quinta-feira, 12 de junho de 2025

As Aves 6-9

E sobre o mais continua Portugal a arder, é sul e é norte, razão tinha o monsenhor. Será deles a culpa, centenas de sedes comunistas são incendiadas por todo o país, em Famalicão cai o primeiro morto, algumas dúzias mais hão-de cair. Rebentam bombas em Pinhel, nas ilhas, em Lisboa há carros destruídos, casas, instalações, de todas a maior bomba é roubarem os bombistas o tesouro de Santa Maria da Oliveira, será tudo para glória de Deus. Os mutilados do império cercaram a assembleia de São Bento, este largo é uma floresta de muletas e de pernas de pau, aqui se tornam máquinas de guerra as cadeiras de rodas, tanto tempo escondidas, faça-lhe a conta quem dúvidas tiver. O Secretariado Nacional Provisório pró-Conselhos Revolucionários de Trabalhadores Soldados e Marinheiros apela à dissolução da Constituinte, e alguma voz promete, o nosso Outubro chegará também. Chega não chega, pedem os operários desta fábrica têxtil o regresso do patrão, e o general do olho de vidro ameaça atacar o Alentejo dentro de três semanas. A norte e a sul colunas de estrangeiros garroteiam Angola, e cinco mil cubanos aguentam Luanda a poder de metralha. A popa do império afunda-se no mar como um Titanic, Dili está a ser arrasada, e o governador de Timor pede a Lisboa médicos, enfermeiros e remédios, em desespero pede a Lisboa os meios que nunca virão, para salvaguardar as próprias tropas. Trinta mil manifestantes assaltam cinquenta autocarros da Carris e rumam à Trafaria, a libertar dois soldados presos. Meio milhão de punhos erguidos encurralam em São Bento deputados e governo, são operários da construcção civil que vieram de longe à procura dum czar, à procura dum palácio de inverno, mas já vão desistindo porque nem um nem outro acharam, e é um Aljube novo que aqui foi ensaiado, para alguém há-de servir. A Renascença é dinamitada por ordem superior, o governo suspende actividades por falta de condições, Carlucci já reuniu um grupo de militares e partiu para a América, os dados estão lançados. (Cont.)

quarta-feira, 11 de junho de 2025

As Aves 6-8

Técnicos soviéticos trabalham num veículo capaz de rodar a mil e duzentos quilómetros por hora, não descansam enquanto não vencerem o recorde americano de velocidade em terra, e assim já não terão demora no caminho as mães da Rússia que viajam entre a praça Pushkin e o mausoléu de Lenine. A ilha de São Tomé festeja o levantamento de Fevereiro de cinquenta e três, o tal que terminou com centenas de negros mortos, no cais do Pidjiguiti foi em cinquenta e nove. Trinta mil camponeses sem trabalho ocupam terras incultas da Casa do Cadaval, e do latifúndio de Alcácer, e da herdade da Chaminé. Os comunistas são expulsos das ilhas do Atlântico, ao pontapé, à bomba, que estes são domínios predilectos da América e a América não dorme. Uma estátua de bronze apareceu esta manhã decapitada e Santa Comba Dão, e cinquenta polícias, que estavam barricados nesta esquadra de Setúbal, são evacuados para Lisboa em carros de assalto. O general do olho de vidro busca refúgio em Talavera la Real, depois do ataque aéreo a um quartel de Lisboa.

Devido à situação difícil em que se encontra o jardim zoológico, os ursos atingiram um estado de magreza considerado anormal. Há ainda três milhões de analfabetos, de homens aqui falamos, não dos ursos, se a uns e outros alguma coisa valerá a esforçada pertinácia das brigadas da juventude em Chaves. No Porto, entre estudantes, estão hoje Beauvoir, e Sartre, e Foucault, e esta foi a assembleia mais muda, se não a mais ignorante, que alguma vez encontrei. A morte do homem e a ideologia capitalista são o tema da noite, as ocupações e a autogestão as soluções para o mundo, e as eleições que aí estão uma ratoeira para idiotas.

Os últimos americanos fogem da hecatombe de Saigão, e os camponeses de Alcoentre ocupam o maior latifúndio a norte do Tejo, não sem razão lhe chamam Torrebela. É um condado de oito mil hectares, jóia primeira da casa de Lafões, que de outras dispõe na Azambuja, na Golegã, em Angola e na ilha de São Tomé, nem todos afinal se queixarão do tal funesto império. Só este paço é um labirinto, que entre salões e quartos privados contamos nós cinquenta, é nosso quanto desta janela a vista alcança, o próprio horizonte nos pertence, vedado em redor por aquela muralha da China.

A Torrebela senhoriou durante séculos duas freguesias que lhe cabem lá dentro, em vida do senhor duque dava pão em troca de suor, ressalvados os dias do ano, frequentes de ver, em que um homem se via rejeitado pelo capataz na praça da jorna. Só bois de trabalho eram cinquenta juntas, veja a força que ali estava, sem contar agora os gados miúdos que amalhavam em estábulos e currais. Por estas máquinas a desfazer-se em ferrugem, por estas forquilhas, e charruas, e malhos, e ancinhos, e serrões, e apeiros, e cagas a apodrecer por aí em telheiros e arribanas, por estes petrechos e armamentos de abegão e maioral, por aí se pode ver a riqueza que isto não era. A ruína e a fome vieram depois que o velho duque faleceu. Desavindos os herdeiros, deixou de haver amanho das culturas, é tudo por aí uma praga de eucaliptos, no lugar dos gados só se topam gazelas, e corças, e veados, a pastar por onde calha. De forma que fizemos uma reunião e mandámos vir as Forças Armadas, esteve cá um capitão e outros da cavalaria, onde nos disseram que ninguém pode ficar à espera que saia a lei para ocupar as terras. Primeiro ocupa-se a terra, a lei virá um dia, na revolução é assim.

Mas é penosa, esta revolução.Que o digam as velhas camponesas de Maçussa, mal entram nos aposentos da duquesa e logo as rudes vozes se tornam balbucio, parece que violaram o santo dos santos e rasgaram o véu que preservava Deus. Têm nos olhos uma estranha culpa, será isto o pecado original, e os quebrantados membros a custo sujeitam baús e gavetões. Penduram ao peito vestes a atavios, miram-se no cristal do espelho, é isto um baile de mascarados a jogar ao sisudo, riem só quando um maltês vem da capela, de batina e sobrepeliz, a distribuir à mão absolvições gerais. Mas já entrou um maioral zabgado que expulsa toda a gente, o baile terminou.

A proa do império afunda-se no mar como um Titanic, Angola está a ferro e fogo, há guerras e mortandades por todo o território. Estes são os tempos terminais, já anda à solta a besta monstruosa, brancos e negros largam terras e haveres, empilham-se aos milhares nos cais, a ver se escapam aos fogos cruzados, aos ódios, às traições. Se não há porto de embarque fogem num desvario, para o sertão, para o nada, assim visto de cima parece aquilo uma serpente de lata a arrastar-se na areia e são afinal cinquenta quilómetros de jipes, furgonetas, camiões, limusinas, caravanas, tractores e catrapilas carregados de gente, carregados de mobílias coxas, carregados de sobas de pau preto e edredões de gazelas, e esta é a picada que nos há-de levar à fronteira das terras do fimdo mundo. Somos dez mil e havemos de chegar. Virão dilúvios de água e tórridos calores, os pés hão-de lavrar nos lamaçais dos rios, morder-nos-ão no rosto as madrugadas álgidas e havemos de chegar, porque nenhuma história fica suspensa a meio, ninguém pode torcer as leis do mundo. Quem saiu entrará, regressará um dia tudo quanto partiu. (Cont.)


segunda-feira, 2 de junho de 2025

As Aves 6-7

Consta que há membros do congresso americano chocados com a revelação de que a CIA interferiu na política interna do Chile, estes são assim, chegam tarde mas vêm sempre. O que não dizem, por enquanto, é que a CIA  financiou quarenta e cincodias de greve dos camionistas chilenos, e pagou a provocadores, e organizou a manifestação das panelas vazias, e armou os assassinos de Pratts na Argentina, e de Lettelier na América, um dia di-lo-ão, quando já ninguém precisar de o saber.

Pois quem espera desespera, que o digam estas oitenta família dos campos de Loures, à espera duma casa desde as cheias de mil novecentos e sessenta e sete, só hoje ficamos a saber que morreram então quinhentas pessoas na região de Lisboa, não costumamos ouvir a BBC, é pena. À espera está também uma boa metade da população portuguesa, pois sendo numa casa, ou num singelo pardieiro, vive sem energia eléctrica, bem se diz nesta conferência da FAO, em Roma, que a subnutrição, ou simples fome, e o baixo rendimento, colocam Portugal entre os países menos desenvolvidos. Não vamos mais longe, acompanhemos ao Sintrão estas equipas duma brigada militar que está a rasgar uma estrada, e logo veremos que não há diferença entre isto e um qualquer lugar dos fins do mundo. No Sintrão não há torneiras de água, nem lâmpadas de luz, muito menos uma rede de esgotos, que escorrem a céu amplo pela rua, e ajudam a curtir os estrumes de inverno. A estrada antiga é um simples caminho de terra, uma picada do mato por onde as crianças vão à escola a Castaíde, três quilómetros para lá deste monte, que bem lhes faz o arzinho das manhãs. Pior estão, sem se queixar, os mortos, que têm de palmilhar uns bons cinco quilómetros, até acharem sossego final no campo santo de Rio de Moinhos. Na sua maioria analfabetos, não estão melhor os vivos que sobraram, todos velhos, quem tinha dez reis de alento fugiu para a emigração. Um dia o povo do Sintrão juntou economias e fez uma capela, o padre, porém, não aceita frequentá-la, por causa da porta, que não está de arco. E não há volta que se lhe possa dar. Não a deu a Senhora de Fátima nem a darão os pobres militares, santos de pau de amieiro que toda a gente invoca, nestes tempos. Nem com estradas novas, nem com redes eléctricas e pontões sobre as ribeiras, nem com palavras de cidadania, que estas campanhas são pagas pelos comunistas, os tais que virão atrás para nos roubar as hortas, não tarda nada e serão destruídos todos os cartazes que animam as tristes paredes.

O embaixador Carlucci, que oficiou no Chile, declara que a CIA não está em Portugal, não nos preocupemos, só ele basta. Anda em viagem discreta pelo norte, enquanto liberta empréstimos em dólares, já percebeu que está nos socialistas o cavalo em que apostar nesta contenda, e assim mata dois coelhos com o mesmo cajado. Dum único passo encurrala os comunistas, que são o mal supremo, e livra do pesadelo a América profunda. E já esfrega, de contente, as mãos, metade do apís está a ferro e fogo, o estudantil e o outro, há mobilização geral de matracas, barras de ferro, correntes de bicicleta. Há greves nas escolas de Lisboa, de Almada, da Covilhã, de Bragança, de Abrantes, de Chaves, do Porto, de São João da Madeira, de Santarém, de Viseu, do Barreiro. O ministro da educação já cedeu o lugar a um major da tropa, demitido a seu tempo por ter casado com uma espanhola sem autorização superior. Foi-se o ministro porque uns tantos tudo pretendem demolir e levar ao caos, porque o trabalho e o saber são hoje em dia valores burgueses, porque ao fim de quarenta e cinco anos de opressão exigem tdo agora, e já, e aqui.

Aqui também se pode ver o estado a que chegámos todos. Sobem estas mulheres o parque Eduardo VII, são feministas em guerra, e vão fazer o auto-de-fé dos símbolos da vassalagem ao macho, dois corpetes, um avental, brinquedos das meninas, revistas pornográficas. Em boa verdade, não escasseando aos homens estandartes de luta, menos carecem estas mulheres de bandeiras e pendões. Mas já milhres de basbaques ocupam lugar no relvado, à espera de entrever a maminha descuidada, nem todos os dias nos trazem a emoção radical dum espartilho a arder. E em  breve se acham estas mulheres no meio duma massa que as empurra, e as agride, e lhes levanta as saias, e lhes molesta as carnes íntimas. É isto um delírio de barbárie indescritível, tão funda como um instinto negro que chega da origens dos tempos, há mulheres arrastadas para as poças de lama, e homens de carcela aberta exibindo falos tumefactos, maior que esta amargura só a vergonha de não ter nascido cão. (Cont.)

domingo, 25 de maio de 2025

As Aves 6-6

Vêm notícias de mulheres do Chile sujeitas a torturas brutais, com cabelos rapados, com seios retalhados, com violações repetidas, com órgãos genitais destruídos por choques eléctricos, por ratos, por aranhas. O bispo do Porto afirmou que os objectivos dos militares coincidem com os fins da igreja, mas os católicos de Braga estão em guerra civil por causa dum cónego, e a serem tão iguais os fins, só pode estar nos meios a questão. Registados foram trezentos casos de cólera em todo o país, até ao fim do ano virão mais dois mil, searas ardem por todo o Alentejo, em Selmes, em Vale de Vargo, em Ouguela, em Bensafrim, e se não ardem searas são as espigas que dobram, maduras, até ao chão, sem que a ceifa seja mandada fazer, quem há-de entender esta traição, bem vão os trabalhadores desta companhia de electricidade, que oferecem um dia de salário para a salvação da nação. Mas Portugal é um náufrago exangue, e traz atada ao pescoço uma mó de moinho remotíssima, por isso se demite este primeiro-ministro, por causa do problema colonial, por causa do problema económico, por causa do problema das novas formas de escravidão que aí vêm.

Extremistas brancos lançaram em Luanda o fósforo primeiro, outros se seguirão, espalhados na areia ficam mais de cem mortos, no Precol, na Cuca, no Cazenga, e outros tantos nas cidades do Índico, que saem a arder dos acordos de Lusaca. Por sobre o mais, oitenta países reconheceram já a independência de Madina do Boé. Pelos bairros africanos só se ouve o martelar de caixões e contentores, é um estranho batuque este dos brancos, que viraram mestres carpinteiros a arrecadar mobílias, a arrecadar peles de zebra e bustos de marfim, a arrecadar tapetes de leões. Aviões e navios deixam a África atulhados de gente, a abarrotar de camionetas e de lágrimas, a abarrotar de paisagens perdidas, e de caixotes de amargura e ódio.

Arde o Pinhal do Rei pela primeira vez. Quiçá para vencer o medo, estes meninos da associação juvenil montaram guarda ao Matagal dos Medos. Brigadas universitárias do Porto combatem em Chaves o analfabetismo, e a miserável situação social e sanitária em que vive o nosso povo. Em Nisa, por baixo desta janela, uma mão que logo se esconde deixa o aviso, a negro, os comunistas roubam os filhos às mães aos sete anos. Por lhe parecer fraca a façanha, e antes que possa um homem recobrar do íntimo calafrio, logo redobra o alerta naquele pano de branca parede, os comunistas matam os velhos inúteis com uma injecção atrás da orelha.

Há novo incêndio no Pinhal do Rei, enquanto ardem as matas da Lousã, da Amora, de Santa Luzia em Viana, de Pombal, bem avisado andará este monsenhor que leva a paróquia de excursão a Fátima, e à vista dos fumos de Poiares não tem hesitações, os comunistas é que põem este país a arder. Verdade ou mentira, é fogo posto o que lavra no palácio da Ajuda, ardem à beira do Tejo quinhentas obras de arte que falavam de reis antigos. Por sabotagem descarrila um comboio na Beira Alta, coros e danças da marinha soviética enchem o coliseu de Lisboa, e Moscovo compra dois milhóes de toneladas de trigo ameticano.

No Kebo são trocados sete prisioneiros portugueses por trinta e quatro africanos, não está mal este câmbio, pensamos nós, por não sabermos que só este Maltês conta por sete. Há três anos foi capturado numa emboscada, por lá o arrastaram até chegar à prisão, para lá da fronteira, na cabeça levava estilhaços avulsos de granada. Puseram-lhe o nome na lista dos mortos, e nesta aldeia da Maia todos acreditam porque viram o caixão, um pelotão de artilharia veio do Porto e trouxe para o cemitério os seus restos mortais. Disseram-lhe uma missa por alma, escreveram-lhe o nome por cima duma campa, esqueceram-se dele. E agora ele vai chegar, trocado por sete negros, traz uma sombra espessa e real atrás de si, alguém vai ter que obrar aqui um novo milagre da ressurreição. É ele próprio quem mete mãos à terra, ergue lá do fundo os restos dumas tábuas, estão três pedras lá dentro.

segunda-feira, 19 de maio de 2025

As Aves 6-5

Isso mesmo é o que acontece a Portugal, tolhido em solidão, orgulhosamente só. O mundo riscara-nos do mapa, agências difundiam a espaços mais uma condenação da Onu, abstenção da América por causa dos Açores, votos contrários das falanges de Madrid, dum Brasil comprometido às vezes, dos africânderes do Cabo, se a isso eram chamados. E de repente a revolução soltou rumores na imprensa inteira, não há dia em que não se fale de nós por esse mundo, este jornal católico francês adverte que o pequeno Portugal se arrisca a ter de pagar, por muito tempo, a política anacrónica dos antigos dirigentes, olha a novidade, e estoutro, comunista, lembra que o inventário dos longos anos da ditadura é catastrófico, a quem o dizem eles. Perante a incerteza das tendências, um trabalhista escandinavo sustenta, liminar, no estado terminal em que o país se achava, qualquer leve mudança só pode ser para melhor.

Por não ter sabido a tempo de tão fausta novidade, suicidou-se em casa, no Porto, o carcereiro da Pide, logo esse que tanta história nos podia contar. E, por causa das persistentes dúvidas, arrisca João Padeiro um anúncio no jornal, a proclamar que nunca foi denunciante nem informador. Quem dúvidas não tem, nem padece de hesitações, são estes pescadores da Afurada, a julgar pelo arrebato com que arreiam no largo um busto de almirante, a mando de quem vão traineiras e marés e gentes da pesca em geral. Atam-lhe uma bóia ao pescoço e lançam-no ao rio, é uma geral risota, lá vai o manipanso a caminho da foz, a simples cabeça escura espadanando à flor da rebentação, vai-se travar aqui a última batalha contra o mar tenebroso. Aproveitemos nós para tirar a limpo a remota questão, quem foi que sujeitou Marte, a quem irá Neptuno obedecer.

Vai um frenesi por esta terra, pela pressa se vê que chegamos atrasados à história, só partidos políticos são já cinquenta. Toda a gente quer um sindicato, são os artistas plásticos, os cartonageiros, os administrativos do ensino, a construção civil, os ferroviários, os funcionários públicos, os magistrados, os serviços sociais, a marinha mercante e os cerâmicos,os estivadores e os hoteleiros, as prostitutas e os enfermeiros do Porto, os pescadores do arrasto, os médicos e os mármores e os motoristas, os metalúrgicos de Setúbal, os jardineiros e os farmacêuticos, os caixeiros, os profissionais de informática, e aqui só os padres estariam em falta, se há muito não estivessem já servidos.

A vida deste povo é um antiquíssimo estendal de queixas, Lisboa não tem pão nem transportes, os correios estão paralisados, é um corropio de saneamentos nas universidades, nas autarquias, nos hospitais, nas administrações, já avisam os comunistas que a impaciência gera amargos de boca, fala quem muito teve que aprender, são cinquenta anos de guerra contra uma armadura de ferro. Mas bem prega frei Tomás, que já nesta empresa são ocupadas as instalações, em face da traição reformista é necessária uma aliança revolucionária em que a classe operária se organize autonomamente formando os seus comités políticos e os seus sovietes, onde terão eles ouvido a lenga-lenga, já em Direito se está marchando em frente pelo controle estudantil da escola capitalista, já os meninos do Pedro Nunes entraram em greve até à abolição dos exames, já na Renascença avançámos para a autogestão contra a padralhada reaccionária, já em Letras se exige a passagem administrativa em todas as cadeiras, lá vamos, cantando e rindo.

No porto de Lourenço Marques três mil estivadores entram em greve, está paralisado o caminho de ferro de Benguela, grevistas são treze mil, aumentam os ataques aos quartéis na Guiné, Buruntuma é desactivada, afinal nem tudo vai melhor com Coca-Cola Grande, por isso a guarnição de Jamberem deixa para trás o posto fronteiriço e vai asilar no quartel de Cacine. O império africano é um caldeirão fervente, é um grito do Ipiranga há muito sufocado, e que vai agora chegar fogo às peças e aos canhões, se é da liberdade que estamos a falar, nem mais um soldado para as colónias. Os comunistas advertem que o povo deve repelir os demagogos e aventureiros da esquerda, trezentos mil exemplares do Eça logo se esgotaram em Moscovo e um grupo do teatro Bolschoi vem a Lisboa, mas Sakharov protesta com uma greve da fome, mas Rostropovich está exilado em Londres, mas Barischnikov deserta no Canadá, esta bailarina do Kirov é impedida de se juntar ao marido que está na América, e um general de olho de vidro está clamando que o povo não deve deixar-se iludir por novos ditadores. (Cont.)

quinta-feira, 15 de maio de 2025

As Aves 6-4

Tanta lida para tão pouca vida, é caso para dizer. Anda uma enlevada princesinha a preparar-se durante meses, a cumprir as difíceis provas da mocidade portuguesa, a picar os dedinhos no bastidor, a passajar buracos numas meias de homem, indistinto ainda mas pairando já no horizonte, Deus saberá se fadário ou estrela da manhã, a batalhar com uns vincos de camisa até não resistir nenhum, a apurar os segredos do refogado e da restante culinária, se se diz  que passa por aí o caminho do coração dos homens, a esmerar-se nas artes da vassoura, a esticar como convém a dobra do lençol, a cuidar de vestir os culotes do avesso, não vá uma costura estouvanada, por simples relaxamento que a pouca idade explica, roçar-se onde não deve e acordar o que dormindo está, a provar pelas cores da casula que vai sempre à missa das dez ao domingo, e tudo isto na presença dum secretário de estado, e dum director-geral, e do apuradíssimo dedo de avulsas individualidades. Anda ela nisto e tudo é vão labor, pois nenhum destes príncipes há-de vir requestá-la, de sapatinho na mão, se mortos jazem todos, já frios, no plaino abandonado, não há brisa que os possa aquecer. E sobre o mais, a atentar no caminho que as coisas levam, em breve há-de vir a história arrancar-lhe a coroa e destroná-la, e devolver esta cinderela à mais anónima vulgaridade.

Em breve chega também a segunda edição do jornal, da maior actualidade e sem vistos da censura, a acreditar nos brados do rapazito ardina. Houve tiroteio na sede da Pide, quatro mortos ficaram na calçada. Enquanto à pressa queimavam papéis, alguns esbirros acolheram com balas o clamor dos populares. Cada um faz na vida o que melhor quadra à sua especialidade, que às vezes nada é, como se vê nesta sessão de quinze minutos da Assembleia Nacional, trinta e nove deputados responderam à chamada do senhor presidente, nada acho de melhor para dizer nesta hora a vossas excelências do que recordar-lhes uma frase eterna, dita noutra terra e noutras circunstâncias, muita gente espera de nós que cumpramos o nosso dever.

Cumpriram todos, que desandaram de vez, e muito melhor cumpriu o povo. Nas ruas não cessam os abraços e paparicos aos soldados, é uma preia-mar de emoções, cai-nos do céu este pão e este conduto, ele é presuntos e queijos e fiambres que ninguém sabe donde vêm, ele é garrafas de leite e outras mais graduadas poções, há vinte e quatro horas que estamos sem comer, nem para arranchar nos sobra tempo. Começam a sair os presos dos curros de Peniche, das celas de Caxias, homens maduros a oscilar entre o grito e a lágrima, perdidos de júbilo nos braços dos amigos, vivo na clandestinidade desde mil novecentose quarenta e sete, o melhor de trinta anos, isto afirma um homem de barba espessa, um dos que ajudou a comandar o avião libertário dos folhetos de Helena, de quem já se falou.

Do estrangeiro vão chegando homens do pensamento, mestres demitidos das universidades, políticos exilados há décadas, só este ancião que agora regressa viveu quarenta e sete anos no Brasil, ele é Sertório que passou dezasseis em Argel, e Ayala doze em Marrocos, e Miguel dezassete ma Venezuela, e Santos e Manuel também dez em Argel, a Gomes couberam dezasseis no Brasil, não tem fim este rol de almas pelo mundo em pedaços repartidas, só neste avião da liberdade chegam duma vez quarenta e duas. Desembarcam dos comboios jovens cantores proibidos, refractários da tropa que eram cem mil por ano, na verdade, é o que diz o reclame, são as chinchilas quem se dá bem na nossa terra, enquanto não vierem a saber o que no fim do caminho as espera. (Cont.)

quinta-feira, 10 de abril de 2025

As Aves 6-3

À medida que os tanques ocupavam a cidade, seguiam-nos multidões eufóricas que enchiam de ruído largos e pracetas. Era a hora do ranger de dentes que chegava. Já rasga este ministro as temerosas vestes, já outro arranca os cabelos às punhadas, não poucos ameaçam desfazer-se em prantos, um por falência de ânimo, outro por sobrecargas de consciência, todos por contrição tardia. Mas o ministro da guerra acaba por achar uma saída, neste compasso extremo incumbe-lhe o mandato, mais que a ninguém. Avance este ordenança de picareta em punho, logo ao fundo do túnel nos aguardam as luzes do ministério da marinha, saímos o portão do arsenal como simples paisanos, gritamos um viva ao reviralho indispensável sendo, ninguém dará por nós.

E assim foi, que estes soldados trazem a redenção, não são jacobinos cortadores de cabeças. Ninguém dará por eles, como ninguém deu pelas notícias primeiras dos jornais, são as de ontem e do costume, se traziam alguma actualidade logo ali a perderam, os próprios ardinas calaram o pregão.Há-de, porém, ser verdade, se quem o diz é o jornal de maior circulação em Portugal, uma multidão de excelências esteve a inscrever-se no livro de cumprimentos ao Chefe do Estado, que é a excelência máxima, por acaso moramos no mesmo bairro mas não andamos tu-cá tu-lá todos os dias, era o que mais faltava, ninguém nos levava a sério, daí usarmos destas cortesias para nos declarar veneradores e atentos, e mais que tudo obrigados, e foram elas a excelência Costa, presidente da Câmara Corporativa, e a excelência Baptista, ministro do Interior, e a excelência Santos, procurador geral da República, e a excelência Marchueta, governador civil de Lisboa, e a excelência Sebastião, presidente do município da capital, e a excelência Rosas, governador do banco que manda cunhar os dinheiros do império, e a excelência Medina que é embaixador, e ainda as excelências Pinto e Rebelo que não se sabe o que são, e, se mais alguém veio cumprimentar o venerando Chefe do Estado e aqui não é designado, é do repórter a culpa, por não ter reparado em tudo quanto havia que ver, ou de quem lhe censurou a peça, por ter ele visto mais do que devia.

E no paraíso terrestre dum milionário do estanho, por entre centenas de convidados da melhor sociedade internacional, conviveram durante oito dias sete barões, seis condes, cinco princesas, quatro lordes, três duques com as respectivas duquesas, finalmente um rei e uma rainha, e a famosa begun Aga Kahn. Tão ilustre e luzida comitiva é que vinha a calhar a esta mulher, sentada ali sozinha no banco dos réus do terceiro juízo criminal da Boa-Hora. Tem trinta anos e acaba de ser detida na cidade do Porto, onde levava há doze uma vida de trabalho pacato, com falsa identidade. Um dia já distante agarrou nos comandos do avião da TAP que vinha de Casablanca, e andou pelas cidades do país a distribuir panfletos, há trezentos anos era o canto do cego a chorar pelas feiras a Índia que se afogava, hoje requerem-se outras técnicas, o destino é parecido. E foi assim que choveram panfletos em Beja, em Faro, no Barreiro, em Lisboa, não se pense que os tanques arrancam dos quartéis por ter passado mal a noite um capitão. Chama-se Helena esta mulher, que volta finalmente ao nome que lhe incumbe, e vai ser condenada aos curros do Aljube, se nenhum milagre vier a acontecer. Por pouco iludia até ao fim os troianos da Pide, e agora descobre toda a razão que tinha, ao predizer que a derradeira e final salvação havia de ser um oportuno levantamento militar.

De militares quem sabe é o Serviço de Informação Pública das Forças Armadas, morreram em combate o primeiro cabo Fernandes,de Paço de Arcos, o segundo-sargento paraquedista Tomé Costa, de Bubaque, concelho dos Bijagós, este provavelmente negro, e um capitão do Alvendre, para quem não souber uma aldeia a três quilómetros da Guarda, já teve um castro e um castelo e agora não tem nem um nem outro, que o primeiro foi derrubado há muito e o segundo foi destruído agora, e mais dois soldados, o Gaspar de Valongo e o Correia de Cinfães, o primeiro cabo Castro, que não era de pedra, como o outro, e veio de Guimarães, e o furriel Melo, este da Vila da Feira.

Alguns deles seriam homens casados, é o natural da vida, se tinham filhos quem vai agora pôr os olhos neles, incómoda questão que nos fica em aberto, não sabemos responder. O mais certo, porém, é ser a maioria gente solteira e descomprometida, jovens que mal tinham começado vida, reparemos nas fracas patentes de quem ainda não passou da flor da juventude. Pois forte razão havia para todos se manterem nesta ocasião bem vivos e atentos, a oportunidade não se repetirá, acaba de ser proclamada a rapariga ideal deste ano, tem desassete vicejantes anos, é no Porto que vive e chama-se Ana Paula. Anda um homem à procura a vida inteira, tantas vezes se engana, e se repete, e mulher a gosto nem vê-la, e agora tínhamos aqui toda a papinha feita, salvo seja, a rapariga ideal nestes exactos termos, porque os testes não mentem, muito menos ia agora enganar-se o olho clínico do júri. (Cont.)