tag:blogger.com,1999:blog-8399797513158322092024-03-18T16:02:15.122+00:00Ladrar à LuaA especialidade da casa é a tortura do sono.
Fechar os olhos não vale.Jorge Carvalheirahttp://www.blogger.com/profile/12796461165499777819noreply@blogger.comBlogger5914125tag:blogger.com,1999:blog-839979751315832209.post-41230756563215511992024-03-18T16:01:00.002+00:002024-03-18T16:01:23.345+00:00As Aves 2-14<p><span style="font-family: arial;">As conversas são como as cerejas, é isto um facto por demais sabido e redito, mais ainda se de imaginações e lembranças se trata, vento que não cansa, rio que não pára de passar. Vejamos o caso de Gaspar, que temos acompanhado, se exemplo nos faltar para a demonstração. Vai esta sossegada barca assim Castela adiante, no mar calmo da noite, tão apertados os viajantes por força do escasso habitáculo que mal podem mexer-se, mais parece que tomámos lugar na arca de Noé. Esta mulher dorme, acaso tem o espírito mais leve, ou consegue apenas aconchegar melhor o pequeno corpo no minúsculo assento, o luar não chega para animar esta paisagem que de seu natural é monótona e repetitiva, e no caminho apenas o condutor reparou numa patrulha de carabineiros, brutamontes altos que ali estavam. Tal é o visível sossego, que poucas palavras temos ouvido, mas o frenesim das lembranças e o cavalgar dos pensamentos tem sido o que se viu, e vai agora a missa apenas em metade.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Quem não precisa de assistir à metade restante somos nós, baste-nos o que já vimos para tirar conclusões. Estes dois são clandestinos que o desenrolar da revolução empurrou a buscar outros ares, por certo sob pena de males maiores, é bem verdade queimar-se quem com fogos brinca, se não é mais concreto dizer que nenhuma revolução poupa os filhos. Não inventámos nada desde os velhos gregos, já entre eles havia quem não soubesse furtar-se ao implacável destino, acaso será a vida de cada homem vera revolução, desde que o mundo começou.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Gaspar não desencostou a cabeça da pequena vidraça, um rosto fechado assim apoiado na mão esquerda, mas na sua ideia vai ainda a entrar no autocarro já falado, avança, lenta, a bicha dos passageiros, compra e não compra bilhete, que este motorista não gosta de fazer tudo por atacado, guiar o mastodonte e cozinhar os trocos, se lhe perguntássemos diria que enquanto se capa não se assobia, é esta discutível ciência o mais eficaz modo de propongar a vida. E só a palavra de João, que assim se chama este condutor são cristóvão, logrou interromper-lhe o devaneio, e trazê-lo de novo ao momento. Salamanca está aí, não tarda chegamos aos arrabaldes, o melhor é comer alguma coisa e dar uma folga às pernas, ainda há muito que andar, a dormida é só em Palência. Alvíssaras capitão, alívio geral neste convés, lá está o clarão nocturno da cidade, são dez da noite, uma aguada vem mesmo a calhar. (cont.)</span></p>Jorge Carvalheirahttp://www.blogger.com/profile/12796461165499777819noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-839979751315832209.post-90381000668110413822024-03-17T09:10:00.006+00:002024-03-17T09:10:40.028+00:00As Aves 13<p><span style="font-family: arial;">É talvez por estar distraído das lições da nossa história que este gasolineiro nãosai da sua pacatez, nem desliza sorrateiro para o telefone ao receber os talões militares, senhor general dos comandos, sei como tem vocelência no coração uma alma de patriota, tenho acompanhado nos últimos dias tudo quanto tem feito para nos livrar do perigo comunista, pois olhe que passou agora aqui um desses traidores à pátria, num carro que também é vermelho, o melhor é deitarem-lhe a mão. Este gasolineiro não quer saber, acaso estará também farto desta pátria, limita-se a olhar mais atentamente o cliente paisano ao receber os talões militares, e, se perguntou aos próprios botões de que lado estará este na batalha que aqui se trava, não exteriorizou a pergunta e Gaspar não tem que responder, moita carrasco. Pelo sim pelo não arranca intranquilo, e mesmo sem razão avança mais depressa, à medida que se mistura no trânsito citadino.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Esta cidade está hoje mais sossegada do que é seu costume, dizemos nós quando deveríamos precisar que parece desconfiada e temerosa, os olhares comuns parecem outra vez os antigos, olha este homem o céu no temor de que ele traga chuva, quando ontem estava bem seguro do sol que todos os dias o sol manda. Olhares outros mais triunfantes haverá também por aí, não é difícil imaginá-lo, mas desses não encontrou Gaspar nenhum sinal na rua. E não é por distracção. Esqueceu-se de que, sendo a rua o natural lugar das emoções do povo, outros lhe preferem os salões. Deixa o carro no Campo Pequeno, a mulher o irá buscar. E é mais descontraído e confiante, por se ver assim dissolvido entre os passantes, que sai de novo para o subúrbio, na camioneta do Barraqueiro.(cont.)</span></p>Jorge Carvalheirahttp://www.blogger.com/profile/12796461165499777819noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-839979751315832209.post-12636772836150744582024-03-14T12:06:00.000+00:002024-03-14T12:06:08.057+00:00As Aves 12<p><span style="font-family: arial;">E Gaspar lá fica, enquanto a situaçãose vai desmoronando. A rádio traz notícias da queda de quartéis, notícias do estado de sítio na cidade, notícias das prisões e do medo. Os telefones já não funcionam e Gaspar vai-se embora, são oito da manhã e ele não pode voltar a casa. Leva no bolso uma velha pistola de guerra, por que será que uma lembra a outra, da revolução e da guerra falamos, sempre tão próximas ambas, quem quiser a revolução tem que aceitar a guerra, parecia que tornar o mundo um lugar habitável havia de ser desejo natural de todos os homens, sonho a construir em cada dia, pacificamente. Porém, muito seengana quem cuida, e muito mais Gaspar, que só mais tarde aprenderá não haver salvação para os homens, porque nem todos dela precisam, dirão sempre alguns que já estão salvos, e muito bem, assim.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Esta manhã é chuvosa e enfermiça, longos nevoeiros cobrem o rio, como poderia a mesma natureza ficar alheia à consumição que em tantos peitos lavra, e Gaspar lembra-se de esconder a pistola num dos bancos do carro. Atravessou a vilória encolhido atrás da roda do volante, desejando que ninguém dê por ele, e agora vai deixando para trás a charneca em direcção ao Porto Alto, se haverá barragens na estrada, e, havendo, como reagir-lhes, pergunta que deixa sem resposta enquanto passa, temeroso, a entrada do campo de tiro de Alcochete e se lembra das experimentações que andou por estes ares a fazer, do velho material de artilharia que era preciso adaptar aos aviões, já não havia material para o cansaço africano, já ninguém nos vendia material para a teimosia africana, o império aguentava-se preso por arames, e Gaspar lembra-se de quem aqui ficou pulverizado por má selecção duma espoleta, para que o império se aguentasse mais um pouco. A morte não énada do outro mundo, pensa Gaspar, salvo quando se morre ao serviço duma mentira colossal, caso esse em que tudo se resume a perda vã e total desperdício.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Os sobreiros da paisagem dormem ainda na humidade cinzenta da manhã, não é nada com eles, o trânsito é escasso na carreteira estreita, e vendo nós a sossegada marcha desta viatura não adivinhamos a agitação que vai lá dentro, o galope sem freio deste peito, o sobressalto de cada curva, se consegues chegar a Vila Franca tens as estradas saloias à mão, cala e confia, coração.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Numa esquecida bomba de gasolina tratou de encher o depósito, de nada servirão, no futuro, a este viajante, os talões de combustível que traz no bolso, não demora muito passará na televisão a sua cara de menino com apelos de delação e de captura, juntamente com outros igualmente perigosos traidores, tem esta pátria reincidente experiência denunciante e acusa-cristos, é um corropio de séculos, verdade que Gaspar não é judeu, nem bruxo, nem cristão-novo dado a marranices, não é estrangeirado, nem liberal, nem pedreiro-livre, nem comunista se lhe pode chamar, a bem dizer, é apenas um traidor aos objectivos da revolução, quem puder que entenda. (Cont.)</span></p>Jorge Carvalheirahttp://www.blogger.com/profile/12796461165499777819noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-839979751315832209.post-42204830572095916772024-03-09T16:11:00.006+00:002024-03-09T16:11:59.044+00:00As Aves 11<p><span style="font-family: arial;">As coisas políticas assustavam a sua ignorância, e a violência desordenada das consignas dos partidos fazia tremer a sua timidez insegura, qualquer che guevara de bairro impressionava o seu incerto pensamento ideológico, não podemos perder esta oportunidade histórica de implantar o socialismo, é preciso aproveitar a momentânea desorientação dos inimigos do povo e assestar-lhes golpes demolidores, e uma táctica assim é que tinha dado jeito na terra dos macondes, no planalto de Mueda.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Mas o povo não era um animal homogéneo, de contornos concretos e incapaz de incoerências, e isso ainda Gaspar o não sabia. Porém, foi-se dando conta de que o mais pequeno gesto íntimo, o simples modo de olhar o mundo e os outros homens tinha sempre uma significação política. Julgou mesmo descobrir que a revolução lhe trouxera resposta para enigmas do mundo nunca decifrados, e lhe desatara mesmo os nós da compreensão da sua própria vida pessoal. Sentiu que a revolução vinha resgatá-lo também a ele, e Gaspar escolheu o seu campo, sem avaliação de riscos. Andou por herdades na apanha da azeitona, assistiu a comícios, gritou em manifestações, acorreu a assembleias, sentiu raiva e temor em cada atentado bombista, em cada assalto, em cada assassinato, descobriu que não há limites para o impudor dos poderosos assustados, ainda não tinha então concluído que os ricos têm sempre razão, já que, quando a não têm, vem a fraqueza dos pobres oferecer-lha.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Gaspar hesita,mas já tinha escolhido o seu campo, e por isso estendeu as pernas para fora da cama e deslizou dos lençóis, cuidadoso, não valia a pena acordar a mulher. Os filhos dormiam, doces, nas camitas, e o comboio que passava perto, silvando vapores na ravina, lembrou-lhe a premência daquela voz que viera acordá-lo. Andavam cavalos à solta nos verdes prados da revolução e Gaspar não sabia de nada, ninguém lhe comunicara intenções nem planos, nem isso era importante, a sua mão não era indispensável, mas onde está a revolução que dispensa mãos, e que mãos dispensam a revolução depois de ela tomar assim o freio nos dentes.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Havia tropas amigas na rua, nos últimos dias era duma evidência transparente que ficaria sem cabeça quem a expusesse, e por isso Gaspar não compreende, sabe só que as tropas nunca se movimentam sem ordens, não sabe ainda que nunca saberá donde tais ordens vieram. Mas vai, porque já não pode recuar. Vai para uma base militar onde encontra confinada num salão toda a oficialidade, pastoreada pela tropa alevantada enquanto joga às damas, enquanto dá umas tacadas no bilhar, enquanto a meia voz comenta o insólito, quem sabe se inesperado, súbito lance. Gaspar ensaia uma explicação do que está a acontecer, tenta mostrar os limites da sublevação, procura legitimar-lhe os objectivos. Ainda não sabe que a razão não desempenha aqui qualquer papel, outros são os motivos que levam os homens a ver, não o que está, mas o que querem ver, numa revolução. E ele próprio é quem vê, pela primeira vez, o ódio nos olhos dos camaradas de ontem, o ódio nos olhos dos companheiros de África de ontem, que lhe chamam traidor e não entendem, alguns cospem-lhe aos pés e não entendem que se possa desejar outra coisa, que se pretenda substituir a definitiva rigidez de cadáver dos códigos deontológicos pelo calor suado e desprezível do povo, não entendem que se possa trocar esta vazia, mas certa, segurança, pela duvidosa aventura de indefinidas utopias, por sonhos incertos de transformar o mundo, assim é a tropa, a fingir-nos a vida para nos interditar o ofício de a criarmos, e eles sem entenderem que chegou o momento do resgate, e que não o aproveitar será deixar toda a história a meio. (cont.)</span></p>Jorge Carvalheirahttp://www.blogger.com/profile/12796461165499777819noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-839979751315832209.post-25020602679460051792024-03-02T09:50:00.004+00:002024-03-02T09:50:59.869+00:00As Aves 10<p><span style="font-family: arial;">Dizia isto a pátria, enquanto empilhava nos anexos do hospital militar os destroços dos mutilados, Gaspar tinha-os visto passar de relance em cadeiras de rodas, amamentados por enfermeiros discretos, o olhar vazio confinado a corredores sombrios que apenas pesadelos habitavam, dizia isto a pátria ao mesmo tempo que escondia atrás de muros altos, para que ninguém os visse, os restos da guerra que o furor de marés longínquas vinha arrojar ali, como troféus perversos. Nessa tarde, ao descer a João XXI a caminho do Campo Pequeno, Gaspar ouviu claramente o que a pátria dizia, olhou para si próprio e sentiu-se um cordeiro imolado.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Mais tarde voltou à África, ao aroma azedo dos bairros negros e aos lamaçais do Corubal, às evacuações de soldados estropiados das pistas de terra do mato, leve-me depressa, meu alferes, não me deixe morrer, meu alferes, ambulância à chegada com médico e sangue, médico e sangue, mádico e sangue, voltou aos alertas dia e noite em aviões de museu, despejavam-se bombas em catadupa sobre as bolanhas silenciosas, sobre a paisagem de rios indiferentes, sobre a África inteira, e do chão subiam cogumelos de fumo espesso que eram a raiva das acácias violentadas, que eram a fúria dos embondeiros a desmoronar-se, e ondas de choque faziam ranger as velhas carcaças dos aviões que se retiravam à pressa. Voltou aos alertas dia e noite, para aliviar os quartéis flagelados a toda a hora pela artilharia do inimigo, pelos morteiros do inimigo, pelos foguetões do inimigo, abria-se um buraco na barriga dos velhos dakotas e semeavam-se bombas à mão pela noite africana, lá em baixo acendiam-se fiadas de pequenos fogachos brilhantes, fogos-fátuos de fim do mundo, espécie de rosários sacrílegos, berravam os capitães da tropa ao rádioo seu desespero indefeso, enquanto desencravavam a espingarda automática em subterrâneos lúgubres, cobertos de sacos de areia e troncos de palmeira apodrecidos.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Um dia voltou a Lisboa, já a revolução tinha tomado o freio nos dentes. Percorria a cidade uma euforia que só acontece um vez na vida, porque não há energia que a viva duas vezes, e inundava praças e avenidas uma grande catarse colectiva, que floria em risos e rosas vermelhas. Ele há males que vêm por bem, vale a pena todo o sofrimento do mundo para ver um grumete de marinha silenciar um general já com lugar cativo na história, é da voz e da vida de homens que aqui se trata, meu general, daquilo que eles nunca tiveram, e essa táctica não vem nos seus livros, meu general, não são deste céu as suas estrelas cadentes. Há males que vêm por bem, mas também já se tem visto o contrário, muitas casacas tornaram-se subitamente incómodas e virá-las é uma urgência, de repente a longa noite de cinquenta anos fora apenas uma fatalidade indesejada, pomos um cravo ao peito enquanto as pratas passam a fronteira, e os quadros do Botelho, e as jóias de família, quero que a menina se ponha a salvo em Madrid com as crianças, sabe lá o que estes comunistas são capazes de fazer. Os reorganizadores do proletariado pintavam nas paredes grandes bandeiras vermelhas e operários imponentes, cada mural era um decreto-lei, e uma tarde no Rossio viu-se Gaspar misturado na multidão que gritava nem mais um soldado para as colónias. E lá foi,da Baixa a Sâo Bento, parecia aquilo um rio Jordão onde Gaspar tomou baptismo, ele que vinha de férias já não voltou à Guiné. (cont.)</span></p>Jorge Carvalheirahttp://www.blogger.com/profile/12796461165499777819noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-839979751315832209.post-41965388531497003142024-02-27T12:36:00.004+00:002024-02-27T12:36:27.915+00:00As Aves 9<p><span style="font-family: arial;">Gaspar confundiu aqui osalhos com os bugalhos, o seu desespero interior não lhe deixou ver mais um cão à chuva em cada transeunte, quando é disso que em verdade se trata, perdoemos-lhe nós a metonímia aflita, estamos apesar de tudo mais folgados, nós fazemos pela vidinha em cada dia, ele não pode. Talvez Gaspar sinta apenas inveja de não poder, isso não é muito claro, mas a verdade é que meteu dó a si próprio, tinham-no atraído assim com falas patrióticas para o violarem atrás do capim, atrás de todas as roças de café que existiam no planalto, atrás de todas as cantinas do mato que trocavam milho e feijão por reles chitas coloridas, atrás das mesas de todos os bares nocturnos da ilha de Luanda, onde inglesas de Moscavide cavalgavam um estropiado can-can, antes de se meterem às estradas de Malange e Salvador do Congo, tinham-no atraído para o violarem atrás da pesporrência vil de todos os colonos que cheiravam a suor e pediam armas, que desprezavam a tropa e exigiam armas para massacrar os pretos todos e resolver a guerra num ai, tinham-no violado atrás dopalanque azul do 10 de Junho, à beira do Tejo que marulhava indiferente a tudo, à beira de viúvas também elas violadas pela cicatriz gelada das cruzes de guerra póstumas ao peito.</span></p><p><span style="font-family: arial;">O exército é o espelho da nação, e isto é o que se lia nos panfletos colados a esmo nas ruas da cidade, virava-se uma esquina e logo tropeçavam os olhos naqueles rectângulos de cor envergonhada e baça, não tão baixos que pudesse mão herética meter-lhes a unha e silenciá-los, nem tão altos que risco houvesse de perder-se na atmosfera da tarde a jaculatória patriótica, o exército português é tão bom comoos melhores. Muito melhor que os melhores, diremos nós para que a verdade se saiba, pois convém a César dar o que de César é, e para o provar vamos ali à foz do Massanza, um destacamento avançado onde um pelotão de atiradores vai defendendo a soberania, do outro lado do rio alastra na paisagem , entre arames farpados, um sanzala de realojados, que estendem ao sol as misérias da lepra. Um dia os rústicos soldados saíram dos abrigos e deram-se a construir uma pista de aterragem, tinham-lhes prometido uma avioneta que poisaria ali uma vez por quinzena, não há nada melhor para romper o isolamento, para resistir à loucura ou receber o correio que houver, sempre se tem a ilusão duma ligação ao mundo. À custa de tempo e de suor aplainaram à mão esta faixa com dez metros de largo, esquartejaram umas dúzias de mangueiras bravas que arrastaram para as bermas, a pista começava logo à beira do rio e alongava-se até tropeçar ao fundo na colina, o resto do milagre haviam de fazê-lo os aviadores. E um deles o terá feito, uma vez sem exemplo, aterrou um dia a passarola mas só saiu daqui deixando atrás a carga toda e metade da gasolina, que a pista foi celebrada com cerveja mas não ia além de sessenta metros mal medidos, tudo quanto podemos fazer é passar em voo rasante e largar os sacos de biscoitos e massa, é largar as latas da marmelada e do atum, é largar os sacos do chouriço e da carne,se a houver. E foi a partir daí que toda a canzoada da sanzala passou a regular a vida por um estranho calendário, mal se ouve ao longe o roncar dum avião e logo os bichos se põem a atravessar o rio, espadamando na água as patas frenéticas. Cada um escolhe o deu terreno ao longo da pista, e é vê-los a disputar aos irados soldados os restos dalgum saco rebentado, lá vai este a fugir para o mato com um par de chouriços nos dentes, aquele abocanhou um pão, a princípio ainda se ouviam tiros e rajadas a afugentar os bichos, agora já nem isso, toda a gente afinal concluiu que a vida cista a todos, que todos ficam parecidos no retrato, o exército português é melhor do que os melhores. (cont.)</span></p>Jorge Carvalheirahttp://www.blogger.com/profile/12796461165499777819noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-839979751315832209.post-65138881126875966982024-02-18T17:08:00.004+00:002024-02-18T17:08:55.202+00:00As Aves 8<p><span style="font-family: arial;">Está ali encostado na cama, neste abandono lasso de membros, há muito que escolheu campo mas tem agora as suas hesitações, além de campo escolhido tinha o práprio Cristo o seu fadário, com mais adequada linguagem falaríamos dum destino, se o profeta não terá mesmo referido uma imposição categórica do pai, e por aqui se vê que não são de agora estes desconcertos de gerações, e apesar disso tudo o mesmo Cristo hesitou na hora da verdade, se for possível, pai, deixa que passe por mim este cálice sem que eu o beba. Gaspar hesita, e não é de fel o copo que tem que recusar, difícil não será isso para deuses mas ele é um simples mortal, o que teme é o risco, a insegurança, ai o aconchego tranquilo desta casa de terceiro andar. Gaspar hesita, a dar-nos tempo de contarmos aqui as contraditórias forças que o reclamam, há coisas que mais tempo levam a contar do que o fugaz relance em que sucedem, qualquer um sabe disso.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Vinha Gastar descendo a avenida João XXI, para o Campo Pequeno, à procura duma pensão, era ainda um menino dentro da sua farda de aviador. Trazia nos olhos aflitos o fascínio das paisagens de Angola, e as saudades dos amigos que tinha visto morrer, e as imagens absurdas que lhe povoavam os pesadelos e o aterravam, depois daquele encontro assim de cara aberta com a morte, num desastre aparatoso. Tinham-no mandado, ainda menino, defender a pátria. E ele acreditava que havia pátria, e que esta era uma e a mesma grande mãe de todos, e que devia defender-se, lá onde fosse preciso. E foi, e lá pôs a sua força generosa nas mãos dos que mandavam na pátria, e agora estava ali, regressado à rectaguarda para recuperação no hospital, como se rectaguarda houvesse, e trazia a alma cheia de rasgões e de medos, a precisar dum bálsamo, a precisar duma atenção da pátria, a precisar de um seu gesto suave no cabelo, como fazem as mães. E ao descer a avenida João XXI, desamparado que nem um cão à chuva, à procura duma pensão, de Gaspar falamos, pois claro, teve a revelação dolorosa da inutilidade de tudo. Poisou no chão o pequeno saco de viagem e encostou-se a uma ombreira alta. A multidão passava, era Setembro, e havia formas bonitas de mulheres expostas nos trajes exíguos, e havia um desdém ocupado nos homens que passavam engravatados, aos pares, com largos gestos de mão, a discutir importantíssimos interesses, e havia indiferença nos olhares que às vezes desciam até ele, sentado assim sem forças no degrau de pedra dum patamar, se dentre eles algum era olhar de poeta chegava-lhe embrulhado num cetim de fastio, ou numa grande tristeza, como se fosse um lamento, e havia um desprezo altivo nos lábios vermelhos das matronas que lá iam, agitando braceletes douradas. Havia olhos tristes e risadas escancaradas, a vida passava ao seu lado, como um rio, indiferente ao seu naufrágio interior, cega e surda à hecatombe da juventude que apodrecia lentamente nos planaltos africanos, que endoidecia lentamente nos planaltos africanos, afinal é mentira tudo quanto diz a propaganda oficial,<i>e eu prefiro rosas, meu amor, à Pátria</i>, afinal está pátria é uma madrasta galdéria que tem vergonha do abcesso africano, que prefere desconhecer o abcesso africano, que esquece, para não sentir, a dor que todos os abcessos provocam.</span></p>Jorge Carvalheirahttp://www.blogger.com/profile/12796461165499777819noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-839979751315832209.post-76629757523001202022024-02-08T18:46:00.001+00:002024-02-08T18:46:18.375+00:00As Aves 7<p><span style="font-family: arial;">Porém, não é de passeio que aqui se trata, isso mesmo afiançam os fracos cavalos desta carruagem que por Castela nocturna vai avançando, esgotados e raivosos já desta maratona, e melhor do que eles o poderia fazer Gasparse nos dissesse em que pensa, não foi um convite para passear que o acordou naquela manhã, haverá três meses. Eram sete horas, Gaspar dormia um sono pesado, os dias eram frenéticos como só sabe quem os viveu e ainda não se esqueceu deles, e as noites pequenas para leituras, dos clássicos para aprender de cor a revolução, e dos jornais da tarde para saber o que a revolução fazia acontecer, e que descaminhos tomava. Andavam loucos os cavalos da revolução, raivosos e esgotados como estes que agora nos transportam, mas menos dóceis e previsíveis, e a voz que apareceu ao telefone e assim arrancou Gaspar ao sono dizia justamente que havia estranhos cavalos à solta nos verdes prados da revolução, o melhor era pôr-se em campo. A mesma voz, a voz que apareceu ao telefone era a mesma voz que hoje de manhã lhe entregou o passaporte falso, quando passou a chamar-se Gaspar, e o seu tom era ainda mais seguro e voluntarioso do que hoje foi, quase triunfalista, se não era apenas exercício táctico de quem faz das fraquezas forças, ou ligeireza de quem mete os cães à fieita e na sombra se fica.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Assim mergulhado na penumbra matutina do quarto ficou Gaspar estremunhado e hesitante, já sabemos que o nome ainda não era este, a história já estava acontecendo mas ainda não tinha passado dos começos, chamemos-lhe por isso Gaspar, modo de falar para melhor nos entendermos. Estes olhos fechados têm pesadas olheiras de cansaço, e a cabeça que assim repousa encostada à cabeceira da cama parece, por momentos, agir por conta própria e buscar uma decisão. Gaspar sentiu o corpo da mulher abandonado ao lado, que mais verdes prados haverá no mundo do que estas tépidas campinas onde um vento enlouquecedor sopra sempre, ou do que estas ondulações a esconder na paisagem do corpo abismos de fogo e mel a que ele nunca soube resistir.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Na rua crescia a agitação matutina, alguém subiu e voltou a descer as escadas de madeira do terceiro andar, talvez o padeiro, a mulher-a-dias não teria ido embora sem bater, e ainda é cedo, que disparate, para ela chegar dos lados das barracas de Chelas, é assim, uns a comer as carnes da vida e para outros apenas a sobrarem os ossos, se não haverá mais justas formas de administrar os trabalhos e as incomodidades do mundo, descansem estes aqui no abençoado choco dos lençóis que outros lhes virão trazer à mesa os pãezinhos de leite para o café, as carcaças de farinha ainda assim cheirosa e quente, basta pôr-lhes dentro a manteiga que por ela mesma se derrete, e para quê pensar no trabalho que deu a produzir se por milagre aqui apareceu, com tão fraco merecimento nosso e tão a tempo de calar o apetite matinal que esta suada e gemida noite provocou. É o caso destes dois insignificante exemplo, que assim se toma por estar aqui à mão, são as pequenas coisas que mais claro significado têm e mais profundo sulco nos deixam na consciência, calhando um homem tropeçar nela.</span></p><p><span style="font-family: arial;">É o caso de Gaspar, insistamos no indevido nome, para bem ou para mal fruto da sua pessoal história, ou de certo currículo de vida, tem a revolução destes surpreendentes caprichos, como seja empurrar cada um até esta encruzilhada e forçá-lo a escolher um dos caminhos, agora diz lá de que ldo ficas tu nesta batalha que aqui se trava, a que vozes juntas a tua voz para gritar, porque a revolução é um grito que deixou de poder calar-se, se nunca tiveste direito a gritar aproveita agora, muitos nem assim se decidem, apura-se o ouvido e nada, nem preta nem branca, preferem ver primeiro em que param as modas, como quem escolhe cavalo só depois da chegada à meta, para terem a certeza de não perder a aposta que sobre a mesa está. Não é este o caso de Gaspar, que já escolheu campo, e acredita ainda que a vida se rege por princípios, e que tem ideais, e que está na hora de lutar por uns e por outros. (Cont.)</span></p>Jorge Carvalheirahttp://www.blogger.com/profile/12796461165499777819noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-839979751315832209.post-2034594874222064822024-02-01T10:31:00.001+00:002024-02-01T10:31:21.938+00:00As Aves 6<p><span style="font-family: arial;">Nestas coisas, o melhor é ter as despedidas sempre feitas, e este esclarecimento veio do condutor da minúscula viatura, parece impossível que tal estatura possa meter as pernas no espaço dos pedais, este consegue-o e mantém um ar seguro e decidido, mais tranquilos vamos nós nas mãos deste são cristóvão, o qual acrescenta, despedidas feitas e nada de pessoal, o que é pessoal tolhe gestos e decisões, retira disponibilidade para uma luta geral em que cada um de nós não toma mais que uma ínfima parte.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Cada um de nós pouco vale, o que conta é a vitória final e a confiança que havemos de ter nos amanhãs que cantam, onde é que eu já ouvi isto, perguntou a si mesmo Gaspar, o queixo apoiado na palma da mão e os olhos correndo a paisagem castelhana através do vidro minúsculo. O luar desenha rápidos vultos de ainheiras torturadas que trotam sem descanso, ao longe perpassam luzes de alguma <i>finca </i>isolada, ou serão apenas cristais duma lágrima que da taça deste peito transbordou.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Mas um homem não é de pau, com perdão do lugar-comum e de rasteiras insinuações, e muito poucas são as têmperas de puro aço. Gaspar alheou-se da circunstância, perdido nos seus pensamentos ou nos descampados infindos de Castela, raras aldeias desfilam a tempos no silêncio geral do mundo adormecido, o resto é estrada aberta sem encruzilhadas nem escolhas, este é um comboio que já não pára, não há apeadeiro para quemnele montou.</span></p><p><span style="font-family: arial;">A lua deslocou-se no céu, esconde-se agora sobre o tejadilho do carro, e Gaspar pensa que a esta hora já não bate o luar nas janelas do terceiro andar do Areeiro, se nalguma delas haverá ainda luz, se estarão já dormindo os filhos, ou se uma voz está justamente deslindando o final da história dos dois meninos que foram passear ao monte e se perderam. Que bosque é este, em que se perderam estes dois que aqui vão, e se esta história acabará, como a outra, em bem, no meio de abraços gerais e grande júbilo familiar, rico filho da minha alma, que julguei não tornar a ver-te. A outra é uma história de inventar, para adormecer meninos, há uma luzinha ao longe, no monte, e acaba por saber-se que, afinal, é a janela da casa dos ladrões, mas isso não passa duma peripécia que introduz o mal num jogo em que o bem acaba sempre por vencer. (cont.) </span></p>Jorge Carvalheirahttp://www.blogger.com/profile/12796461165499777819noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-839979751315832209.post-83916475384556233982024-01-26T18:14:00.005+00:002024-01-26T18:14:51.189+00:00As Aves 5<p><span style="font-family: arial;">Gaspar, que é o fumador, apaga cuidadosamente o cigarro, enterra a prisca no chão, vagueia no céu a lua, de barro da Andaluzia, quanto mais andas na rua, mais tempo ficas p´ra tia, isto ouviríamos nós se ele traduzisse em linguagem audível o que no pensamento lhe vai, há momentos assim, e gente desta, com olhos que vêem para além das coisas e do que nelas está, olha a novidade, o que lá está qualquer um pode ver, cego não sendo, uma lua, um céu fresco, três homens, pedras e moitas. O compasso é de espera e de abandono, já foi dito que a lua lá vai banhando o céu, do que se passa na alma deste homem não tivemos nós nenhuma confidência, fiquemo-nos por tais manifestações líricas, acaso espelharão elas o que por lá vai, tempestades ou ânsias, dúvidas ou medos, inseguranças quanto baste, e paixões as que houver.</span></p><p><span style="font-family: arial;">A lua, primeiríssimo astro feminino, é aqui motivo principal. É de barro andaluz, a cor é quente e a matéria mais que todas terrena e primordial, se dela o Criador lançou mão para fabricar a matriz de todos nós. O campo de sugestões está demarcado, e a quem não reconhecer o peso da Andaluzia nestes casos, baste-lhe o contraste de uma lua, por exemplo, finlandesa. Além disso esta lua vagueia, e verbos há que são fatais quando aparecem, haverá contradição neste homem, um desejar e um temer, algum querer e não alcançar, quem sabe até se algum pleito em vias de perder-se, ou então esta mais antiga e mais incerta guerra do mundo, entre homem e mulher, se não for antes a guerra de um homem consigo mesmo. Tudo são congeminações nossas, mas a censura aí fica, tão claramente expressa, a quem se dirigirá ela. E, a propósito, notemos nós este semblante que se carregou, a fachada que um ricto endureceu, este olhar anuviado por impalpável brisa, acaso um pestanejar da lua fatigada, ou fiapo de nuvem que passou.</span></p><p><span style="font-family: arial;">À espera deste pestanejar de faróis estava o mestre passador, cujo vamos! decidido cortou divagações ou o mais que fossem, conflitos ou enleios. O carro passou devagar na carreteira de macadame, os faróis abriram dois leques sobre o nada da paisagem nocturna, se alguma coisa era de mencionar não a notámos, que estes três já lá vão em marcha acelerada, o objectivo está ali à vista naquela berma ao fundo, este chão foi lavrado, a terra é mole, os pés enterram-se. Vou ali já venho, deu o carrouma volta no cimo daquele outeiro, ou porque o espaço é mais amplo, ou por hábito de outras repetidas viagens, não nos dizem as rodas de borracha se reconhecem este piso, nem os olhos de luz sejá iluminaram este chão, entrem rápido, não convém parar aqui muito tempo. Isto recomendou ainda o mestre, passador, e de facto entre quedar-se o carro, apear-se esta mulher e alçar o banco dianteiro, abrindo caminho para os lugares traseiros, não decorreu um ai. Os gestos são precisos e eficazes, parecem estudadas partes de um mais amplo e desconhecido conjunto, quem é este homem novo que nos conduz, ou esta jovem mulher que o acompanha, o nosso caminheiro que já desapareceu na noite, quem será, se nos tornaremos a ver, até nos esquecemos de fazer as despedidas. (cont.)</span></p>Jorge Carvalheirahttp://www.blogger.com/profile/12796461165499777819noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-839979751315832209.post-29480234438204585242024-01-24T10:46:00.000+00:002024-01-24T10:46:12.369+00:00As Aves 4<p><span style="font-family: arial;">Agachados na sombra, que nem sempre o luar triunfante é uma bênção dos deuses da luz, fazem-nos estes lembrar três conspiradores passando palavra no descampado, se é do preço da jorna que se trata ou se das oito horas da mesma nunca o saberemos, desnecessária congeminação esta que só imagens antigas alimentam, imaginações nossas deslocadas num tempo em que já não há patrulhas a cavalo pelos montes, de longe pastoreando ranchos de proletários descontentes, nem searas daqui se avistam, este campo é um pedregulhal cerrado, giestal bravio e um carrasco de horas em quando, nada aqui poderia medrar, que é das moitas, roeram-nas as cabras.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Estão os três homens estendidos no chão, cosidos com o terreno como já se tornou hábito ouvir, cada um deles procurando moldar os volumes do corpo às ásperas incomodidades naturais. O mestre passador ainda vá, é homem que não estranha intimidades com terras e mato, que sempre neles viveu e não se lhe dói o rude fato, não estes que são gente de cidade e usam vinco na calça, perderam aqui a estranheza, se não a relutância, que peso a isso os constrangeu é coisa que viremos a saber. Este da derradeira levantou dois calhaus que ali dormem, para acomodar uma perna cansada, cuidado com os lacraus, foi a voz sussurrada co capitão, se tal terá sido a justa palavra, há coloridos modos de dizer que os homens usam, como alcrários, o bicho é o mesmo e nem a peçonha varia, mas outro é o sabor na língua, que nem em todos os livros vem, por isso traduzimos nós, para alguma coisa aqui haveríamos de estar. Entendeu-o bem este homem, ou intuiu apenas, a perna é que não mais mexeu.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Nem a aragem, no suave céu. Sobe lento o fumo do cigarro que este esconde no côncavo das mãos, sinal de à vontade que baste no meio da tensão crispada que temos observado, o silêncio geral, o ramo que à passagem se ampara, o leve pisar, são gestos discretos de quem se quer calado e evita restolhadas. O geral dos homens, no comum da situação, aproveitaria tão propositado adjunto para das que fazer à língua, bendito instrumento muscular que, por força de tanto exercício, raramente sofre de paralisias, encordoamentos ou outras afecções. Bendigamos nós, de passagem, este magnífico dom, afinal era este o fogo de Prometeu, e bastas razões de queixa tiveram os deuses maiorais, se com ele os homens fazem e desfazem mundos, se criam ou aniquilam a si próprios, se eregem ou destronam os mesmos deuses. Não, porém, estes três que aqui vemos, destes silenciosos homens falamos. Porventura o simples facto de aqui estarem, neste lugar e nesta postura, os une e os identifica, nada têm a acrescentar ou a esclarecer, há casos assim em que os dados estão lançados, quanto ao resto só o silêncio é certo. (cont)</span></p>Jorge Carvalheirahttp://www.blogger.com/profile/12796461165499777819noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-839979751315832209.post-72458036243756196082024-01-22T10:34:00.001+00:002024-01-22T10:34:10.503+00:00As Aves 3<p><span style="font-family: arial;">O da frente, mais velho, leva uma boina espanhola. E, se não nos enganam os sinais do atavio, o coçado das calças de pana e as alparcas leves de borracha, sem erro podemos considerá-lo passador. Entenderemos agora por que o vimos ali atrás, sentado bem três quartos de hora perto da estrada, alheio como se nada mais esperasse que o cair da noite, atento apenas à passagem dum carro branco, peuqeno, quatro passageiros, dos quais uma mulher nova. Vimos sair os viajantes do banco de trás, vimos o carro inverter a marcha e dirigir-se à portagem da alfândega, vimos três homens avançar para leste, a corta-mato, vê-la-íamos, com este luar, se a linha de fronteira estivesse marcada no chão, nada nos falta para concluir que se trata aqui de passar a salto a fronteira de Espanha.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Muitas voltas dá o mundo, o certo é que nalguma se há-de repetir. Preparemo-nos para a intervenção próxima do mesmo pequeno carro branco, agora já em carreteira espanhola, lá dentro um jovem casal que já passou a fronteira, atrás dois lugares vazios, se não é este o pezinho que ao meu sapato serve, onde estará.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Hevemos de reparar que vai mais afogueado o companheiro que na derradeira marcha, razão seria para que os outros o metessem no meio, por menos pesados erros tácticos está inchada a história de batalhas perdidas. Não sabemos nós de batalha que aqui se trave, ou será por tanto perigo haver na expedição que nenhuma hierarquia de galões se mostra nos ombros destes soldados. Tenhamos apenas por certo que, a haver derrota, dalgum canto sairá um general qualquer a salvar a honra dos que ficarem vivos, a justificar o sacrifício dos que vierem a morrer. Este da derradeira será um deles, ouve-se-lhe o tropeçar frequente, e, pior que tudo, já por duas vezes caiu, acaso tem pernas menos acostumadas a este rústico segredo de caminhar de noite por onde caminhos abertos não há, demais seria exigir que houvesse estradas reais para passar a fronteira a salto. Um dia virá esse tempo, a Europa será ela toda um lugar de encontro e livre trânsito, tanto como isso era nestes anos que o livre trânsito fazia falta, há dez anos que não temos visto mais que multidões de homens fugindo a salto por estes e outros montes, por que será, que febre lhes deu.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Perto estará a linha que dos castelhanos nos separa, tão roída de séculos no traçado que nos é impossível distingui-la, acaso a saberão de cor os guardas e mais carabineiros por dever de ofício, quem a conhece bem é este mestre passador, às vezes de pão ou de café, se não de simples caramelos viuda ou mais valiosos minerais, é de homens a carga desta vez, que por seu pé marcham enquanto nos folgam os ombros. Porém, sendo gente importante ou não, aumenta a responsabilidade, que estes não podemos alijá-los num valado qualquer, se um guardiãovier a mostrar-se mais activo. Acautelemo-nos no esconso desta moita, que tanto nos pediram sem mais nos explicar, isto é o que certamente exprime o gesto de mão do mestre passador, que acabámos de ver. (cont.)</span></p>Jorge Carvalheirahttp://www.blogger.com/profile/12796461165499777819noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-839979751315832209.post-53266232743608874322024-01-16T10:24:00.001+00:002024-01-16T10:24:21.316+00:00As Aves 2<p><span style="font-family: arial;">O outro que chegou é magro e decidido, se para o caso o dado é relevante, assim como a leve chuva que cai, antes nos fixemos nós nestes dois tons, a saber, o tom discreto em que a frase única foi dita, reservada, pessoal, clandestina se diria, eo tom voluntarioso e vivo de quem acende uma chama de coragem onde ela falta, fingida ou verdadeira coragem tanto monta, para alguma coisa ela servirá, só não sabe quem por elas nunca passou.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Nós passaremos ainda por uma rua de Olivais Norte onde outro homem nos espera num carro pequeno, os bombeiros ficam ali e são exactas as referências, lá está o outro viajante anichado no banco de trás, o carro é de facto minúsculo e escassa a bagageira, entendamos agora por que se impunha uma mala tão pequena e tão escassos meios de viagem. No restante do banco traseiro se ajeitou este homem, agora somos quatro e tantos ficaremos até chegar ao destino, uns ficam à espera dele, estes procuram-no, quem saberá dizer vantagens e razões nesta disparidade. Os cumprimentos foram breves, mais disseram os modos das palavras do que elas próprias, que o tempo é de partida e não de cortesias, terão estes viajantes outras mais fundas razões de entendimento do que a ligeireza das conversas, que tão poucas ouvimos enquanto durou a estrada e o dia se gastou.</span></p><p><span style="font-family: arial;">A noite está aí, os dias de Fevereiro são pequenos. O homem atravessou um pequeno ribeiro, anos mais tarde virá ele a saber que da ribeira de Tourões se trata, se, por curiosidade, vier a procurar no mapa o insignificante risco azul, ainda assim mais fácil de pintar que de transpor. O luar nascente, escassamente embora, mostra duas pedras que em seu leito repousam, pé aqui, pé ali, lá fica para trás a verde cabeleira dos limos que ondulam na água sossegada, meu tempo de infância e de rãs, de águas tépidas nos charcos da ribeira e de risos na tremulina da tarde, o capitão andador já lá vai adiante, rodeia este homem uma giesta negral mais forte e aperta o passo.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Acaso sentirá ele nas orelhas as dentadas desta aragem nocturna, melhor podemos nós avaliá-las no contraste com o tépido casulo deste sofá que nos acolhe, vantagens, enfim, de leitor que descansadamente assiste ao formigar do mundo, sobretudo se queixarão os tenros lóbulos e a mais exposta ponta do nariz, o restante geral do corpo vai quente e confortável. Por experiência sabemos como é grande o poder calórico das emoções dos homens, se as temos sentido, não o sendo o do fraco tecido do casaco deste nocturno viajante, ou o das levíssimas botas que tem calçadas, talvez o do pouco esforço que a caminhada lhe vai exigindo.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Com menos atenção de ouvido apenas aqui detectaríamos uma respiração, sendo três os halos de vapor que de três bocas se soltam, três os barcos que assim procuram porto na vastidão escura deste indistinto mar da noite, com pouco mais nos daria a fantasia lugar para as três filhas do rei que esperam a nau catrineta, que mistério tem o aroma do laranjal que não exista neste céu, onde se dilui a fina neblina da noite, mais um pouco do fumo das chaminés de aldeia distante, um tanto da húmida paz dos ribeiros que por estes montes se passeiam, e outro tanto do éter suavíssimo que esta redonda lua cheia sobre o geral mundo vai espargindo.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Três são os viajantes. (...)</span></p>Jorge Carvalheirahttp://www.blogger.com/profile/12796461165499777819noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-839979751315832209.post-1189492944882785572024-01-14T17:04:00.000+00:002024-01-14T17:04:29.521+00:00As aves levantam contra o vento 1<p><span style="font-family: arial;">Por enquanto nada sabemos do destino do homem que ali vai, em extremo concentrado no andamento das passadas que dá. Vemos que marcha atento e cabisbaixo, no gesto de quem poupa energias. Porém não tanto que perca de vista o andador que lhe vai na dianteira, obra de poucos metros, nem tão pouco que possa este limpo luar de Fevereiro lavar-lhe de sombras a barbada face. Nada sabemos, e dobrada razão é essa para atentarmos no leve pormenor, na mesquinha minúcia.cios </span></p><p><span style="font-family: arial;">Este gesto de andar por estes montes, igual seria se doutros montes se tratasse, o ar atento aos alçapões do terreno, agora velho restolho de pousio, há pouco bravio mato e padregal baldio, a controlada respiração que dos lábios lhe sai e aos ouvidos nos chega, bastm-nos para concluir que se trata de homam afeito ao campo. Será um caçador de vício, dos que em bando saem da cidade, quando para lebres e perdizes sopra anualmente a trombeta do juízo final. Mas este tempo é defeso, em primeiro, é insólita a hora para exercícios venatórios e escura em demasia para ajustadas pontarias em segundo, não se vê, este é terceiro, aràsma de fogo a denunciar intenções, nem, quarto e derradeiro, sombra de cão que essa injunção sustente. Assim nos cumpre o dever de ser minuciosos no exame, para evitar mal-entendidos e falsas bases de partida.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Há neste requebro de membros, no jeito como a perna que lançou a passada se amolda pelo joelho às fugas do terreno, no modo como o braço tenteia, a meia altura, o balanço requerido ao equilíbrio da rota, um grau de afeição e de familiaridade próprios só de jogos de campo já antigos. Sabemos que vem da grande cidade, já distante, que todo este dia o consumiu na apressada viagem que observámos, só interrompida para uma sopa caseira no primeiro andar da casa de pasto de Vila Velha, substanciosa sopa de feijão encarnado e uma estufada e dura vitela às fatias, lembremo-nos da insistente batida do velho relógio de coluna, a marcar o tempo e a urgência.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Vimo-lo, manhã cedo, ajeitar um par de pertences numa insignificante mala, avia-se em terra quem ao mar vai, pensámos nós, e não será grande o mar que este marinheiro espera, a julgar pela reduzida palamenta, uns pares de meias, duas camisas, nos olhos uma sombra, um tremor controlado de mãos, no final um olhar que passeou o espaço da sala, as paredes brancas, o colchão ali em pé, desajeitado, as duas mantas em que dormiu, o gesto de olhos é o de quem se despede e leva consigo mais do que tem na mão, a campainha tocou. São as nove horas prometidas, em baixo espera-nos um táxi, isto disse o homem que apareceu, enquanto lhe entregava um passaporte. O outro folheou-o, sorriu, ele há risos amarelos que não são de comprazimento, repetiu a leitura, Gaspar é o seu nome, se não condiz com o retrato que na primeira folha está cravado passa agora a condizer, as coisas são o que são, mas também aquilo que parecem. Fique então assente que, desde agora, este homem dá pelo nome de Gaspar. (cont.)</span></p>Jorge Carvalheirahttp://www.blogger.com/profile/12796461165499777819noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-839979751315832209.post-56447620186366226462023-03-18T18:14:00.003+00:002023-03-24T11:09:35.227+00:00Um dia tinha que ser!<p><span style="font-family: arial;">Chegou a altura de fechar a loja, sinceramente grato aos fregueses.</span></p>Jorge Carvalheirahttp://www.blogger.com/profile/12796461165499777819noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-839979751315832209.post-75430545459724053402023-01-29T17:16:00.003+00:002023-01-29T17:16:56.412+00:00Manás<p><span style="font-family: arial;">O bartolomeu não sabe explicar por que tomou a decisão de subir ao chiado, naquele dia à tarde. Certo está apenas de já não guardar esperanças no peito, à medida que ia subindo a rua nova do almada. Dormia há três meses nas arcadas do ministério das finanças, encostado a um pilar que os pombos ainda respeitavam. Esmolava no sul e sueste, quotidianamente posto em risco pelas avalanches de pernas que desaguavam de cacilhas, e aventurava-se a um almoço na económica dos anjos, quando as forças lhe deixavam subir a avenida, o que era raro. Nesse dia trepou ao chiado,como quem vai de férias.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Olhai as aves do céu, que não semeiam nem colhem! Soletrou o cartaz pendurado ao cimo das escadas da igreja dos mártires, que no íntimo sentiu como sua, porém sem cogitar o milagre que ali estava à espera. Atravessou o guarda-vento, tacteou ao longo da parede e lançou os dedos à pia de água benta, num gesto que desenterrou duma memória antiga. E foi quando a mão direita lhe transitava, canhestra, entre o pai e o espírito santo, que os olhos se afizeram à obscuridade e decifraram o peixe picotado no lioz da coluna, mesmo por cima do tanque.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Pouco dado a leituras cabalísticas, o bartolomeu ficou surpreendido. Mas logo saltou da surpresa para o espanto quando viu o peixe desprender-se da pedra e mergulhar na água benta, num encarpado perfeito.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Arqueou as sobrancelhas, roçou um punho nos olhos, não queria acreditar. Procurou assento num dos bancos corridos, e ali ficou, de queixo nas mãos, enquanto a fresca atmosfera da nave central lhe assentava lentamente na cumeada dos ombros. À saída foi espreitar a concha da água benta. O pequeno dorso do peixe evolucionava lá dentro, a lavrar, cuidadoso, as lodagens do fundo.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Oito dias depois regressou à igreja, e lá encontrou o vulto escuro a remexer as águas. Mas o que via agora eram dois palmos de lombada sólida e carnuda, de barbatana inchada, abrindo as guelras ávidas ao maná da água benta. Logo ali capturou o robalo a mãos ambas, fê-lo desaparecer no bolso e foi tratar do jantar.</span></p><p><span style="font-family: arial;">No dia seguinte foi à igtreja de são roque e saiu-lhe uma carpa enorme. Na sé teve direito a salmão. Nos jerónimos ia-se empanturrando de besugos, de linguados, de azevias. O bartolomeu tem o futuro assegurado. Levará muitos anos a percorrer as pias de água benta de lisboa. Depois há-de vir o porto, santarém, a idolátrica braga... E o bartolomeu olhará, sem cobiça, os pássaros do céu, enquanto for correndo as capelas do minho, à espera duma lampreia.</span></p>Jorge Carvalheirahttp://www.blogger.com/profile/12796461165499777819noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-839979751315832209.post-52895961513300513422023-01-06T12:53:00.003+00:002023-01-06T12:53:35.203+00:00A ninfa<p><span style="font-family: arial;">Eram os olhos a maior perdição dela. Tão grandes que neles cabia o mundo, tão escuros e fundos que lembravam o mar. Depois vinha a estampa límpida do rosto, debaixo da gaforina asa de corvo: o lábio húmido, a carnação macia, a flor da face cheia de mistério, a prometer abrir-se num sorriso que não chegava a abrir. O restoera o colo generoso, o ventre inquieto, as colunas das ancas a prometer abismos.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Ninguém sabe explicar como apareceu ali, criada na aldeia, aquela ninfa antiga. Olhava-se para ela e vinham à lembrança as deusas primitivas da fertilidade. O mesmo nome, Pristila, era um sinal pagão.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Dava escola para os lados de Aveiro, e vinha a casa sempre que podia. Chegava na carreira, ao fim da tarde, porque o pai, atento à vida,a reclamava.A bem dizer, era a aldeia inteira que a exigia.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Na vila sabia toda a gente que o Tunante não era boa rês. Era um vilão bastardo, que faziadeste mundo uma coutada de caça. E todos lhe guardavam respeitinho, mais por instinto primário de defesa, do que por atributos que não tinha. A ninfa confundia nele a brutidade grosseira com predicados de macho dominante. E quando vinha à vila, a passear, nem lhe escusava as momices atrevidas, nem os avanços de bruto galaroz. E acabou, já mansa e confundida, a enlear-se no assédio do bargante.</span></p><p><span style="font-family: arial;">No dia em que as férias começaram chegou a ninfa à vila, desceu da carreira ao fim da tarde. Uma outra que vinha do comboio havia de pô-la em casa. Mas o Tunante estava à espera dela. Cercou-a de rapapés e cortesias, havia de lhe mostrar a loja nova, logo à entrada das muralhas.</span></p><p><span style="font-family: arial;">A ninfa deixou-se conduzir. E quando veio a hora da carreira, à beirinha da noite, prometeu-lhe o Tunante que um amigo a levaria a casa, de carrinho, à moda das princesas. E ela logo se rendeu, enleada em semelhante gentileza. Tinha mesa posta e banquete preparado, bom presunto, melhor queijo, de vinho bastava-lhe um dedal, não estava acostumada.</span></p><p><span style="font-family: arial;">A princípio o Tunante foi cordato, coroou-a de rapapés, quis levá-lacom bons modos. Penteou-lhe a gaforina, passeou-lhe as mãos no flanco, encheu-lhe o copo de vinho. E abriu-lhe um botão do peito, só para ter uma noção.</span></p><p><span style="font-family: arial;">A ninfa aos poucos cedeu, o coração num galope. Dum lado o corpo inteiro a amotinar-se, o sangue a romper as veias,, o ventre incendiado a extravasar. Doutro lado um grande medo, a cara dele a perder as feições, e um gesto tão poderoso que a assustava.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Quando quis despir-lhe a blusa, a ninfa ainda resistiu. Mordeu o lábio para evitar um grito, cruzou os braços no peito sublevado, refugiou-se no medo. E o Tunante deteve-se um momento, pareceu abandonar o campo de batalha. Foi ajeitar, ao canto, as mantas que lá tinha. Depois apagou a luz, ergueu numa braçada a ninfa amedrontada e foi estendê-la no chão.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Lá fora passaram socas a tropear na calçada. Porém a ninfa hesitou, reteve outra vez um grito. E já dois braços poderosos lhe sujeitavam o corpo, e as pernas brutas lhe apartavam as colunas.e rudes mãos lhe devassavam o peito. As socas na calçada voltaram a tropear, mas a ninfa retraiu-se. Conteve a respiração, não fosse ouvir-se lá fora o ranger do bragal que estilhaçava. Por três vezes entrou nela um vendaval, três vezes a desfolhou. Depois caiu uma escuridão desamparada, e um lago que arrefecia.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Por fim bateram à porta, era o outro que chegava. Aconchegou a ninfa no banco de trás do seu Volvo marreco e arrancou. Antes de a deixar em casa foi parar na carreteira dos moinhos do Alcaide, ninguém ali passava àquela hora.</span></p><p><span style="font-family: arial;">O Tunante recolheu as mantas, fechou as portas da loja. Uma ninfa desfolhada dava casamento certo, era raspar-se um homem para o Brasil ou sujeitar-se aos códigos. Porém, em sendo o festim a meias, era ela assumida marafona e os códigos sossegavam. Cumprisse o amigo a sua parte e ficava o problema resilvido.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Quando o Outono chegou, depois das primeiras chuvas, o Tunante subiu para a camioneta e foi recolher à aldeia uns contratos de centeio. Bem o avisaram as sibilas, que desfizesse o negócio, que por lá tinha a morte prometida. Mas ele guardou a sovaqueira no casaco e lá subiu a encosta, a governar a vida. Um homem não saiu para outra coisa das mãos do criador.</span></p><p><span style="font-family: arial;">O pai da ninfa já estava à espera dele, sentado no balcão. E quando o viu saltar da camioneta, de machado nas unhas foi-se a ele. O outro ficou surpreendido, não podia acreditar. Estendeu a mão à sovaqueira e pôs-se a ladear, queria ver se era verdade. Mas o homem trazia no carão a fúria dum deus irado, como quem chega duma tragédia antiga, o melhor era levar a coisa a sério. E desatou a correr.</span></p><p><span style="font-family: arial;">As mulheres espreitavam à janela, havia gente que parava pelas hortas, a olhar, silenciosa. A própria tarde parou, a ver um homem cavalgar estrada abaixo,atrás doutro que fugia. Quando o sentia mais perto, virava o braço para trás e disparava. Disparou à passagem do ribeiro, e à horta da Teresa Côta, e à subida do negrilho, e à curva da fraga grande. </span></p><p><span style="font-family: arial;">Agora chegámos nós à fundeira da encosta, e já cruzámos a estrada, e temos à nossa frente o açude da ribeira. Não nos sobra mais que um tiro, e já nos queima o pescoço o bafo dum deus irado. O Tunante apontou-lhe ao coração e disparou. E o machado, que lá vinha como um raio, enterrou-se-lhe no ombro.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Mas vem dalém um pastor, a correr em altos berros, vem salvar esta desgraça. O primeiro já está morto, nada podemos fazer. Para que nos serve o segundo, um vagabundo. E num golpe de machado abriu-lhe a cabeça ao meio.</span></p>Jorge Carvalheirahttp://www.blogger.com/profile/12796461165499777819noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-839979751315832209.post-24409806265500073132022-12-25T18:21:00.003+00:002022-12-25T18:21:39.107+00:00Nocturno em si menor<p><span style="font-family: arial;">Alguns dormitam, maçados, nos beliches, ele viaja a noite inteira a pé. Entre o bar e o corredor, entre uma nova cerveja e os considerandos do salário que recebe. Quase setecentos contos, mesmo quando não embarca. Como agora, que vem a casa ver a mulher. Mas isso vai acontecer só amanhã, lá pelo meio dia, em chegando à Pampilhosa, depois de atravessar a infindável noite basca, a leonesa, a castelhana, num Sud-Expresso lôbrego.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Alfredo tem trinta anos e deixou a escola antes do tempo, em Mira. Foi trabalhar com o pai, no tempo em que havia quarenta companhas só nas artes da xávega. A princípio puxavam a rede à unha, com juntas de bois que enterravam os cascos no areal macio. Hoje não chegam à dúzia. O peixe foi-se embora, será culpa das <i>chuponas</i> espanholas. E ficou tão barato na lota quanto é caro nas bancas do mercado, não se compreende Portugal. Paga-se o gazol do barco e o resto mal dá para viver. De forma que o pessoal começou a emigrar e ele foi parar a Quipert, ao pé de Nantes. Foi há dois meses, mais um cunhado, é esta a primeira vez que vem a casa.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Em Quipert saem para o mar à quinzena e Alfredo é o cozinheiro. O dono do barco é tão velho que já não navega, toda a companha de sete é contratada. Mas o peixe vai à lota ao mesmo preço para todos e toda a gente ganha. Só não se entende o que se passa em Portugal.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Alfredo vem excitado com os considerandos do salário que recebe. Jantou no vagão restaurante, bebeu uma garrafa de bom vinho, no fim pediu um conhaque e pagou quarenta euros mas valeu a pena. Depois foi aturando a noite a poder de cervejas, e é por isso que já lhe arrasta a voz, e tem este bafo choco e amargoso, e repisa outra vez os considerandos do salário que recebe. Quando chega a Vilar Formoso desce ao cais durante meia hora, o tempo de mudar a máquina ao comboio. Bebe outra cerveja na cantina, com uns camaradas negros que exercitam um <i>hip-hop</i> lusófono, e também chegam da Europa.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Lá pelo meio-dia, toldado como vai, Alfredo levará tempo a encontrar-se com a mulher. E logo que o conseguir vão ser horas de apanhar outra vez o comboio Para voltar a Quipert, ao pé de Nantes. Onde agora é cozinheiro, sempre que sai ao mar, a pensar nos considerandos do salário que recebe.</span></p>Jorge Carvalheirahttp://www.blogger.com/profile/12796461165499777819noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-839979751315832209.post-44135189848592764452022-12-13T18:36:00.005+00:002022-12-13T18:36:51.956+00:00Responsório<p><span style="font-family: arial;">Vais-me dizer que eu inventei a história. Que eu sou um cínico e a história é impossível. Andas muito longe da verdade.</span></p><p><span style="font-family: arial;">O padre Abreu não é padre, nunca chegou a sê-lo. Não tem cabeça para teologias e as latinadas cansam-no. Mas veste-se à futrica, como os padres modernos, e sempre que pode exercita a função. Mora aqui na cidade. E o povo, que nãosepara o facto do direito, chama-lhe padre Abreu.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Razão terá, que o padre Abreu não sonha com outra coisa, passa a vida na sé. Ajuda à missa, cuida da liturgia, aconselha as devotas e decora os responsos. Já perdoou pecados capitais, e gente há que entrou no céu por sua mão.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Há tempos foi preciso enterrar um cristão, numa aldeia dessas despovoadas, onde nem padres vão. E o padre Abreu lá foi, a encomendar o defunto, a devolvê-lo ao pó. Mas os parentes vieram a saber que o padre Abreu nunca tomara ordens e temeram o pior. Puseram-lhe uma demanda em tribunal.</span></p><p><span style="font-family: arial;">O padre Abreu sentou no banco dos réus a gravidade e a mansidão dum sócio do Vaticano. Alegou em defesa o serviço de Deus e afiançou as encomendações.</span></p><p><span style="font-family: arial;">- Pois faça aí o responsório dum defunto! - ordenou o juíz, a esfolhear os códigos. - Já veremos se merece remissão!</span></p><p><span style="font-family: arial;">Não pedia outra coisa o padre Abreu. O meretíssimo chegou ao fim apaziguado, como quem deixa um amigo em boas mãos. E absolveu o réu.</span></p>Jorge Carvalheirahttp://www.blogger.com/profile/12796461165499777819noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-839979751315832209.post-58882523122861645172022-12-05T15:52:00.000+00:002022-12-05T15:52:09.973+00:00Ódios velhos<p><span style="font-family: arial;">Chegavam sempre no início do Outono, quando os corvos passavam ao fim da tarde a grasnar às frialdades que vinham de Além-Doiro. Interrompiam-nos a bola no terreiro, saltavam das carripanas escuras, abriam as gaiolas das matilhas. E caíam nos braços dum lavrador lá do povo, inchado por ter amigos na cidade. Soltavam palavrões que eu julgava proibidos, numa língua esquisita de pagãos, e escarravam muito pelo chão.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Manhã cedo faziam-se aos caminhos, de espingarda na ombreira, a açular a canzoada. E não havia brejo em todo o vale inteiro que escapasse à invasão. O cainçar dos podengos ouvia-se nas quebradas, e os ecos da fuzilada faziam eco nas encostas do vale, monte cá monte lá, até ao cair da noite.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Retiravam-se ao terceiro dia, com as grelhas de metal enfeitadas de perdizes a largar nuvens de penas, e rosários de coelhos a pendular nos telhados das carripanas escuras.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Hoje vivemos paredes meias. Os palavrões já me são familiares, e ao sotaque de pagãos acostumei-me aos poucos. Mas não sei como indultá-los do olhar morto das lebres, enforcadas nas janelas, a mandarem-me corrê-los à pedrada.</span></p>Jorge Carvalheirahttp://www.blogger.com/profile/12796461165499777819noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-839979751315832209.post-16490013300111679472022-11-29T14:41:00.000+00:002022-11-29T14:41:11.326+00:00Sobrevivência<p><span style="font-family: arial;">Em 1970, na esquadra da Ota, tudo chegava da América, ressalvando os géneros do rancho que vinham das hortas de Alenquer. Os aviões eram da guerra da Coreia, e a literatura que neles vinha inclusa tinha eficácia há muito comprovada, ou nas escolas do Texas ou em bases do Arizona. Ninguém sabia porquê,mas tudo funcionava. Obtinha-se a máxima produtividade com investimento mínimo, um conceito alienígena que só muito mais tarde assentaria arraiais no linguajar comum.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Faltava-nos treinar a sobrevivência no mar. E se a questão parece de somenos num país de marinheiros, logo adquire as dimensões duma Ilíada caseira, quando calha apagar-se o fogareiro a trinta milhas da costa. E lá veio uma equipa americana.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Fingiu-se o mar na piscina que ali estava, ao fundo da ladeira, rodeada de eucaliptos. Um cabo de aço amarrado numa copa, um <i>rappel </i>vertiginoso, no fim dele um abraço de madastra, à nossa espera nas águas de Fevereiro. Livra-te do arnês do pára-quedas, nada até ao salva-vidas que além está, a dançar ao rés das ondas, iça-te lá para dentro sem demora, verifica a pistola de sinais, os fumos e tudo o resto, não te esqueças dos anzóis que te farão muita falta, se ainda não congelaste estás muito bem assim, já que estás na mão de Deus.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Depois era só vencer os cem metros da ladeira, as botas a chocalhar e o fato a gotejar limos, e o vento enregelado que vinha do Montejunto, a morder-nos nas orelhas, a alancear-nos o peito.</span></p><p><span style="font-family: arial;">A princípio ainda corri, mas aos poucos foi-me afrouxando o passo. E à porta do alojamento caí na primeira escada. Foi aí que me encontrou aquele anjinho da guarda da senhora das limpezas, que vinha a pegar no turno. Deu o alerta, pôs-se a gritar por ajuda, e soltou-me das vestes encharcadas os ossos que estalavam sem controle. Levaram-me escada acima, meteram-me num chuveiro, barafustaram que viesse o médico. E ele veio, um velho que era dentista, e estava na escala de serviço. Só o meu corpo é que não obedecia, tomado dum frenesi.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Desistiram do chuveiro que fervia, enfiaram-me na cama, e abraçaram a mim, numa esperança de milagre o corpo generoso da <i>femme-de-ménage</i>, que me ofereceu o peito avantajado. Era uma pietá pagã. Mas nem ela conteve o motim dos meus ossos, nem acalmou aquela rebelião. E ainda hoje estou para decifrar o raciocínio do médico, que fez sair a mulher e lhe tomou o lugar, implorando ao meu corpo que parasse de vibrar.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Lentamente amainou o desvario, e os meus ossos deixaram de estalar. Eu voltei a tomar posse de mim mesmo e dispensei os cuidados do médico. Tudo isto contaram-mo depois, o resto dos pormenores não os sei. Mas foram por muito tempo motivo de chacota.E talvez tema dum congresso médico, ou de algum <i>brain-storming</i> na América. A gente sabe lá!</span></p>Jorge Carvalheirahttp://www.blogger.com/profile/12796461165499777819noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-839979751315832209.post-77137385557971880552022-10-22T19:50:00.004+01:002022-10-22T19:50:45.849+01:00Felisberto<p><span style="font-family: arial;">(...) E o viajante já está de partida quando chega Felisberto, a cavalo numa espécie de lambreta, barulhenta e minúscula.</span></p><p><span style="font-family: arial;">- Há-de-me ver isto, mestre Fernando! Vejo-me grego para a pôr a trabalhar, passa a vida a tossir.</span></p><p><span style="font-family: arial;">O nome de Felisberto não lhe diz com a fachada. É um homem seco, nervoso, tem um ar atormentado, e a cortesia dos gestos não disfarça o sobressalto íntimo em que parece tropeçar. O mestre promete que ainda hoje tira as tosses à lambreta. E o viajante, é ao que anda, vai conversar com Felisberto para a sombra dum castanheiro.</span></p><p><span style="font-family: arial;">O homem não esconde a vontade de falar das suas vidas, pouco terá ocasião de o fazer. Ora o viajante, médico não sendo, sabe da própria experiência, o poder milagroso das palavras, mormente se outro remédio não houver. Há anos está Felisberto reformado da polícia e agora vive aqui na aldeia. Sempre é ambiente mais favorável ao seu génio sobressaltado.</span></p><p><span style="font-family: arial;">- Tudo isto são nervos! - resume Felisberto, que pouco mais sabe explanar dos seus padecimentos. Embora saiba muito bem que tudo ficou assim desde as guerras de Angola. Um dia, em 70, acabado de chegar a Luanda, meteram-no com mais dois colegas num avião que os deixou em Serpa Pinto. De lá seguiu numa coluna militar para o Baixo-Longa, e depois para o Cuíto. Atravessaram o Kuando-Kubango e ao cabo de dois dias chegaram a Mavinga. Luanda ficara a dois mil quilómetros, e isso pouco era, comparado com a distância a que deixara a mulher e um filho, em Alcabideche, do outro lado do mar via-se a Trafaria. </span></p><p><span style="font-family: arial;">Mas o guarda Felisberto não se quedou por aqui, o seu destino final era mais longe. E ainda faltava outro tando de viagem até ao posto policial e fiscal do Rivungo, na fronteira da Zâmbia. Era lá que o império precisava dele, para enquadrar as milícias dos quimbos, e para controlar as populações de que o império era feito.</span></p><p><span style="font-family: arial;">O viajante não entende muito bem o que isto quer dizer, não sabe como se enquadram milícias, nem imagina como é que estes três homens vão controlar as populações dum império. As palavras são de Felisberto, o viajante limita-se a ouvi-las e a guardá-las na memória.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Ali viviam os três guardas num barracão de adobe e telhado de zinco, perdidos num mar de capim, quando iam ao rio espreitar os jacarés levavam em bandoleira a Mauser de repetição, que era tudo o que tinham por companhia. De horas em quando vinha uma coluna e deixava latas de salsichas, uns fardos de arroz e sacos de farinha, de que eles faziam pão numa fornalha de barro.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Felisberto não era nada feliz naquele mar de areias verdes onde a vista se perdia, mas aguentou sete meses. Até que o apanhou um ataque fatal de paludismo, mesmo ruim, e uma paralisia facial que o deixou de cara à banda. O viajante não compreende como é que o paludismo e a paralisia se juntaram assim, mas Felisberto também não sabe explicar. </span></p><p><span style="font-family: arial;">Lá foi um dia evacuado Para Serpa Pinto, numa passrola de quatro asas que aterrou na picada. Dali apanhou uma camioneta para Nova Lisboa, e depois outra para Luanda, onde acabou por chegar ao fim duma eternidade e com menos de cinquenta quilos de peso. Ficou assim mais perto do filho e da mulher, mas ainda havia de tardar em vê-los, que lhe faltava um ano e tal de comissão na 7ª esquadra de Luanda. Gastou-o ele entre idas ao médico e transporte de presos para a Damba, um presídio de pretos lá nos confins do Norte. E foi assim que Felisberto conheceu meio mundo, e viu coisas com que nunca sonhou, e se fartou de viajar à custa do império.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Quando voltou, foi parar à Quinta do Pisão, a um centro de apoio social da Misericórdia de Cascais. Ficou por lá uns anos, em serviços de enfermaria, e só não aguentou mais porque já nada era igual. Nem a vida com a mulher e o filho voltaram a ser a mesma coisa. (...) </span></p>Jorge Carvalheirahttp://www.blogger.com/profile/12796461165499777819noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-839979751315832209.post-72490388637362055142022-09-05T11:44:00.004+01:002022-09-05T18:35:53.436+01:00O meu 4-patas<p><span style="font-family: arial;">Viveu comigo seis anos. Há dias entrei o portão da rua e salta-me ele do muro à esquerda. Não era a primeira vez que o fazia, como quem dá as boas-vindas. Mas desta vez passou por baixo do carro e foi pisado por uma roda.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Com a coluna partida, o meu 4-patas arrastou-se à volta da casa e apareceu-me no alpendre. Não sei definir o que senti ao vê-lo, a arrastar-se e a sangrar da boca. Chegou à beira, desceu para os agapantos num gesto costumeiro, e morreu.</span></p><p><span style="font-family: arial;">Em lugar dum 4-patas, eu tenho agora comigo um sentimento de culpa. E duas lágrimas.</span></p>Jorge Carvalheirahttp://www.blogger.com/profile/12796461165499777819noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-839979751315832209.post-52613148229024448882022-08-14T11:41:00.001+01:002022-08-14T11:41:14.774+01:00Feira de Agosto<p><span style="font-family: arial;">Há um sobressalto na paisagem</span></p><p><span style="font-family: arial;">Do céu fugiu a cor</span></p><p><span style="font-family: arial;">A brisa bate à porta</span></p><p><span style="font-family: arial;">Vem entrando Saturno, o melancólico.</span></p>Jorge Carvalheirahttp://www.blogger.com/profile/12796461165499777819noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-839979751315832209.post-31674885321373155032022-08-08T18:56:00.000+01:002022-08-08T18:56:10.100+01:00Apocalipse<p> </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEiQzJxNbOp5H9FmPGsQNRbPeg79E4mdMbx_eRECXhIerq49qO9BrdyF0tS_Wi1RZ2VsmECr1SzWlV-SGCL-9GSvzWU0pEQDjM3CJmWX576inrsnxg3ySkSh9J0qebu6SyEhpnCjJYkINOfLEVg76tpaJOzaHyvq3EnVgr2c2fA3WUpFk2-Ep_aOKcckHA" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img alt="" data-original-height="640" data-original-width="960" height="213" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEiQzJxNbOp5H9FmPGsQNRbPeg79E4mdMbx_eRECXhIerq49qO9BrdyF0tS_Wi1RZ2VsmECr1SzWlV-SGCL-9GSvzWU0pEQDjM3CJmWX576inrsnxg3ySkSh9J0qebu6SyEhpnCjJYkINOfLEVg76tpaJOzaHyvq3EnVgr2c2fA3WUpFk2-Ep_aOKcckHA" width="320" /></a></div><br /><p></p>Jorge Carvalheirahttp://www.blogger.com/profile/12796461165499777819noreply@blogger.com