quinta-feira, 15 de maio de 2025

As Aves 6-4

Tanta lida para tão pouca vida, é caso para dizer. Anda uma enlevada princesinha a preparar-se durante meses, a cumprir as difíceis provas da mocidade portuguesa, a picar os dedinhos no bastidor, a passajar buracos numas meias de homem, indistinto ainda mas pairando já no horizonte, Deus saberá se fadário ou estrela da manhã, a batalhar com uns vincos de camisa até não resistir nenhum, a apurar os segredos do refogado e da restante culinária, se se diz  que passa por aí o caminho do coração dos homens, a esmerar-se nas artes da vassoura, a esticar como convém a dobra do lençol, a cuidar de vestir os culotes do avesso, não vá uma costura estouvanada, por simples relaxamento que a pouca idade explica, roçar-se onde não deve e acordar o que dormindo está, a provar pelas cores da casula que vai sempre à missa das dez ao domingo, e tudo isto na presença dum secretário de estado, e dum director-geral, e do apuradíssimo dedo de avulsas individualidades. Anda ela nisto e tudo é vão labor, pois nenhum destes príncipes há-de vir requestá-la, de sapatinho na mão, se mortos jazem todos, já frios, no plaino abandonado, não há brisa que os possa aquecer. E sobre o mais, a atentar no caminho que as coisas levam, em breve há-de vir a história arrancar-lhe a coroa e destroná-la, e devolver esta cinderela à mais anónima vulgaridade.

Em breve chega também a segunda edição do jornal, da maior actualidade e sem vistos da censura, a acreditar nos brados do rapazito ardina. Houve tiroteio na sede da Pide, quatro mortos ficaram na calçada. Enquanto à pressa queimavam papéis, alguns esbirros acolheram com balas o clamor dos populares. Cada um faz na vida o que melhor quadra à sua especialidade, que às vezes nada é, como se vê nesta sessão de quinze minutos da Assembleia Nacional, trinta e nove deputados responderam à chamada do senhor presidente, nada acho de melhor para dizer nesta hora a vossas excelências do que recordar-lhes uma frase eterna, dita noutra terra e noutras circunstâncias, muita gente espera de nós que cumpramos o nosso dever.

Cumpriram todos, que desandaram de vez, e muito melhor cumpriu o povo. Nas ruas não cessam os abraços e paparicos aos soldados, é uma preia-mar de emoções, cai-nos do céu este pão e este conduto, ele é presuntos e queijos e fiambres que ninguém sabe donde vêm, ele é garrafas de leite e outras mais graduadas poções, há vinte e quatro horas que estamos sem comer, nem para arranchar nos sobra tempo. Começam a sair os presos dos curros de Peniche, das celas de Caxias, homens maduros a oscilar entre o grito e a lágrima, perdidos de júbilo nos braços dos amigos, vivo na clandestinidade desde mil novecentose quarenta e sete, o melhor de trinta anos, isto afirma um homem de barba espessa, um dos que ajudou a comandar o avião libertário dos folhetos de Helena, de quem já se falou.

Do estrangeiro vão chegando homens do pensamento, mestres demitidos das universidades, políticos exilados há décadas, só este ancião que agora regressa viveu quarenta e sete anos no Brasil, ele é Sertório que passou dezasseis em Argel, e Ayala doze em Marrocos, e Miguel dezassete ma Venezuela, e Santos e Manuel também dez em Argel, a Gomes couberam dezasseis no Brasil, não tem fim este rol de almas pelo mundo em pedaços repartidas, só neste avião da liberdade chegam duma vez quarenta e duas. Desembarcam dos comboios jovens cantores proibidos, refractários da tropa que eram cem mil por ano, na verdade, é o que diz o reclame, são as chinchilas quem se dá bem na nossa terra, enquanto não vierem a saber o que no fim do caminho as espera. (Cont.)