segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Peripécia com cadela e bispo

Nesse tempo o largo João de Almeida era para nós um sítio onde paravam táxis. Só muito mais tarde havíamos de saber que, por trás do topónimo, se escondia um herói de bigodes, um guerreiro do império que passara o melhor da vida a espingardear bacongos nas matas dos Dembos, e a enxotar cuamatos das savanas da Huíla.
Ninguém levava as glórias nacionais mais a sério que nós, que resistíamos com tenacidade às provas de fogo das aulas de história. Apenas se sentava, o velho mestre surdo logo chamava em seu auxílio um lente:
–Tu! Traz o livro!
E lá ficava a ler páginas e páginas do compêndio do Mattoso. Às vezes morria um rei, achava-se no mar uma ilha deserta, casava-se uma princesa, havia um terramoto. Um dia alguém matou o Miguel de Vasconcelos, amigo da duquesa. E logo a voz do mestre, com aquela autoridade que nasce do saber:
–Sublinhai!
E era na perturbação desses momentos que eu esticava o olho à carta de marear do adversário, e lhe dava o tiro de misericórdia no último submarino.
De forma que, um dia, passando nós no largo João de Almeida a caminho do Monteneve, demos com um taxista a ouvir as notícias no rádio da viatura. Falavam dum sputnik russo, que andava aos assobios pelo ar, a dar voltas à terra, com uma cadela lá dentro. E havia um astrofísico, um eminente professor lusitano, a afirmar que tudo aquilo era uma irrealidade, mera propaganda de Moscovo que nunca poderia acontecer. Na ausência de gravidade, por exemplo, e com tal diferença de pressões, a cadela havia de parir imediatamente, mesmo que o embaraço lhe fosse psicológico.
Foram estas peripécias no espaço que nos trouxeram a ideia de escrever um panfleto de agit-prop. O qual tanto podia chegar à cidade pela mão dum agente infiltrado, como podia muito bem ser lançado lá de cima, já se viram cadelas amestradas a fazer bem pior. O texto falava de paízes que vivem mergulhados no nevueiro à séculos, e de governos que fecham os olhos às luzes do progreço, e de micionários que pregam mentiras aos negros, a dizer que deus é branco. O discurso era assim, marcado por erros estrangeirados, para se tornar convincente e plausível. E acabava a anunciar uma aurora nova, que havia de raiar no mundo, e outros sonhos que nós na altura sabíamos sonhar. E, cá por coisas, tinha que ser escrito numa máquina que ninguém pudesse identificar.
Ora o Black tinha um tio que andara emigrado na América. Homem novo e desempoeirado, depressa lhe chamaram um figo e mandaram-no para a guerra da Coreia. O homem, que não se temia facilmente dum par de olhos, mesmo vesgos, por lá sobreviveu. Voltou à América e tornou-se um verdadeiro calafona. Quando veio acabar a velhice na cidade trazia no bolso uma bela pensão em dolas, e na bagagem um dactilógrafo descomunal, que já servira na General Motors para escrever o mapa de salários do pessoal. Ele não fazia a mais pequena ideia, mas tinha trazido a solução do nosso problema técnico.
Com a conivência do Black, lá levámos o colosso para o Paço do Biu. O lugar era uma fortaleza entalhada na muralha, tinha vista directa sobre a rua do Carvalho, e o frio entrava por ele como quem se passeia no castelo do rei Artur. De modo que a castelã, uma velhota rude que o nosso ingrato coração já olvidou, passava as tardes aninhada à braseira, a metade inferior do corpo escondida debaixo duma camilha ruça.
Três de nós carregavam o mostrengo, os outros iam ajeitando um lençol que o cobria, em certas coisas o segredo não é meio caminho andado, é um caminho inteiro. E logo a velha, ao ver-nos atravessar a sala:
–Ca dianho! É algum marrano morto?!
E não era, dessa vez.
Agora o panfleto estava feito, era indispensável dar-lhe seguimento. Ele havia um colega a quem chamávamos Aristóteles, que fugia a certos cânones, mas tinha relações interessantes. Dava-se muito bem com o padre Vítor, supomos que tinha acesso ao paço episcopal. Passámos uma tarde com ele a analisar os perigos e armadilhas do mundo, interessados em ouvir o que sabia ele dos avanços da astronáutica vermelha, e o que pensava o padre, e o que temia o bispo. No fim mostrámos-lhe à socapa o documento, e deixámos o rapaz arrasado. Pediu-nos para o levar.
Passados dias quem estava interessado em conversar connosco era o padre, mas queria terreno neutro. E nós aceitámos o encontro num salão do secretariado diocesano da catequese, ali no seminário velho, rodeados de cartazes eucarísticos, pagelas de santinhos e calendários das missões. O padre levava a coisa muito a sério, embora lhe pegasse com as pontas dos dedos. O que ele queria era saber a origem daquilo, nós porém não podíamos dizer-lho. Apenas nos constou ter alguém encontrado uma coisa parecida, entalada à porta de casa, numa rua do Bonfim. Mas um papel, papel, ninguém nos tinha mostrado. E o exemplar que estava ali encontrámo-lo nós no Monteneve, no tampo duma cadeira, quando íamos jogar umas partidas de xadrez. O padre acabou a recomendar-nos precaução, não deixou nesse dia um veredicto definitivo.
Quinze dias depois segredava-nos o Aristóteles que o senhor bispo fazia toda a questão em nos ouvir, no paço. E nós lá fomos, no dia combinado. Como não tínhamos nada a esconder, levámos, de caminho, um exemplar do Avante, daqueles de papel bíblia, que nos aparecera na caixa do correio. Desabituados do cerimonial, fomos o mais possível direitos ao assunto. Que nos sentíamos marcados por forças misteriosas, que não podíamos entender nem controlar, que já víamos em perigo a nossa integridade. O bispo serenou-nos, verdade seja dita. Lá nos garantiu que tudo havia de ser esclarecido, e estendeu na nossa direcção a mão sapuda do anel. Desafeitos do protocolo, retirámo-nos com uma ligeira vénia.
Tempos depois vinha radiante o Aristóteles, quando nos informou de que tudo estava claro. O jornalinho era uma criação da polícia política, só para ver em que paravam as modas, como ele dizia nos seus eufemismos. E o panfleto fora redigido num dactilógrafo americano, há muitos anos fora do mercado, daquilo já não havia em Portugal. O senhor bispo mandara investigar.