domingo, 25 de janeiro de 2009

Portugalmente (18)

(...)
Confessa o viajante que não esperava encontrar aqui refinamentos de estética nem regalos da vista, para além dos que são dom da natureza. E dos donos destas casas, enquanto lá fora espantavam a miséria, aforravam capitais, e aliviavam com remessas os apertos do orçamento nacional, demais seria esperar que, terminado o turno, fossem à noite a uma escola aprender como se faz uma casa, sem aumentar o caos que já sobra no mundo. Se partiram daqui um dia ao desamparo, como já em sobejos casos foi visto, desamparados se viram à chegada, sem um conselho, um rumo, quiçá uma interdição. Fizeram eles o que lhes competia. E quem aqui uma vez mais faltou, e assim perdeu, foi o país.
No meio de tão fatal relativismo, encontra o viajante a igreja da aldeia. É uma construção moderna, com trinta anos, se tanto. Diz esta placa ter havido neste lugar um templo mais antigo, feito pela ordem de Malta, em 1750. O viajante, que o não conheceu, põe-se a olhar as formas que tem na sua frente, e pensa que a aldeia não terá ficado a ganhar com a troca. É um precipitado pensamento. Que lá dentro está uma ampla nave luminosa, revestida a madeira nas cotas baixas, e a nudez pura das paredes é a que a um lugar destes convém. Não fossem estas barras de azul, que ficaram a cobrir-lhe os vigamentos de betão.
Mergulhado no silêncio está um organista, de auscultadores nos ouvidos, o viajante supõe que é o pároco, a dedilhar num teclado os cantos da liturgia. Mas não se ouve qualquer som. O homem está de olhos fechados no seu isolamento, só os meneios da cabeça denunciam um compasso escondido, e não deu pela entrada do visitante, que ficou ali sentado. Quando a função termina, dá-se conta o organista de que não esteve sozinho.
O viajante vai ao seu encontro. Afinal não é todos os dias que uma aldeia qualquer se põe a demolir uma igreja, para lhe construir outra nova em cima. O organista reúne os seus pertences em silêncio, chega o viajante a pensar que ele não baixou à terra, enlevado nos seus cânticos.
- Queria perguntar-lhe...
- Não me compete a mim dizer!
O viajante observa-lhe a fisionomia e não gosta do que vê.
- Julguei que soubesse dizer-me...
- Sei dizer, mas não me compete a mim. É perguntar ao pároco!
Afinal não é o padre que aqui está. E nos caboucos desta igreja ficou enterrado um mistério qualquer, ou um enigma, quem sabe se um segredo maior do Vaticano, que o organista não quer desvendar. O viajante, que não se sente bem onde não é desejado, voltou à rua, espicaçado por este aroma de intriga.
E, vistos actos, não havia mistério nenhum. O templo antigo, o da ordem de Malta, era uma capela de Santa Catarina, a padroeira, a mesma do lar de idosos, que há-de ter a sua festa quando Agosto chegar. Era coisa pequena, como o viajante já encontrou lá para trás, escassa para os fiéis todos. Além disso chegou a um tal estado, que mais valia construir nela uma nova, do que restaurar a antiga. Quem isto explica é a dona Gracinda e o seu homem, que ali vão a descer a ladeira e assistiram a tudo, já têm idade mais que suficiente. E estas duas palavras sossegaram o mundo, que um silêncio bruto deixara em alvoroço.
A dona Gracinda e o seu homem vão de luto rigoroso, que lhes morreu um amigo ali no lar de idosos. Boa coisa para a terra, um lar assim, muito embora o valor da factura não jogasse lá muito com a dimensão da obra, como estamos lembrados. Para além da gente que nele achou trabalho, vieram atrás outras actividades, que ajudam o comércio e arredondam a vida da aldeia. Ele é o talho e a padaria, a farmácia e a assistência médica. Contando com a construção civil, há na terra vinte e tal empresas pequenas com escrita organizada. Que da agricultura ninguém vive, e muito mal estaria se tivesse que viver. Salvo um agrónomo que juntou terras suas, e outras que arrendou, e algumas que os donos lhe entregaram de graça, e se dedica aos gados, porque sabe puxar a guita dos subsídios por cabeça. De resto amanham-se as leiras da ribeirinha em sistema de entreajuda, e porque são tão mimosas que até parecia mal deixá-las de matagal.
Ao viajante agradam muito estes princípios. E não se enganou logo à chegada, esta aldeia é diferente das que tem visto. Se ele mandasse, punha um ministro a ir a cada terra, todos os dias, fazer inaugurações.
(...)