sábado, 10 de janeiro de 2009

A Rosalina do Valtalhado

O fidalgo de Longroiva saiu hoje a passeio. E observando nós o aparato da equipagem e as regularidades do calendário, bastar-nos-á juntar dois com dois para sabermos do seu destino. Ajudou-o o criado a alcançar o vasto assento da caleça, ajustou-lhe nas canelas os polainitos claros, estendeu-lhe à mão a bengala encastoada e dispôs-lhe ao lado a manta de lã, com que há-de cobrir os joelhos em lhe chegando a altura.
Ajeitou-se ele próprio na boleia e entalou ao lado o cabaz do farnel, metade dum queijo manteigudo, desses de pastor, umas fatias de pão cóscoro, um vinho de bom grau. Incitou de voz o velho Tirano, fez-lhe estalar as rédeas ao comprido do lombo, a equipagem lá vai descendo a rua. Está amena a manhã de Setembro, o sol banha já por inteiro o vale da Veiga, um céu azul finíssimo cobre estes montes, quase podem nomear-se as casas da Relva além, uma por uma.
O chouto do velho Tirano ressoa na calçada, já lhe pesa nos quartos dianteiros o andamento da carriagem nas reviravoltas do íngreme caminho, lá ao fundo, em chegando à estrada real, o macadame é plano, outro galo cantará.
Alguns rústicos tornam das hortas e desbarretam-se num ar de submissão, que estes são tempos marcados pela bruta demasia das diferenças de condição e posses. Daqui a muitos anos será diferente, não faltará então quem diga que em excesso o respeito se perdeu. Por enquanto o rufo dos liberais tambores da república mal se fez ouvir por estas terras, fez eco nos pinhais da Verdadinha e diluiu-se no ar, se promessas trazia delas não passou, quem tinha o dom com ele ficou.
Porém, passado o cruzamento e assim trocada a salvação servil, não faltarão em casa os risos zombeteiros, hoje saiu a passeio o dom fidalgo vamos ter festa no Valtalhado, fraca festa a minha, sem foguetes nem música, vou ali já venho. Cala essa boca e deixa viver quem vive, isto dirá a mulher, mais branda nos julgamentos e tolerante com o mundo, a inveja e a má raça é que te fazem falar.
À tarde, na taberna, ainda hoje as opiniões se dividem quando o fidalgo vai a passeio, uma vez por mês, muitos há que já recusam falar nisso. A princípio saía mais amiúde, era novo e tinha outras exigências, ia sozinho a cavalo no Tirano e voltava quando Deus queria. Hoje envelheceram cavalo e cavaleiro e foram-se espaçando as saídas, um habituou-se a andar atrelado à sege e outro talvez já nem a carroça puxe, e este é um alvitre de bocas de mais ousada língua, alentada por um copo a mais, esta é ainda a grande libertação.
O que se sabe é que o homem, então na força da idade, chegou um dia à terra e comprou a Casa Grande, hoje só se lembram disso os mais velhos. Enquanto decorriam no casarão as obras de restauro, fiturava a gente de que brasis vinha tanto dinheiro. O homem era desconhecido, ninguém lhe dava razão das procedências, e em tão escuro congeminar não se descortinava por que viera ele alcançar poiso aqui na terra. Nem ele se abria em confidências, justamente lhe chamaram fidalgo pelas distâncias que tomava do rude gentio da aldeia, saudava com gesto comedido sem descer do pedestal, vivia atrás dos muros da cerca e nunca reservou genuflexório na igreja, nem parecia dedicar ao abade atenções especiais. O tempo rodeou-o deste mistério, que a princípio cultivou e de que não se livrou mais, se algum dia o terá desejado.
O fidalgo, que na altura ainda o não era, não disse a ninguém donde vinha quando um dia desembarcou em Lisboa, dum vapor da mala real inglesa. Algum tempo depois, cinco paquetes do hotel levaram-lhe os malotes ao comboio do Rossio. Viajara el-rei há poucos anos até estes fins do mundo para abrir a linha da Beira Alta, parece que nem a bola da terra havia de girar sem estes gestos vãos, e foi também na estação de Celorico que este viajante se apeou. Trouxeram-no duas mulas e um recoveiro por essa encurvada estrada acima, passou, sem se deter, no Chafariz do Vento, ouviu do companheiro as lendas que cercavam as muralhas da vila, além no alto, a do fero João Tição e a da donzela Iberusa. Ninguém sabe que destino levava nem que estrela lhe riscava o caminho, a noite, fechada e concreta, veio ter com ele à estalagem da Rosalina, no Valtalhado. Havia histórias de salteadores que corriam pela aridez da charneca. E o recoveiro, calhado no ofício, negou-se a seguir viagem depois que se pôs o sol.
As casas da Rosalina eram já o que ainda são, e por estes anos aqui ficaram de guarda à estrada real, oferecendo poiso a almocreves e viajantes avulsos, de rota batida para Além-Doiro. Será esse o destino do cavaleiro andante, ao certo nem o recoveiro o sabe, se o próprio o saberá, o viajante é de poucas falas e ofereceu bom dinheiro por cada dia de frete, este bem mais leve do que transportar o sal que chega nos vagões do comboio, nada mais foi preciso dizer.
O recoveiro fez entrar as mulas no quinteiro vazio, a um lado a casa principal, de sobrado e alpendre, com três janelas na frontaria, a outro os baixos térreos para acomodar as descoroçoadas alimárias. O viajante ficou ainda uns momentos fora do portão, deteve na casa um olhar indecifrável, girou-o depois pelo horizonte como se em consultas, parou na toada agreste dos penhascos de Marialva e só depois entrou. Uma rapariguita mostrou-se no alpendre, sete ou oito anos tímidos no vestidito pobre, ficou-se a ver o girar de modos do recoveiro que prendia as mulas na argola e lhes aconchegava o penso, evitou o olhar do viajante severo que a assustava e reentrou em casa. Só depois a Rosalina assomou, vulto escuro a pedir aos viajantes que subissem, e ao entrar acharam-se todos na cozinha, surpreendentemente vasta.
Ali pernoitaram, o recoveiro numa tarimba do palhal e o fidalgo em catre certamente melhor apetrechado, isto supomos nós, que não haviam de ser por aí além os cómodos do tempo e do lugar. Nunca ninguém deu fé do mistério que nessa noite aconteceu, e o recoveiro, se ainda existe, nunca foi ouvido. O caso é que, depois dessa noite, o desconhecido viajante apareceu a fixar-se aqui na Casa Grande de Longroiva, e a iniciar ao Valtalhado a romaria que uma comovente constância faria durar até aos dias de hoje, a princípio cada semana, mais tarde todos os meses, quando se pode hoje em dia.
Logo estrugiram vozes por aí, rudes que são as cabeças e peçonhentas algumas línguas, se não sujas todas. E do altar para baixo já sabemos que só intolerância e preconceito escorrem, como cascata. Para retomarmos o ponto, a Rosalina era então uma mulher com os seus trinta anos, há três viúva dum farsola que se finou na ponta duma naifa biqueira no mercado do Rabaçal, em noite de mais vinho. Tais casos nunca ficaram deslindados nem limpos, dois ciganos da raia ainda foram presentes ao juiz de paz mas nada se desvendou, uns porque tinham má pinta no sangue, outros por não fazerem uso de melhor currículo, de entre eles não era o esfaqueado flor de melhor cheiro, tudo se findou por ali, que não havia no caso gente importante. Às costas de Rosalina ficou a estalagem que sempre fora cuidado seu, e uma filhita que também nunca fora outra coisa.
Ainda hoje se fala das qualidades de mulher que as suas eram, as morais e as outras, que todas contam para nos compor a sombra, ambas mal empregadas em tal homem, mas dele já soltas, como se viu, vislumbrando enredos de coração e cama por baixo deste enigma do fidalgo. Mas convém-nos atentar como é tosca esta gente e falha de observação, incapaz de compreender os dotes de quem fuja à comunal medida, um tanto de inveja escondida e doentio orgulho, outro tanto de vesga intolerância e rudes impulsividades, a miséria a completar o resto da bisonha figura, fica a paisagem completa e dela ninguém pode tirar ilações definitivas.
Por isso nada sabemos ao certo, salvo que esta peregrinação começou e se manteve por mais de vinte anos, e que, estando o fidalgo presente, a Rosalina retirava da torça da porta o verde ramo. Queria com isso significar aos passantes que o fidalgo dirigia o tempo a seu gosto, e que, no entretanto, só a ele Rosalina servia de hospedeira. Do resto, só ela saberá o usufruto que daí lhe vinha, ele há compensações que as balanças romanas não podem medir, vê a gente um fiel a desequilibrar-se e não se lembra de que nem sempre dois com dois são quatro.
Mas são-no agora, neste caso concreto em que o fidalgo saiu a passeio, ao Valtalhado irá. Já a sege desliza no macadame da Veiga, já o fidalgo cobriu com a manta de lã os joelhos alquebrados, vemo-lo assim e pensamos que também para ele a vida já lá vai, quem poderá estar seguro disso, Rosalina morrerá primeiro.
Num fim de tarde, que não vem longe, sairá o criado sozinho. O fidalgo, por doença de momento ou incapaz já de o fazer, mandará por ele, em metal sonante, o dote que a Rosalina caberá. Quer ele manter o privado enigma até ao fim, se coisa aqui houve que coisa terá sido, ligações directas de bens ao luar ninguém as apontará.
O criado não sabe o que vai lacrado no cabaz, nem Rosalina o dirá a ninguém, que também não chegará a sabê-lo. Mas tem o diabo, ou alguém por ele, artes que nos escapam e surpreendem. Nessa noite, será inverno, há-de ela receber a visita encoberta do fraca-rês do genro, a morar em Vale de Ladrões. Rosalina, com uma frialdade no peito, terá aquecido a água na panela de ferro, ajeitará a bacia de esmalte sobre a mesa da cozinha, há-de misturar na água fervente umas bagas de marcela e três pés de salva e arruda, cobrirá a cabeça com um espesso pano vermelho, e debruçar-se-á sobre os vapores da bacia.
O genro há-de entrar então sem ruído, estenderá sobre a cabeça coberta de Rosalina as escuras mãos ambas, mergulhá-las-á na bacia. A mulher, tomada assim de surpresa fatal, vai debater-se em roncos descompassados, golpeará o ar num terror pânico, torcerá as mãos que hão-de esfarrapar o grosso pano vermelho, e rasgará sulcos de unhas esfaceladas no tampo de madeira. O seu corpo há-de pular desesperado no assento da cadeira, e há-de estrebuchar como um possesso, antes de se quedar numa lassidão final, tão absurda como definitiva.
O genro há-de encontrar o cabaz misterioso, violará o lacre e provará o brilho das libras cavalinhas. O crime há-de ir parar às mãos do juiz de paz do Rabaçal. Mas tudo ficará inconcluso por falta de melhor prova, e por não haver no caso gente importante.