem deixar no tesouro com que pagar ao coveiro, as cidades abarrotavam de conventos que eram sucursais do inferno, a marinha do império eram cavernames podres a boiar do Mar da Palha, e o povo deserdado, bêbado da superstição e do fanatismo dos padres, acorria ao sangue das touradas na Ribeira, ou a ver queimar hereges  no Rossio, o olhar estonteado pelo brilho vivíssimo da talha dos altares. (Cont.)

quinta-feira, 6 de março de 2025

As Aves 5-6

Geneviève agitou-se no banco, no íntimo a sentir-se culpada, da ligeireza com que falara da revolução das flores. Quis saber por que dava Gabriel ouvidos a palavras de estrangeiros, em vez de usar vozes de portugueses, se da portuguesa história se tratava. Gabriel deixou o reparo no ar, urgia concluir.

O que pretendo mostrar-lhe, por isso de tão longe parto, de onde tudo começou, é que a aventura da Índia foi para os portugueses uma tormenta muito maior que a nau, como se ouve dizer, foi maldição que o país ficou, desde então, condenado a remir. Como se, ao vencerem o mar, tivessem os marinheiros desafiado uma qualquer lei do universo, ou um regulamento caprichoso da vida. Alguns no reino o perceberam, alguns em vão se lhe opuseram, com tão poucos homens e mais diminutos recursos, muitos ainda hoje não entendem como tudo foi possível. E o espanto maior, para quem nos conheça bem, é que toda a empresa se iniciou no mais perfeito conhecimento e no maior rigor da técnica. Os portugueses construíram as naus mais avançadas desse tempo, conheceram os ventos e as correntes do mar como ninguém, elaboraram cartas, artes de marear e roteiros de viagem que eram a cobiça dos mestres europeus. Venceram as lendas antigas do mar tenebroso e alcançaram a Índia, e submeteram as deslumbrantes terras orientais à força de canhões, e feriram de morte culturas requintadas, e apoderaram-se das rotas do comércio com uma ferocidade selvagem, e trouxeram à Europa os ouros da Mina e do Monomotapa, e os escravos de Ajudá, e as canelas de Ceilão, e as pimentas do Malabar, e as porcelanas da China, e as sedas do Japão, e os cavalos da Pérsia, e os algodões de Cambaia, e a noz moscada das Molucas, e os rubis, as pérolas, as lacas, e até um rinoceronte que emboscaram num sertão de Bengala e vão oferecer ao papa. Já se arredondam em Roma bocas de estupefação, sabes tu lá, minha filha, diz-se que vai chegar aí o supino fulgor do exotismo. Porém o mor espanto não vamos nós poder vê-lo, e é o que haveria de mostrar-se nos grandes olhos da béstia couraçada, por se ver assim à frente dum leão, ainda por cima papa. É que já se vai afundando, à vista de Génova, a caravela que o transporta, tarde se arrependem os náufragos de tanta gala perdida, e mais que todos repesa está a fera, para tão pouco não merecia a pena ter dado a volta a metade do mundo, de estômago revoltado. Um dia há-de ela entrar no palácio de S.Pedro, mas pela simples porta do cavalo, já inofensiva e amparada em cabrestantes, a barriga inchada de palhas amassadas e os velados olhos mordidos dos caranguejos.

Parecia a vida uma festa. Porém, não tardou muito, já os cofres do rei merceeiro abriam bancarrota. E, do alto dos penhascos do Cabo da Tormentas, começaram a avistar-se os bandos de chacais e as esquadras de bucaneiros europeus que demandavam a Índia, tomados de cobiça. Como se nesta caçada tivesse tocado aos portugueses o papel do podengo, no levantar da lebre que outros haveriam de pendurar à cinta. São desses europeus as vozes que me interessa ouvir. Não chamo a terreiro, porém, um estrangeiro incerto e qualquer, antes estes dois de inquestionado saber e não discutida ciência,  que viveram connosco e tiveram de nós desafogada vista. Ainda o delírio do império não ia além dos primeiros passos, já o corpo da nação portuguesa se desagregava, e o viajante primeiro divisava os sinais da ruína. Do mesmo passo que eram empurrados para a Índia, os portugueses cortavam as amarras que os prendiam ao cais, condenavam a sua terra ao abandono, arrancavam as raízes da alma e lançavam-nas ao mar, como coisas inúteis. Foi por tal ver que ficou tão espantado o cabo João Saar, marinheiro entre muitos, da armada holandesa em Ceilão. Já que, onde quer que cheguem, logo os portugueses pensam instalar-se para o resto das vidas, sem mais tenções de voltar a Portugal. Não sei que terra a deles há-de ser, a mim quem me deraque passem seis anos de serviço para retornar à Europa. Pois sendo redonda a esfera, não se dão conta, os pobres, de que sempre ao mesmo sítio há-de tornar quem em frente vai correndo. (Cont.)