sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Portugalmente (14)

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O viajante está num desassossego, concorda que o senhor Albino devia ter emigrado no tempo certo, sabe muito bem que esta é, desde há séculos, a salvação mais segura. Mas agora já é tarde. Se fosse um santo milagreiro, não ia daqui sem fazer um milagre. E já teria resposta para dar ao seu amigo, que não sabe em que partido há-de ir votar e lhe pede conselho. Ora o viajante houve um tempo em que acreditou ter chegado o momento de os portugueses fazerem o seu milagre. A vida parecia ali, nunca esteve tão perto. Mas o tempo foi passando, milagres não houve nenhum, e agora já deixou de acreditar. Por isso está nesta aflição, sem saber que conselho dar ao seu amigo. E muito suspeita de que ele há-de morrer um dia a votar sempre no mesmo partido.
À saída das Corças há uma eira à beira do caminho. É uma vasta laje de granito, ao viajante faz lembrar uma proa da Índia que ali veio naufragar, e é o melhor dos mirantes sobre o Vale do Inferno. Era neste lugar que a serra do Galgueiro tinha reservado o seu esplendor maior. O viajante senta-se no chão, minúsculo diante da montanha, e põe-se a imaginar as gerações de mulheres das Corças que a esta eira vieram erguer ao vento os cereais, erguer os gravanços e o feijão. Levantam a cesta acima das cabeças, agitam levemente os pulsos magros, vertem devagar os grãos na brisa e deixam-lhe o trabalho de os limpar.
- Ai eu coitada, como vivo em grã cuidado!
E ao ouvir estes ecos, parece ao viajante que está ouvindo o lamento de quem já tem os braços derreados.
- Por meu amigo, que hei alongado!
O viajante não crê no que está a ouvir. Chega-lhe no vento o som das flautas de Pã, que vem da montanha além, e são faunos pagãos o que está vendo, rotundos e peludos, em seus bailes de roda, à sombra dos arvoredos.
- Muito me tarda o meu amigo na Guarda!
Agora ao viajante já lhe não restam dúvidas. São coitas da Ribeirinha feiticeira, que ao mirante veio e aqui se lamentou, saudosa do rei Sancho. Dançam para ela os faunos bailadores e a Ribeirinha sonha, senhora branca e vermelha, que fará deste enlevo e desta pena.
O viajante não quer que vá dizer-se que veio a coisas sérias e acaba em devaneios. Na sua história muito particular, rainhas são as mulheres das Corças que à eira vão erguer o milho ao vento, e rainha foi a Ribeirinha, que enfeitiçou el-rei e neste mirante penou os seus cuidados. Umas seguram de pé as traves mestras da vida, tarefa sua de cada dia. A outra deu ao rei conselho e aconchego, e muito precisado disso andava ele. Pois deste lado vai a força da administração real, apoiada no vigor dos concelhos e nos direitos dos povos miúdos, a cimentar os caboucos do reino. E daqueloutro está a mesa dos poderosos, de clérigos e godos donos de meio mundo, que aviltam e corrompem administração e leis, todos calando só gulas comuns. Consta que resistiu el-rei tanto quanto podia, e que andou a Ribeirinha citada em bulas papais. Mas o viajante também ouviu dizer que el-rei se amedrontou ao ver a morte, e claudicou. E a questão ainda está por resolver.
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