sábado, 18 de abril de 2009

Portugalmente (36)

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Se for verdade o que o viajante leu num livro antigo, o povoamento do Terrenho vem desde o rei D. Dinis. Era o rei bom lavrador, sobre ser melhor poeta, e não há outras maneiras de construir o mundo. Cumprissem os moradores a sua obrigação, melhor patrono não se podia exigir. O vale da Teja estava aqui, aberto e ancho desde os princípios do mundo. Não lhe faltavam águas nem glebas, aconchegadas à encosta e abertas ao favor do sol nascente. Bastou disputar o chão aos matagais, de carvalhos, de castanheiros, de olmos, não havia lugar mais bafejado. Nem foram precisas imagens de estilo para lhe encontrar um nome, como em casos já vistos. Estava escrito na terra.
Cumpriram, os do Terrenho, a sua obrigação, e fizeram do povoado uma terra importante. Houve nela, em tempos idos, avulsas manufacturas e várias moendas de água, que ainda encontramos de pé. Nela moraram fidalgos que deixaram património. E até mesmo um jesuíta, nado e criado na terra, se partiu daqui um dia a missionar a China. Juntemos nós as castanhas que lembrou mestre Fernando e eram as melhores do mundo, e depressa conviremos que não era qualquer um. O mais dos povos em volta não chegavam a este aos calcanhares.
Começava aqui a rua principal, uma calçada do tempo dos afonsinos. Por ela seguia a estrada que já ligava, há mil anos, o castelo de Moreira à fortaleza de Penela. Andavam as outras terras a chapinhar lamaçais, e já se pisava aqui calcetamento antigo, feito com seixos e gogas do rio. A seu tempo cá chegaram o saneamento e a electricidade, muito antes de noutros lados se saber o que isso era.
Mas isso são histórias já passadas, que a decadência de hoje respira-se no ar. O viajante já deu a volta à aldeia, já viu ruas e casas e não fica por aqui. Precisa de olhar outra vez tudo, e de encontrar alguém que lhe saiba explicar o que aqui se passou.
Qualquer viela estreita, o mais esconso recanto, tudo são empedrados modernos, como em outros lugares se tem visto. Fruto dos fundos da Europa, que tão tarde cá chegaram, se terão vindo por bem. Mas a esta rua principal, que sempre foi uma calçada antiga, cobriram-na de alcatrão. Há-de isto parecer embirração do viajante, uma niquice, mas não é tanto assim, se formos a ver bem. Que a espinha principal, numa terra com memórias para guardar, por força requer nobreza aos materiais. Além disso as máquinas passaram aqui às cegas, entre as casas, altearam pavimentos, entupiram sumidouros e valetas, arrasaram hidráulicas antigas por onde passavam as levadas da serra, feitas por mão de artista. Derrotar custa pouco, já o lembrou Felisberto. E agora, quando chove, as enxurradas passam desenfreadas, fica a rua coberta de charcos e areais.
O viajante passa ao chafariz. E neste pino do verão, num clamor de estiagem, duas bicas lá estão infatigáveis, de goela escancarada. Já encheram cântaros que à fonte vieram até ficar sem asa, já os gados aqui mataram sedes infinitas, sabe Deus que segredos contariam, se um dia se pusessem a falar. Talvez nos pudessem deslindar a morte do Abel, além na rua de baixo, uma noite no tempo do volfrâmio. Ainda hoje se conta que morreu às mãos da mãe, lá no pequeno largo, dum golpe de roçadoira jogado no escuro. Mas ao certo ninguém sabe. Verdade foi que Abel matou Acácio, por disputas dum filão no Vale Ferreiro. Que o alarido atraiu Joaquim, a vingar a queda do irmão. Que ambos se engalfinharam, que a noite estava escura. Que esta mãe dolorosa acorreu, de roçadoira erguida, a proteger o filho. E que Abel no final apareceu morto, dum golpe na cabeça.
Mas esta mãe ficará inocentada. E se um dia estas bicas falarem, não estejamos cá para as ouvir. Deixá-las lá correr, que há hortas a espreitar por trás desta parede, à espera duma rega.
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