segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Portugalmente (11)

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Antes de os emigrantes terem construído as suas vivendas vistosas ao longo da estrada, toda a aldeia vivia em roda deste largo minúsculo, plantada num esporão que afunila o vale. E tanto é discreto o povoado e o seu largo, quanto é imponente e majestosa a montanha erguida ali em frente. Em tempos idos, quando apenas bicharada brava aqui vivia na floresta, era Vale das Corças que o sítio se chamava. Por aqui andou o rei povoador exercitando galgos e falcões de altanaria, nos intervalos de mais pesadas lides de fixar as gentes, organizar concelhos e defesas, distribuir direitos a colonos, refrear ambições de nobres godos e de clérigos. Era assim que as nações se faziam, e assim Portugal se começou a fazer.
Mais tarde foi este lugar Quintã das Corças, e depois Vilar de Corças, à medida que se foi povoando. E de todas estas terras fez o rei doação à Ribeirinha atrás falada, que já era senhora do Lanhoso, e muito bafejada de predicados naturais. Ao viajante, que apenas se funda nos argumentos da sua fantasia, muito agrada imaginar que por aqui, neste vale da Ribeirinha, andou folgando el-rei nos braços da sua dona, senhora branca e vermelha, e feiticeira de famas que chegaram aos ouvidos do papa de Roma.
Assim se despovoaram as corças, de que há muito nem lembrança resta, e se foi povoando este lugar, que delas tomou o nome. Tanto se povoou que teve a pobre gente de subir àquelas vertigens do Galgueiro, e construir nelas os socalcos que por lá se vêem, para segurar as terras e lavrá-las. Eram sáfaras e frias, porém outras melhores não havia, que todas tinham dono.
Embora o calor do final da manhã já comece a apertar, o viajante não precisa de se fatigar muito para dar uma volta pela aldeia. Entre ruínas de pedra que parecem ao abandono, encontra umas casitas restauradas, na traça e nas dimensões originais, e outra vez fica encantado com o empedrado limpo das ruas antigas. É isso que manifesta aos três conversadores que ali estão, abrigados na sombra dum alpendre, enquanto uma velhota mata a sede às sardinheiras e a umas latas de manjericos, que se puseram assim vistosos para o S. João.
- Belas ruas, assim de pedra!
- É o que não falta, por aí!
É seca esta resposta, e vem dum homem que ainda tem ao ombro uns apetrechos de trabalho, com ar de quem chegou da horta. Mas o viajante não sabe se ele fala das ruas, que achará muitas, ou se das pedras, que inundam a paisagem e são ainda mais. Resolve jogar nos dois tabuleiros.
- E sendo muitas as pedras, por que tardaram tanto as ruas empedradas?
O viajante não quer ser impertinente. Lembra-se das aldeias que havia há trinta anos, conheceu-lhes a insalubridade primitiva, e ainda não esqueceu o relatório dos sovietes vermelhos do concelho, que foi ler a um livro. Deixou cair a provocação, a ver se alguém lhe diz o que é que aconteceu, e que razões vieram finalmente modificar as coisas. Agradava-lhe agora ouvir falar de direitos e de cidadanias, de poderes municipais antigos como o rei Sancho, de fundos que da Europa vieram, e de coisas assim. Queria tirar a temperatura à consciência. Mas a febre, se alguma aqui passou, ficou-se por um encolher confuso de ombros.
Confuso fica também o viajante, e perturbado, enquanto vai decifrando o texto que lhe aparece inscrito nesta placa de mármore, cravada numa parede:

Vilar de Corças, Primeiro de Novembro de 1961
Homenagem aos mortos desta povoação rezemos por eles
um Pai-Nosso. Rezemos outro Pai-Nosso pelos nossos
queridos militares que perderam a vida no norte de Angola
não esquecendo o piloto do Santa Maria Nascimento Costa e que
a Imaculada Conceição rainha do Céu Universal salve Portugal.

Ao viajante apeteceu-lhe benzer-se, tanto se teme de bruxas, mas não chegou a fazê-lo. De salvações não percebe nada, olha à sua volta e vê ainda menos. Mas descobriu, afinal, por que razão, sendo tantas as pedras por aqui, tardaram tanto as ruas empedradas. É a sua vez de encolher os ombros e deixar-se levar por uma rua sem saída, pois que saída não é a canada irregular, estreitíssima e sombria, que se despenha além, encosta abaixo. É tão a pique, que a este lugar chamaram Vale do Inferno.
O viajante fica parado, a olhar a majestade do vale e o silêncio das casas que o cercam, ali sentado à porta duma delas está Libório, que tem um semblante emaciado pela solidão. Aqui desconfia o viajante que usufruir todos os dias deste panorama, ao abrir da janela, será uma coisa boa mas não é tudo na vida. Porque Libório tem uma casa plantada mesmo à beira do penhasco, porém é a imagem do desamparo e da tristeza. O viajante dá-lhe a salvação e recebe em troca um sussurro quase doce, Libório não tem voz na fala. Andou nas minas, quando era mais novo. E um dia teve que deixar de lá ir, porque a silicose lhe derrancou o peito. Mais tarde aventurou-se a ir para a França, como toda a gente, mas esteve lá poucos anos, que não lhe tinha o corpo acção nenhuma. Os filhos ajudaram-no a fazer esta casa, onde agora vive, e alguns anos depois de vir de França começou a receber uma pensão das minas. É coisa pouca, nem dá para viver, quem o sustenta são os filhos que estão lá fora. A ele e à mulher, que é mais velha e está dentro de casa, e já não faz grandes lidas domésticas, a avaliar pelo silêncio.
O viajante, que é um homem saudável, tem momentos em que muito gostava de transformar o mundo, ou partes dele, embora já muitas vezes tenha concluído que não pode. É o que o seu olhar diz a Libório. Este devolve-lhe um sussurro, ambos fizeram o que podia aqui ser feito.
(...)