quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Ecos da Sonora - XXII


No meio de muitas outras, tem a Sonora esta grande vantagem: uma vez começada a gravação, já não pode o leitor abandonar a obra, nenhuma prece ao Pai lhe fará passar o imbebido cálice. E foi assim que eu li integralmente o romance de José Luís Peixoto, Uma Casa na Escuridão. A qual também podia ser a escuridão numa casa, cujas primeiras páginas já me tinham passado pela mão, e andavam ali de pousio, no remanso duma prateleira.
Os capítulos são seis: O Amor, O Amor É Tudo O Que Existe, As Invasões, O Amor É Impossível, A Peste, e O Amor É A Solidão. O narrador é autodiegético, e faz o que tem a fazer. Observa, e sente, e diz, e começa assim: ERA UMA VEZ O FIM DE TARDE.
Depois aparece um pai que escreve sonetos e morre, e que antes de morrer mata madalena. O meu pai ficou no jazigo dos homens da família. Das seis prateleiras que o jazigo continha, o meu pai ficou na segunda da esquerda. Em cima, estava o seu pai. No lado direito, estava o pai do pai, o pai do pai do pai, e o pai do pai do pai do pai do meu pai. Em baixo, estava o lugar vago para mim. A minha prateleira.
Enquanto sim e não, há a mãe que come muito e se baba. E gatos preguiçosos, muitos gatos. E há uma escrava miriam, colega da madalena. Há um editor preso, um violinista que é um cavalheiro, e o príncipe de calicatri, que sabia dizer obrigado em mais de 90 idiomas e andara a correr mundo. Com o tempo, aparece a dona do palácio der siliae, que é visita lá de casa mas não é grande peça.
Um dia entram em cena os invasores, que logo decepam os membros ao infortunado narrador. E há soldados com barba até à barriga, e roupas assim de ferro, e espadas vermelhas de sangue. Depois há o visconde de dedodida, e numerosas crianças, e abundantes tabuleiros de sopa e de papa, muita papa.
O discurso narrativo é um infindável desfile de joguinhos de palavras, de rodriguinhos formais, de trocadilhos previsíveis, de quiasmos de pau, de acumulações não significantes, de repetições espúrias. As duas integrais páginas 106 e 107 desvendam-nos um narrador que repete 297 vezes o ininterrupto refrão quero morrer. Melhor só uma novena da quaresma.
A contracapa da obra ensaia uma linha de leitura, promete uma alegoria magistral do fim duma civilização que é, sem dúvida, a nossa (...). Mas não há alegoria nenhuma. Há um rapazinho que tem um pesadelo, caótico como os pesadelos. O rapazinho adormece no fim de cada capítulo e acorda no início do seguinte. Por fim morre, inesperadamente. E a narrativa termina, por não haver quem lhe dê continuidade.
Ou eu me engano muito, ou este tipo de literatura reparte campos e fins com a arte contemporânea da moderníssima casa de Serralves, que encandeia os visitantes com grandes planos do olho do cu, passado a creolina. A substância artística que a anima é a mesma de Lullaby Spring, criação de 2002 dum génio inglês da contemporaneidade, Damian Hirst, leiloada pela Sotheby's em Junho de 2007, por 13 milhões de euros. Nunca obra dum artista vivo atingiu tais valores, e não é sem motivo. É que a peça é um armário metálico de produtos farmacêuticos, cheio de comprimidos pintados à mão.