Com o tempo habituei-me a entrar na livraria como quem atravessa um campo de minas. Ou pisa o leitor terrenos conhecidos, já dados como clássicos, ou tudo lhe pode acontecer, no campo das leituras. E foi assim que lá passei, há dias.
Mas há dois temas que, em princípio, não recuso. É um deles a guerra das colónias, e, no geral, as coisas do Ultramar. Interessa-me saber o que os patrícios pensam sobre a nossa vida colectiva. Será uma questão espúria, bem o sei. Mas nada nos pesa tanto no presente, como o nosso passado imperial. Queiramos nós ou não.
Outro tema são os relatos de viagem, de estrangeiros que nos visitaram, antigos ou modernos. Tenho para mim que é uma boa maneira de nos vermos a nós próprios, a partir de olhos estranhos. O que em nós observaram, o que os enterneceu e horrorizou, há-de ser um aceitável contributo para a descrição do que somos.
Nem de propósito, deram-me os olhos n' A Balada do Ultramar, de Manuel Acácio, com 4 mil exemplares na 1ª edição da Oficina do Livro. E se é certo que a maioria das obras que têm aparecido são de autores na condição de militares, neste caso o autor é futrica. A perspectiva que apresenta é a da vida civil angolana, alheia a peripécias militares. Logo depois tropecei em Duas Inglesas em Portugal - Uma Viagem pelo País nos Anos 40, da QuidNovi. Julguei ter o dia ganho, e trouxe para casa os calhamaços.
A Balada do Ultramar é um título ambíguo, duma obra que se dá como romance. Porém de romance não tem nada, nem estrutura, nem orgânica, nem linguagem. O autor é um dos retornados à metrópole, em 1975. E o título acaba por bater certo, já que A Balada é mesmo uma balada. É uma sucessão de quadros duma memória dorida, marcados por insistente sensação de perda, por um saudosismo irreparável, dum paraíso que se perdeu.
Em vão se buscará nela a análise sociológica, a lúcida visão da história, o urgente esmiuçar de causas e razões de tamanho naufrágio. Bem ao contrário, se audazes foram os que partiram, e Velhos do Restelo os timoratos que ficaram. Mas é apenas desespero o que se exprime, ao afirmar-se: Bem aventurados os que perderam a memória, porque deles será o reino dos vivos! Convenhamos que não é grande saída, para quem tem que continuar a viver.
Registe-se a formulação notável para uma definição de saudade: A saudade deve ser isto: termos o coração num lugar e num tempo diferente daquele onde se encontra o nosso corpo. É subtileza que fica à atenção dos encartados.
Uma coisa se deixa sublinhada: ninguém mais do que este escriba compreende os traumas, e comunga das amarguras múltiplas, que uma história peregrina sempre deixou em herança ao comum dos portugueses. Mas o efeito sem causa não existe, e só há uma forma de os exorcizar. É desnudar-lhes os motivos e as razões.
Manuel Acácio acaba por apontar na direcção correcta, lá para o final da obra: Não foi fácil libertar-me da canga do passado, mas os anos já me deram a distância e a sabedoria necessárias para reconhecer que também cometemos muitos erros. Depois do adeus forçado ao ultramar, andámos perdidos, sem saber qual era o nosso lugar no mundo. Foi preciso dar ordem ao caos, e a raiva foi o único fio condutor que encontrámos. Apressámo-nos a apontar o dedo a dois ou três governantes que foram o rosto de uma política que, em boa parte, lhes escapou, mas esperámos demasiado tempo até acusarmos Salazar e o séquito que medrou à sua sombra e se aproveitou do estado das coisas para recolher grandes benesses. Só agora conseguimos perceber que fomos sacrificados no altar do realismo político e estamos entre as principais vítimas de um regime que nos utilizou, para depois nos arrastar na sua queda.
Uma tal asserção, mesmo tardia e assim desajeitada, resgata a obra da escombreira habitual.
Pior vai às Duas Inglesas, que não têm salvação nem préstimo. A edição original é de 1949, e dela couberam exemplares, com dedicatória, ao presidente Carmona, a Salazar, que agradeceu pessoalmente, ao ministro Caeiro da Matta, à família Palmela, a António Ferro, a João Couto...
São os mitos e lendas oficiais, mais mitológicos e mais impudentes do que os do próprio SNI. Deixemos As Inglesas falar!
D. Manuel colheu o que os seus antecessores tinham semeado; a partir das novas colónias chegavam inúmeras riquezas (ouro, especiarias, marfim, pedras preciosas), até que o pequeno Estado situado no extremo da faixa costeira ocidental da Europa ficou de tal modo rico que na verdade já nem sabia o que fazer com tanta riqueza, e a própria nação, nomeadamente os seus escultores e arquitectos, ficou obcecada, quase inebriada, com as misteriosas maravilhas e esplendores de outros mundos e com o romantismo e aventura das grandes viagens oceânicas.
No que diz respeito à agricultura, Portugal tem ainda, de facto, uma economia quase bíblica: a colheita, a respiga, a debulha do grão e a irrigação são feitas do mesmo modo que surgem descritas no Antigo e no Novo Testamento. Apesar disso, a agricultura portuguesa é extremamente saudável e altamente produtiva.
Um dos encantos das zonas rurais em Portugal é o facto de se poder ver a vida tal como era vivida em Inglaterra, quando a Inglaterra ainda era agradável, nomeadamente no séc. XVII ou no início do séc. XVIII. As condições são calmas, uma vez que o país ainda não se organizou industrialmente, e se os aldeões são normalmente analfabetos, o seu padrão de alegria comunitária é excepcionalmente elevado. Não só o próprio trabalho está transformado numa ocasião de festa e divertimento, como os divertimentos puros e simples acontecem livremente. Nos meses de Verão, particularmente nas províncias do Norte, existe uma infindável sucessão de feiras e peregrinações, normalmente chamadas romarias.
Que encantadora e feliz amizade demonstram as pessoas. Caso alguém passe por um destes grupos familiares, reunido para comer à sombra, será certamente convidado a sentar-se com eles e a partilhar da sua refeição. Só os alimentos já são uma tentação: frangos ou perus assados, presuntos, leitões recheados, carapaus salgados fritos, montes de alfaces, enormes pães, queijos artesanais e garrafões de vinho de sete litros, e revestidos com verga! Faz crescer água na boca (...)
Lisboa é uma das cidades mais limpas do mundo. Há camiões que esvaziam diariamente os caixotes do lixo, até mesmo nos bairros mais pobres; e esta questão de secar a roupa lavada ao sol e ao ar fresco a qualquer altura é sintomática da sabedoria inata de uma nação que adora a limpeza.
O resto são mansões, palácios, igrejas, imagens pias, catedrais, conventos, talhas doiradas... Palavras para quê?! O melhor é precaver-se o leitor com o tal detector de minas, quando vai à livraria!