segunda-feira, 21 de abril de 2014

O último maçaricão-esquimó 32

(Cont.)
        Voaram durante quatro horas. Finalmente poisaram trezentos quilómetros terra adentro, num planalto acidentado. Aqui juntaram-se pela primeira vez a outras aves de arribação, que iam ao encontro da Primavera na América do Norte. Bandos inteiros de tangarás, tordos e piscos procuravam alimento afanosamente, nos vales arborizados. Tinham que armazenar energias para os longos voos nocturnos. Nas altas pradarias, os maçaricões encontraram bandos de narcejas e de estorninhos. Mas não se ouvia qualquer canto. Isso só aconteceria na reserva de criação, e, para a maior parte deles, ela distava ainda mais de três mil quilómetros.
            Nas encostas em declive havia gafanhotos por todo o lado, nelas pastavam grandes rebanhos de carneiros. O capim estava tosado e rente, por isso era fácil encontrar os insectos. Os maçaricões comeram até terem os papos e os estômagos cheios. E ao escurecer milhares de aves partiam. Não podiam ver-se na escuridão, salvo quando uma delas riscava o disco da lua, como um traço de sombra. Mas ouviam-se constantemente os seus gritos ligeiros. Porém os maçaricões não tinham pressa, pois no Árctico era ainda inverno, e aqui podiam acumular gordura para o caminho até à reserva.
            Esperaram uma semana, comeram muito e voavam cada dia um pouco mais para Norte. Os seus corpos ficaram outra vez nédios e redondos, e agora, de novo com forças, ardia neles a febre do acasalamento. No princípio da semana atingiram a ponta da península de Yucatán. Oitocentos quilómetros a Norte, do outro lado do golfo do México, ficavam os pântanos da costa da Louisiana e do Texas, atrás dos quais se estendiam, quase até ao Árctico, as pradarias sem fim.
 O CORREDOR DA MORTE

           ... Mas pior que tudo era a carnificina, quando as aves, na Primavera, atravessavam o golfo do México, e se deslocavam em bandos pelas planícies norte-americanas.
            Estes bandos enormes recordavam aos habitantes das pradarias os pombos-torcazes, e por isso os maçaricões foram chamados “pombos da pradaria”. Voavam aos milhares, em quantidades tais que os bandos mediam às vezes mil metros de comprimento por cem de largura. Quando poisavam, cobriam quarenta a cinquenta acres de solo. A matança era nesse tempo uma coisa inimaginável. Vinham caçadores de Omaha, no Nebraska, e abatiam as aves sem piedade. Abatiam-nas literalmente às carradas. As aves mortas eram mesmo empilhadas em carros abertos, que chegavam a precisar de taipais laterais. Quando os bandos eram particularmente numerosos, e os caçadores dispunham de munições em abundância, os carros enchiam-se depressa. Despejavam-se então carregamentos inteiros na pradaria. As aves ficavam ali em pilhas enormes, como se de um monte de carvão se tratasse. Deixavam-nos a apodrecer, e os caçadores enchiam os seus carros com novas vítimas.
            Tal carnificina só era possível pela dimensão dos bandos e pela mansidão das aves. Por cada tiro caíam dúzias delas ao chão. Certa vez um caçador abateu vinte e oito, com um único tiro de uma velha escopeta de carregar pela boca. E do bando que continuou a voar caíram ainda algumas aves mortas, nos mil metros seguintes. Voavam tão cerradas que era quase impossível atirar-lhes uma pedrada sem atingir uma delas...
            Ao lado dos muitos fuzileiros que abatiam estas aves para consumo próprio ou pelo prazer de matar, havia caçadores profissionais, que abasteciam os mercados e perseguiam os bandos sistematicamente...
            Através de binóculos, os caçadores observavam a progressão do voo... Qualquer um podia aproximar-se das aves poisadas até uma distância de vinte e cinco ou trinta metros. Uma vez aí, os caçadores esperavam que elas se colocassem na melhor posição de fogo, após o que era disparada a primeira salva. Desorientadas, as aves levantavam voo e descreviam um par de círculos no ar, oferecendo novas oportunidades de tiro. Chegavam, por vezes, a poisar no mesmo local, e este procedimento repetia-se. Com uma arma de tiro semiautomático, um certo senhor Wheeler abateu de uma vez trinta e sete aves. Ocasionalmente podia observar-se pelos binóculos que o bando tinha poisado quatro ou cinco quilómetros mais adiante. A cavalo ou de carro, os caçadores dirigiam-se rapidamente ao seu encontro, e continuavam a chacina...
            Nos anos oitenta, os efectivos de maçaricões diminuíram rapidamente...

sábado, 19 de abril de 2014

Abril

Salgueiro Maia ao Panteão, seus canalhas!

Cronistas 9

«Na Europa, o mundo urbano em ascensão, o contacto/confronto com outras civilizações e a revolução das mentalidades, operada por uma pequena minoria de alfabetos e letrados, que traduziam e liam os textos da Antiguidade grega e latina, proporcionavam, na cristandade ocidental, o renascimento da vida colectiva, das artes e da cultura.
O italiano Pico de la Mirandola colocava o homem no centro do Universo. (...) O português João de Barros em 1532 escrevia: Só os homens foram dotados de livre arbítrio, "sem haver entre eles alguma diferença de uns precederem os outros".
A pintura desnudava o corpo, inseria-o na natureza e no espaço doméstico. A Vénus de Botticelli elevava-se sobre a água, despida e inocente. Miguel Ângelo "criava" Deus, o mundo e o homem, numa abóbada de corpos nus. (...) A arquitectura desenvolvia, a partir das técnicas romanas, uma nova distribuição das superfícies. (...)
Maquiavel estudava a realidade política e social na sua verdade imediata, sem recorrer à Providência nem à moral. (...) Erasmo dava curso às críticas que, de todo o lado, caíam sobre a Igreja, pelos escândalos dos cardeais e dos papas. Em 1527, quando as tropas de Carlos V saquearam Roma, mataram bispos e prenderam o papa e os cardeais. (...)
Portugal, a Espanha e a Itália estarão no centro da Contra-Reforma. Teólogos portugueses participaram activamente na reformulação da doutrina saída do Concílio de Trento. A Inquisição, que se distinguira em Espanha no final do séc. XV, pela ferocidade, entrava em Portugal e na Itália. A chamada "heresia judaica" e o pensamento criador serão as vítimas maiores da inquisição portuguesa.
Com a chegada do ouro e da prata dos outros continentes, os alimentos e as mercadorias subiram de preço. A carestia e a inflação aumentavam o número de pobres. Era necessária uma sociedade mais justa, escrevia o inglês Tomás Moro.(...)
Em 1520 Tomás Munzer pregava a necessidade de uma nova ordem social e uma religião sem padres. Em 1524 as revoltas de camponeses rebentaram por toda a Alemanha. (...)
Os hispânicos tinham descoberto a América, aberto o caminho marítimo para a Ásia e provado que a Terra era redonda. O comércio ligava agora por mar os vários continentes, multiplicava o volume e a qualidade das mercadorias. Crescia o fabrico e o comércio das armas, principalmente das armas de fogo. Leonardo inventava máquinas que só encontrariam forma na época contemporânea. (...)
As cidades italianas estavam na vanguarda da tecnologia e das artes. Atraíram a cobiça da França e de Espanha. O imperador Cralos V alimentou o sonho de se tornar imperador católico universal. (...) Em 1527 os seus exércitos saqueavam Roma. (...) Em 1556, o imperador católico, travado pelos exércitos luteranos e pelos de França, abdicava e dividia os seus estados: a Alemanha ficava para o seu irmão Fernando de Habsburgo, e a Espanha, a Flandres, a Itália e o império espanhol para o seu filho Filipe II.
O comércio regional e intercontinental utilizava cada vez mais a letra de câmbio, o crédito e os seguros, mas os teólogos domínicos da escola de Salamanca consideravam que, se a arte mercatória se dirigisse ao lucro, era desonesta por si mesma. Na segunda metade do século, a pequena Holanda, que punha em ciência a navegação, o crédito e a guerra, resistia à feroz repressão de Filipe II e projectava-se como grande potência marítima. (...)
Portugal, com pouco mais de um milhão de habitantes, espalhava-se por três continentes: a África, a América e sobretudo a Ásia. Desviava em boa parte a pimenta da rota do Levante para a rota do Cabo. (...) A rota do Cabo ligou os três oceanos e transportava riquezas de todo o mundo. A sua abertura ficou assinalada, a par e passo, por assaltos a tiro e a espada, pelos corpos dos náufragos, pelo sacrifício dos marinheiros, livres e escravos, pelo comércio, a conquista, a pirataria e o sangue.»
(António Borges Coelho, História de Portugal, Vol.IV)

O último maçaricão-esquimó 31

(Cont.)
         Voaram hora após hora com velocidade estável, mantendo constante o ritmo esgotante de três a quatro batidas por segundo. O cintilar do sol sobre a água foi enfraquecendo, e desapareceu completamente ao atingir o zénite. O mar tornou-se mais azul. Então o sol descaiu para Oeste e a cintilação voltou. Oitocentos metros abaixo deles brilhavam as cristas das ondas, e o ar aqueceu ainda mais. Desde que a costa da América do Sul desaparecera na escuridão da última noite, nada alterara a monotonia e a desolação do mar, a não ser, aqui e ali, um albatroz, que planava com as suas asas poderosas e imóveis. Os maçaricões voavam infalivelmente para Norte, sem se desviarem do rumo. Os seus cérebros estavam mais bem compensados, em relação às forças de orientação da terra, do que a bússola mais sensível.
            O macho, que seguia na frente e tinha que vencer maior resistência do que a fêmea, sofria de particular cansaço. As tormentosas pontadas que lhe arrepanhavam os músculos do peito transformaram-se numa dor surda e constante. O coração batia fortemente. E poderia descansar um pouco, cedendo o comando à fêmea. Mas o facto de ela se manter atrás dele, e beneficiar da força com que ele atacava o ar, o facto de o voo dela depender do seu, comovia-o como um sentimento quente e sublime, obrigando-o a aguentar. Inabalável, manteve o comando.
            O sol caiu para Oeste. E ele estava de tal modo enfraquecido que nem a mais tenaz força de vontade lhe permitia já bater as asas, tão depressa como até aqui. Mas manteve-se à frente. As batidas abrandaram, a velocidade diminuiu, e a fêmea notou-o. E foi então, depois de vinte e quatro horas de silêncio, que ela começou a enviar-lhe suaves gorjeios de ternura. Isso deu-lhe mais força do que o alimento ou o descanso. E ela repetiu o gesto muitas vezes. O sol estava ainda acima do horizonte, o mar doirado resplandecia como pedra preciosa, e as asas dele transportavam-nos, incansáveis.
            Estava o sol a pôr-se quando algo azul-escuro, fino e vaporoso, apareceu no horizonte. Durante alguns minutos pareceu-lhes uma nuvem. Depois ganhou consistência, tornou-se uma faixa de costa, e finalmente surgiram lá atrás os contornos serreados das montanhas da Guatemala e das Honduras. Os cumes vulcânicos longínquos sobressaíam claramente. A mancha azul, junto ao mar, tornou-se verde, e onde ela terminava apareceu a faixa branca da rebentação. Quando os maçaricões atingiram a praia orlada de palmeiras, dispunham ainda de meia hora de claridade e começaram logo a comer. Ao chegar a escuridão, já a tortura da fome e do esgotamento diminuía.
            Toda a manhã seguinte trataram de se alimentar. Mas não havia muita comida, pois a praia era estreita e fora varrida pela rebentação. Ao meio dia prosseguiram o voo, apesar do enorme calor. Agora dirigiam-se terra adentro, pois era Verão na América Central, e as altas pradarias fervilhavam de gafanhotos. Voavam sobre a zona costeira, que subia lentamente até às montanhas. O solo vulcânico, escuro e fértil, produzia frutos exuberantes, como cocos, bananas e cana sacarina. Uma hora depois estavam a 1500 metros acima do nível do mar, e chegaram a uma zona mais temperada, com ar frio e seco. Continuaram a subir, avançaram para as montanhas e alcançaram um estreito vale que conduzia a um planalto elevado.
(Cont.)

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Cronistas 8

«Na leitura de Rui de Pina, D. Dinis "fez quase de novo" todas as vilas e castelos de Riba de Odiana: Serpa, Moura, Olivença, Campo Maior, Ouguela, Monforte, Arronches, Portalegre, Marvão, Alegrete, Castelo de Vide, Borba, Vila Viçosa, Arraiolos, Evoramonte, Veiros, Alandroal, Monsaraz, Noudar, Juromenha, Redondo, Assumar, e a torre e o alcácer de Beja.
Na Beira e Riba-Côa fez de novo os castelos de Avô, Sabugal, Alfaiates, Castelo Rodrigo, Vila Maior, Castelo Bom, Almeida, Castelo Melhor, Castelo Mendo, São Félix dos Galegos, Pinhel e o seu castelo.
Em Entre-Douro e Minho e Trás-os-Montes cercou Guimarães, Braga, Miranda do Douro, Monção, Castro Laboreiro, Vinhais, Vila Flor, Alfândega, Mirandela, Freixo de Espada à Cinta, Vila Nova de Cerveira. Ergueu do primeiro fundamento Vila Real. (...)
Podemos afirmar que Rui de Pina pecou por defeito (...). No seu tempo, até os lavradores dos clérigos e os próprios clérigos trabalharam e pagaram para esta obra imensa de reorganização, povoamento e defesa do território. (...)
Donde vieram os recursos para estas reconstruções civis e militares? A mobilização intensa e tributária da mão-de-obra ajudou, mas não explica tudo. A estas despesas acresceram os enormes gastos em viagens de representação diplomática e em incursões militares. Apesar disso emprestou avultadas quantias em dinheiro ao cunhado aragonês e ao genro castelhano e financiou com um empréstimo a companhia que iria explorar na costa de Sines a captura de atuns e de golfinhos. Adiantou o pagamento duma dívida de Lisboa aos mercadores de Pistoia.
Afonso III não deixou o tesouro vazio, mas seu filho soube ampliar as receitas. (...) Os tecidos do Norte da Europa não entravam apenas pelos grandes portos. Em 1287 D. Dinis concedeu à rainha Isabel a isenção de direitos das cousas que entrarem por Selir, (Salir?) menos os panos de cor, as armas miúdas, o ouro, a prata, a pimenta, o açafrão, o ferro tirado, o aço, o chumbo, o estanho e o cobre, que pertencerão ao rei de direito. (...)
Defendeu e favoreceu muito os lavradores, a que chamou nervos da terra e do reino (...). E nas coisas de sua fazenda e casa foi sobre todos o mais provido e solícito, (...); por isso se fez rei de grandes tesouros, porque as gentes do reino foram também em seu tempo mui ricas; e fez muitas leis por bem e regimento da terra. Muitos senhores de nações diversas vinham à sua Corte para o ver. (...)
Acumulou tesouros intensificando a colonização dos reguengos, recuperando os foros do rei, esbulhados pela nobreza e pelo clero.
D. Dinis ficou duradouramente no imaginário popular. Nas Cortes de Évora de 1481 os povos declaravam que, sem a sua acção, a Igreja seria dona de todo o Portugal. (...)»
António Borges Coelho, História de Portugal, Vol. II
[Mas nesse tempo a bebedeira épica era já crónica. Tomara conta das elites aventureiras e cúpidas, e as elites guardariam o país para seu serviço durante muito tempo. Ainda hoje, é só olhar e ver!].

A propósito de génios

J. S. Bach - Badinerie.

Gabo morreu

O tempo é assim, diz-se que algum dia tinha que acontecer. E no entanto é mentira.
Cem Anos de Solidão ficaram por aí, na boca de meio mundo, é só querer e meter-lhe o dente.
Por mim fico-me com O General no seu Labirinto, obra mestra do dito romance histórico. E sobretudo com a Crónica duma Morte Anunciada, em que um genial labor narrativo transforma uma intriga insignificante numa fascinante peça literária.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Sabes o que aconteceu a Portugal, nos sécs. XV, XVI e XVII, depois da primeira "rapaziada de corte", que abriu as portas em Ceuta às aventuras da "gesta gloriosa"?

António Borges Coelho dá a palavra aos cronistas, e conta isso muito bem na sua História de Portugal, Vol. IV, Na Esfera do Mundo.
E logo explica, na contra-capa, que «A militarização da sociedade e o triunfo da Contra-Reforma permitiram que os teólogos, os doutores e os fidalgos se manifestassem na direcção da política, da cultura, da economia e da ideologia. Afundaram as contas, travaram a actividade dos mercadores profissionais, em boa parte cristãos-novos. O tribunal do Santo Ofício e os teólogos conservadores das Ordens Religiosas bloquearam a criatividade do pensamento, a crítica e as práticas que se desviassem dos dogmas tridentinos. Sufocaram no berço a rotura epistemológica que internamente se operava e se desenvolveria na Europa.»
Antero de Quental, em Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, e António Sérgio em Breve Interpretação da História de Portugal, já tinham dito coisa parecida há muito tempo. Mas quem é que quer saber disso, numa terra condenada à miséria e governada há séculos por filhos da puta, como hoje se vê tão bem?

O último maçaricão-esquimó 30

(Cont.)
9            
             Ano após ano, durante os nove meses de migração, os maçaricões eram como peões num gigantesco tabuleiro de xadrez. As suas rotas eram definidas por jogos cósmicos, pelas forças da natureza e da geografia, pelos ventos, pelas marés e pelo estado do tempo. Os ventos determinavam em que direcção as aves deviam voar. O tempo e as chuvas decidiam se havia mais ou menos alimento, definindo desse modo o objectivo do voo. Na partida de xadrez intervinha agora um outro jogador, uma corrente marítima.
            A corrente de Humboldt vem do Antárctico, corre ao longo da costa Oeste da América do Sul, em direcção ao Norte, e transporta águas frias quase até ao equador. Os ventos que varrem todas as tardes a costa do Peru são secos, pois a água fria da corrente de Humboldt quase não sofre evaporação. Assim, a estreita faixa de costa entre os Andes e o Pacífico é árida, com planaltos arenosos quase desertos e pouca precipitação. Há muito poucos rios que corram para o Pacífico e formem estuários pantanosos, onde as marés depositem alimento. Por isso neste local os maçaricões pouco encontram que comer. Depois da travessia dos Andes estão magros e esgotados, mas a região não convida a demoras. E assim continuaram a voar.
            Seguiram as estreitas praias do Peru na direcção do Norte. Voavam, noite após noite, até à madrugada, e aproveitavam cada hora do dia para se alimentarem. Tarefa difícil esta, pois estavam sempre esgotados e nunca completamente fartos. Para os jogos amorosos não restavam tempo nem energias, já que estes mal chegavam para descansar.
            Em menos de uma semana tinham percorrido 3200 quilómetros, atingindo a planície arenosa de Punta Pariña, perto do equador. A partir daqui, ao longo de 1600 quilómetros, a costa sul-americana segue na direcção Nordeste, até ao istmo do Panamá.
            Aproximava-se o mês de Março. Lá em cima, no Norte, começava a Primavera no vale do Mississipi, tornando verdes os choupos e as pradarias. Os maçaricões encontravam-se ainda a Sul do equador, a tundra estava a quase dez mil quilómetros de distância. Mas ela chamava-os já tão fortemente, que os seus músculos cansados e doridos não eram rápidos bastante.
                        Até às exuberantes terras altas da Guatemala, a costa descrevia um grande arco, primeiro a correr para Leste, depois para Norte e finalmente para Oeste. A etapa era de quatro mil quilómetros. Em linha recta a distância era cerca de metade, mas passava sobre o Pacífico. Quando a noite que caía arrefeceu a areia quente, o maçaricão ainda tinha fome, o papo não estava cheio. Mas levantou voo, no crepúsculo tropical, e a fêmea logo o seguiu. Tomaram a direcção do Norte, abandonaram a plana faixa costeira e rumaram para o mar alto. Deviam atingir a América Central vinte e quatro horas depois.
            Voavam silenciosos, para não desperdiçarem energias. Esta travessia do oceano demorava apenas metade da esgotante viagem sobre o Atlântico. Mas no Outono, graças aos arandos do Lavrador, as aves partiam gordas e bem alimentadas. Agora iniciavam o trajecto sobre o Pacífico já esgotadas e emagrecidas. Duas horas mais tarde teriam os papos vazios.
            Quatro horas depois tinham ultrapassado a zona dos alísios de Sueste, e alcançaram as calmarias equatoriais. Mas o mar por baixo deles estava tudo menos calmo. Baloiçava fortemente em pequenas rebentações que provocavam carneiros de espuma, um verdadeiro campo de batalha. Aqui encontram-se a corrente fria de Humboldt e a corrente quente do Equador, e ambas lutam pelo domínio do mar. Embora só com a luz do luar, as aves podiam observar como a cor do oceano mudara subitamente. O verde glacial da corrente de Humboldt cedeu lugar ao azul profundo das águas tropicais. E a atmosfera aqueceu.
            A lua desapareceu e começou a amanhecer. Pouco depois do romper do dia atingiram a zona dos alísios de Nordeste, e estes ventos de lado aligeiraram o voo. Mas o dia estava quente. O ar húmido e abafado anulava o efeito agradável do vento.

Outra vez sobre o discurso

Dos filhos da puta.

domingo, 13 de abril de 2014

Abril

Salgueiro Maia ao Panteão, seus canalhas!

segunda-feira, 7 de abril de 2014

domingo, 6 de abril de 2014

O último maçaricão-esquimó 29

(...)
             Tinham-se mantido silenciosos durante todo o dia, já que o voo a tão grande altitude reclamava toda a energia de que dispusessem. Mas agora, ao conduzir a fêmea descendo a pique entre paredes de nuvens, o maçaricão gritava, excitado. O poço atmosférico alargou-se e o ar assobiava à sua volta. Voavam em glissagens laterais, para reduzir a velocidade de descida. A princípio o ar era tão rarefeito que não podiam travar com as asas. Quase não tinham controlo sobre si próprios, e despenhavam-se de encontro ao solo. Mas o ar foi-se tornando mais denso, forneceu resistência às asas, e começaram a descer mais lentamente. A pressão crescia rapidamente e causava-lhes dores nos ouvidos. Depois de passarem a camada de nuvens, nivelaram o voo e dirigiram-se para o Pacífico, que viam no horizonte, como leve linha azul.
            Em dois ou três minutos tinham chegado com uma rapidez dramática a regiões muito diferentes do ermo gelado e luminoso de há pouco. Voavam ainda tão alto que só podiam distinguir contornos difusos. Muito embora, a terra era de novo sua. Lá em baixo havia solo e pedras e plantas, não já o nada aéreo das nuvens. Mas aqui o céu era opaco, não havia sol nem qualquer luz brilhava, na atmosfera quente. E o ar sentia-se novamente. Tinha de novo substância, dava às asas força e impulso e enchia os pulmões, sem que, ao expirar, eles sofressem de dolorosa dispneia.
            Sem perder tempo continuaram em frente, seguindo o terreno que caía a pique. E poisaram, já tarde avançada, numa estreita faixa de praia, à beira do Pacífico. Durante alguns minutos beberam sofregamente água salgada. Depois comeram, até escurecer.
            Ao crepúsculo clareou um pouco. E os grandes cones vulcânicos dos Andes desenhavam-se cruamente a Leste, ganhando um ímpeto e uma força aterradores. Todos os anos o instinto do maçaricão o conduzia sobre esta poderosa barreira de calcário, de tempestades e neve. E todos os anos lançava um olhar para trás, antes que a lembrança se lhe apagasse. Por mais lento de raciocínio que o seu cérebro fosse, ficava sempre espantado com a resistência das asas. 

O CORREDOR DA MORTE
           
            A comissão de protecção das aves receia que tenham de ser colocadas na lista dos animais ameaçados de extinção as seguintes espécies: o condor californiano (em 1939 já não existiam sequer 50 exemplares), o bico-de-marfim (são conhecidas menos de 30 aves), o maçaricão-esquimó (efectivo desconhecido, caso ainda exista)...
            Não temos disponível nenhuma outra informação sobre o maçaricão-esquimó. É perfeitamente possível que esta ave esteja extinta. Mas os relatos esporádicos de que dispomos, relativos aos últimos dez anos, deixam a esperança de que ele tenha sido casualmente avistado por alguns observadores. Apesar disso parece-nos aconselhável que a Liga Americana de Ornitólogos estabeleça ligação, quer na Argentina quer noutras repúblicas sul-americanas, com organizações ou pessoas individuais que estejam em condições de efectuar novas pesquisas. No caso de serem detectados maçaricões-esquimós que passam o Inverno na Argentina, poderiam ser tomadas medidas que lhes garantam uma melhor protecção, seja através da direcção do Parque Nacional Argentino, seja de qualquer outro modo...

O último maçaricão-esquimó 28

(...) 
                 Pela manhã o vento amainou. O macho sabia que tinham de continuar a voar, não podiam ficar ali mais tempo. Quando as nuvens carregadas de neve se dissolveram e o sol atravessou a névoa com uma luz amarelada, levantaram voo e avançaram para o manto que ocultava os cumes. Um minuto depois encontravam-se num mundo fantástico de neblina branca, cuja humidade lhes pesava nas penas. Subiam penosamente, em círculos. Tinham de ganhar altitude, mas o ar era agora tão rarefeito que pareciam mover-se no vazio. Mesmo com os pulmões cheios, respiravam com dificuldade.
            A camada de nuvens era muito instável e cheia de turbulência. Ocasionalmente encontravam camadas de ar mais denso, que as asas cortavam melhor, e ganhavam altitude rapidamente. Mas logo o ar se rarefazia, e, por momentos, mal se podiam manter. Uma vez clareou por cima deles, e o maçaricão sabia que estavam perto de atingir o céu claro. Mas, antes de conseguirem furar as nuvens, uma rajada descendente arrastou-os consigo. Caíram desamparados, e perderam em poucos segundos a altitude que lhes levara muito tempo a ganhar.
            Finalmente deixaram para trás as camadas agitadas de nuvens e voaram num céu claro e tranquilo. Era um estranho mundo encantado, de um frio penetrante e uma luz que cegava, e que parecia desligado de tudo o que havia na terra. A camada de nuvens estendia-se por todo o horizonte, uma planície branca, ondulada e vastíssima. Quase parecia sólida bastante para poisarem. O sol reflectia nela o seu brilho intenso. Mil e quinhentos metros adiante deles, um pico nevado rompia as nuvens. O seu cume era um penhasco nu e inteiriçado. Ao longe havia outros cumes, como ilhas, num vasto mar de brancura.
            Os maçaricões voaram rente à camada de nuvens, ao encontro do pico. Avançavam lenta e penosamente. Voavam de bico aberto, ofegantes no ar rarefeito, e os corpos doíam-lhes. Ao aproximarem-se do cume o vento refrescou de novo. Farrapos de neve turbilhonavam pela encosta. Evitaram-nos e poisaram, para descansar numa aresta do penhasco, donde o vento varrera a neve. E de novo tinham que padecer. O ar seco e rarefeito tinha-lhes perturbado fortemente o equilíbrio dos líquidos. As gargantas ardiam-lhes de sede.
            Menos de cem quilómetros adiante floriam exuberantes orquídeas e cactos do verão tardio sul-americano. Mas aqui, no tecto das duas Américas, seis mil metros acima do nível do mar, reinava um inverno sem fim. Mesmo por baixo deles encontrava-se um mundo incerto e assustador. Massas brancas misturavam-se umas nas outras, mal se distinguia onde terminavam os montes nevados e começavam as nuvens. Nenhuma criatura podia manter-se aqui por muito tempo. E apesar disso encontravam-se traços de vida, uma vez que grande parte da falésia era constituída por esqueletos fossilizados de animais marinhos, que tinham vivido há milhões de anos, quando os continentes ainda não existiam, e o cume da montanha era apenas lodo no fundo dos oceanos.
            As dores abrandaram e os maçaricões continuaram para Oeste, sobre a neve que o vento moldara, acima da camada de nuvens. E longo tempo continuaram em frente, evitando o manto branco, pelo menos quando não sabiam exactamente o que havia lá por baixo. Atrás deles desapareceu o pico, num véu de neve e neblina. E então abriu-se o tapete de nuvens. A camada contínua e plana deu lugar a fundas depressões de causar vertigens, e a elevadas colunas brancas. Vieram ainda poços maiores, e num deles caíam a pique as paredes sem fundo. Através dele avistaram um planalto arenoso, parecido com um deserto, com manchas verdes e acastanhadas, de cactos e cascalho. Estava quatro ou cinco mil metros abaixo deles, pois a Oeste caíam os Andes abruptamente para o Pacífico.
(Cont.)

O último maçaricão-esquimó 27

(Cont.)
              A rota do Norte diferia da rota do Sul, e ambos deixaram para trás as Pampas e a zona dos ventos de Oeste. Agora tinham por diante as regiões florestais do norte da Argentina, onde não era fácil encontrar comida. Oitocentos quilómetros a Oeste ficava o Pacífico e as suas praias, mas pelo meio erguia-se a cadeia dos Andes. Chegaram à zona dos alísios de Sueste. Para terem vento de lado, teriam que voar para Nordeste ou para Oeste. Podiam escolher entre as selvas infindáveis do Brasil, onde quase não havia alimento nem lugar onde poisar, em 2500 quilómetros. Ou então as alturas dos Andes, com a sua atmosfera instável e rarefeita. Instintivamente o maçaricão rumou a Oeste.
            Durante uma noite inteira voaram sobre contrafortes montanhosos cada vez mais altos. Hora após hora foram subindo, até as asas vibrarem de cansaço. De manhã poisaram num planalto coberto de ervagem densa. A terra ondeava sem fim diante deles, ondeava subindo, até onde a vista alcançava. O horizonte parecia uma folha de serra. Nuvens brancas e cumes nevados fundiam-se uns nos outros.
            Logo que o sol mergulhou atrás dos Andes, os maçaricões reiniciaram o voo. Avançavam lenta e penosamente, uma vez que tinham de ir subindo sempre. O ar tornara-se rarefeito, oferecia às asas menor sustentação e menos oxigénio aos pulmões sobrecarregados. Eles eram aves de planície, e não possuíam os enormes pulmões dos lamas e seus pastores índios, que possibilitam a vida a cinco mil metros de altitude. Em breve ficaram cansados. Algumas horas antes do amanhecer poisaram, esgotados, na saliência duma falésia. Uma escassa camada de líquenes e musgos tinha-se agarrado à rocha. Descansaram ali o resto da noite, encostados um ao outro, defendendo-se das rajadas do vento cortante.
            Caiu a luz da manhã sobre um mundo áspero e desolado. Falésias cinzentas e pedaços de nuvens em movimento, que pareciam asas brancas de um vento eterno. E ainda não tinham atingido o ponto mais elevado. Os cumes que agora tinham de ultrapassar estavam escondidos atrás de massas de nuvens agitadas. Em nenhum outro lugar do mundo, salvo nos Himalaias, se encontram altitudes tão elevadas.
            Mas mesmo aqui viviam insectos, e os maçaricões puseram-se à procura de alimento. Era uma operação lenta e difícil, não por haver pouco alimento, mas porque cada movimento era extenuante, exigindo muito oxigénio. À noite o ar arrefeceu rapidamente. Começou a nevar e eles não retomaram o voo. As turbulências atmosféricas e as enormes barreiras de falésias e glaciares só podiam ser ultrapassadas com a luz do dia.
            Nessa noite não puderam dormir, e quase não descansaram. O vento rugia estridente contra a parede da falésia e empurrava os duros flocos de neve. Por momentos, mal se conseguiram resguardar. Então uma poderosa rajada retirou-lhes o chão debaixo dos pés e arremessou-os na escuridão, no medonho vazio do espaço. O macho lutou, defendeu-se, retomou o controlo das asas e poisou. Mas a fêmea tinha desaparecido.
            Desesperado, tentou gritar mais alto que o rugido da tempestade. O vento não trouxe qualquer resposta, para além dos seus próprios gritos. Quando este amainou o maçaricão levantou voo, descreveu pequenos círculos a baixa altitude, gritou, e procurou, e gritou em vão. O vento cresceu de novo e ele não pôde manter-se em voo. Agarrou-se aos musgos da falésia e esperou, sem respiração. A tempestade amainou por um momento e ele voltou a levantar voo, mas a sua resistência acabou rapidamente. Não podia continuar. Então encontrou um buraco na falésia que o defendeu da tempestade. Encolheu-se lá dentro, arfando, de bico aberto. O corpo precisava de oxigénio. E quando retomou forças voou de novo pela noite escura e bravia, descreveu círculos e gritou pela fêmea. Torturava-o a antiga solidão.
            Encontrou-a uma hora depois. Tinha-se escondido da tempestade por baixo duma saliência de xisto, na falésia, e estava tão perturbada e exausta como ele. Encostaram-se um ao outro, e o calor dos seus corpos derreteu um pequeno círculo de neve granulosa. (Cont.)

Vertigem

Primeiro de asco. Em breve de ódio.

sábado, 5 de abril de 2014

"Os perdões fiscais eram a paga das dádivas das empresas ao partido"

Todos os figurões do PPD, sem excepção de vulto, estariam ainda hoje a ressonar em sossego no chiqueiro da velha porca fascista, se Abril não tivesse vindo inquietá-los, e o poder não lhes tivesse caído nas unhas.
Desde então, o PPD foi sempre actor primeiro no palco da tragédia portuguesa, onde teve alguns compères. Ninguém imaginava é que uma tal escumalha fosse capaz de ir tão longe

A guitarra de Tárrega, há cem anos.

Versão de D. Russel? Ou esta de T. Rizhkova.

Vidas 9

Conclusão

A objectividade destes relatos é atestada por alguns dados recorrentes: a existência dum segundo abalo violento, o maremoto de que foi acompanhado, o incêndio da alfândega e do Paço da Ribeira, os violentos incêndios que devastaram a cidade, e desorientação e sofrimento geral do povo.
São de notar duas atitudes diversas. Organizado à volta do sr. Q., este conjunto de pessoas procura, desde a primeira hora, agir de forma racional e organizada, de modo a dar a melhor resposta à situação: salvar individualmente a vida, mas também procurar salvaguardar os bens existentes na casa comercial. (...) 
Ao contrário disso, entre o povo geral instala-se desde o primeiro momento um estado de desorientação e fatalismo profundamente negativo. (...) O povo é visto como abandonado a si mesmo, pasto do seu pânico, das suas crenças e preconceitos e da má organização colectiva. (...)
"Dos meus criados domésticos nenhum está em casa. Vagueiam todos pelos campos, e seguem as imagens religiosas que os monges transportam".
"Aqui não há produtos alimentares nem pão. É como um deserto e não sei como vai ser, pois tudo está na maior confusão. O Rossio está tão cheio de gente que não há lugar para todos."
"Ninguém se preocupa com o fogo, e não se faz absolutamente nada para o apagar. Oiço ali ao lado que há ladrões a lançar fogo nalguns lugares, para mais depressa poderem roubar".
"A gente vulgar, e em parte também as pessoas de condição, não pensa senão que vai chegar o dia de juízo..."
"Não se encontra ninguém que queira trabalhar por dinheiro."
"Os monges andam por aí com a cruz e o povo vai atrás; em lugar de incutirem coragem ao povo, levam-no para fora da cidade e gritam sempre: o fim do mundo está aí."
A última carta, escrita já seis meses após o terramoto, alarga-se um pouco mais em considerações sobre a situação comercial, a alta dos preços, a especulação imobiliária e a reconstrução da cidade. O governo despótico, a condição miserável do povo, a má organização social, o catolicismo fanático e a superstição popular são elementos de um quadro português, presente no espírito europeu da época.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

A propósito dumas obras públicas anunciadas

Um banho de sangue, trazido pela caça aos traidores que em 2011 assaltaram o poder e garrotaram o país, acaso poderia ainda salvar a situação e redimir os portugueses.
Mas o povo de Portugal caiu há séculos na ratoeira das pseudo-elites, e não tem alma para isso. O que dela ainda restava esgotou-se há 40 anos.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Crise, crescimento, globalização, competitividade, uniformização, mais do mesmo...

Maior consumo de recursos, alterações climáticas, soberania reduzida, localização da economia, mercados/austeridade/penúria...

Vidas 8

De Ninote, em Lisboa
Para Q. no Campo Grande
5 de Novembro

O senhor deve considerar-me morto há muito, e é verdade que estive muito perto da morte. (...) Finalmente esta manhã dispôs Deus que alguns soldados, ao fazer a sua ronda, passassem pela nossa casa e ouvissem as nossas vozes. (...)
Soube com muita tristeza que a sua casa foi destruída pelo fogo, mas não sei onde o senhor e a sua família se encontram. (...) Estou ainda muito fraco para o procurar, mas o senhor é suficientemente bondoso para mo permitir. (...)

quarta-feira, 2 de abril de 2014

O último maçaricão-esquimó 26

(Cont.)
         Agora cada um procurava alimento para si próprio, sem prestarem atenção um ao outro, embora se mantivessem próximos. E, mais que nunca dantes, o macho sentia-se atraído pelo montão de pedras, junto à curva do rio, na tundra distante.
            Levantou voo quando chegou o crepúsculo, circulou sobre a fêmea e chamou-a. Ela lançou-se para o ar e voaram juntos para o interior, sobre as elevações que bordejavam a costa. Depois do escurecer poisaram numa encosta atapetada de ervas e dormiram um junto do outro, os pescoços quase se tocando. O macho sentia-se renascer, uma outra vida tinha começado.
            Ao romper do dia regressaram à praia. Depois foram voando rapidamente para Norte, cerca de quinze quilómetros em cada etapa. De vez em quando faziam pausas para comer, mas a tundra chamava, cada vez mais urgente. Cada dia que passava voavam mais longe e comiam menos do que na véspera. No princípio de Fevereiro estavam já a 1600 quilómetros do ponto de partida. E como sempre, na viagem para Norte, paravam nos charcos à beira-mar. Era primavera, e as gónadas produziam cada vez mais hormonas sexuais, que lentamente faziam crescer a sua excitação. Muitas vezes o macho interrompia bruscamente a busca de alimento, e pavoneava-se em frente da fêmea como um galo de combate, com a plumagem do pescoço tufada e as penas da cauda emplumadas em leque sobre o dorso. Então a fêmea inclinava-se, de asas frementes, e pedia comida como se fosse um pintainho. O macho oferecia-lhe um petisco, os seus bicos tocavam-se, e com isso terminava o jogo nupcial.
            Uma noite, quando um forte vento de Oeste soprava sobre os montes junto à costa, voaram terra adentro, como habitualmente. Mas desta vez o macho subiu mais alto do que era costume. Seguiu Pampas adiante, e, quando a escuridão caiu, continuaram a voar. As etapas diárias que tinham percorrido eram curtas, e já não satisfaziam o impulso migratório cada vez mais urgente. Deixaram a costa para trás e voaram para Noroeste, na direcção dos Andes. O macho sentiu diminuir a tensão, ao reconhecer, com a primeira noite, que a migração tinha de facto começado.
            Voaram durante seis horas, as asas fatigaram-se. E quando poisaram para descansar era ainda muito escuro. Agora deslocavam-se pouco durante o dia. Mas, logo que o sol se punha, o maçaricão conduzia a fêmea para as alturas do céu e encaminhava-se sempre para Noroeste. A cada noite as asas ganhavam força, e, uma semana depois, voaram sem parar, do pôr-do-sol até à madrugada.
            E assim continuaram, o macho sempre à frente e a fêmea um pouco atrás, arrastada pelo turbilhão numa das pontas da asa. Na escuridão falavam continuamente, enviavam-se pequenos sinais, um pouco mais fortes do que o rumor do vento cortado pelo voo. E o macho foi esquecendo lentamente a sua antiga solidão de sempre. Encontravam muitas tarambolas. Mas os dois bastavam-se a si próprios, e a sua relação preenchia-os tão completamente que nunca se juntaram a qualquer bando. A maior parte das vezes voavam sozinhos.
(Cont.)

terça-feira, 1 de abril de 2014

Abril

Salgueiro Maia ao Panteão, seus canalhas!