sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Portugalmente (12)

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O viajante afasta-se em silêncio, na verdade recolhido em si mesmo, só para continuar a ouvir interiormente o sussurro de Libório à despedida, saudinha para o senhor. E já vai a subir as escadas dum alpendre belíssimo, nesta casa velha de telhado a cair, quando os acórdãos vibrantes dum carrilhão electrónico se põem a gritar o meio-dia na capela de S. Sebastião, que está escondida ali ao lado. Indústrias de Braga, pensa o viajante, que logo decide afastar-se, a ver se salva os tímpanos. A esta hora o sol é já duríssimo, e a rua está deserta. Mas o viajante sente o peso duns olhos que o espiam, se não forem enganos dalgum instinto antigo que há-de conservar. Há um largo portão de folha que se entreabriu, e dele sai um homem abrigado num chapéu de palha. Apesar da barulheira do carrilhão, a retumbar nos ares um Avé de Fátima que ameaça não ter fim, o encontro é inevitável.
Os modos do homem do chapéu de palha são os de quem sofreu uma invasão. Quer saber de que é que o viajante anda à procura.
- Procurar, procurar, não procuro! Ando a ver! As pessoas, as casas, o mundo...
Ao homem parece que agradou a resposta vaga de filósofo barato, porque se abriu num sorriso. Quanto ao viajante, depressa se deu conta da sorte que teve neste encontro, porque o senhor Albino não é uma personagem vulgar. O senhor Albino é uma figura que saiu agora mesmo dum quadro naturalista de há um século atrás, para vir encontrar-se aqui com o viajante. Usa o mesmo vestuário, conserva os modos antigos do falar, espalha em volta o cheiro dum suor que há muito tempo se vai lavando a si mesmo, e cobre a cabeça com um chapéu de palha que já não existe. O viajante não vinha à procura do Portugal antigo, que o guarda na memória com grande utilidade, mas fica satisfeito por encontrá-lo aqui. Melhor pode cotejá-lo com o Portugal moderno, se não é isto forçar as palavras, e tirar a prova aos dois. Mas acha estranho o aspecto já um tanto alquebrado do seu interlocutor.
- Vida dura, amigo!
O homem ufana-se de ter já tantos anos como sessenta e sete, e de manter a sua actividade, mas lamenta a dureza dos seus ingratos trabalhos. E muitas vezes vãos, o que é pior. Ao contrário de muita gente, teve sempre terras suas onde trabalhar, e foi por isso que não emigrou, no tempo certo. Tem filhos ainda novos, que andam a estudar, e à surpresa do viajante confidencia que se casou tarde.
- Pois antes tarde e bem que cedo e mal, como às vezes se vê!
A escolha do senhor Albino foi tardia, mas boa, como o viajante há-de confirmar. E trouxe-lhe cinco filhos, entre eles um varão. Mas o viajante não sabe distinguir se isto é causa de alegria ou de contrariedade, porque todos lhe deram consumições e sobressaltos cabondes. Uma teve problemas de nervos, parece que era fraca do cérebro, foi uma trabalheira. A outra a seguir teve aquele grande susto com uma tia, por causa duns piolhos. A boa mulher aplicou-lhe na cabeça o insecticida que usava no campo. E a doente, se ia resistindo à moléstia, por muito pouco se não finou da cura. Depois veio a do meio, e logo lhe havia de cair uma panela de água quente num pé, foi um mês inteiro a correr para os tratamentos. O varão, ainda criança de escola, partiu um dia um braço. Lá andaram com ele em gessos e bolandas, mas ainda hoje não está bem, que ficou com defeito. À mais novata apareceu-lhe uma coisa ruim no ventre, até parece impossível, de tão nova. Agora já está bem, graças a Deus, só tem que ir aos hospitais de Coimbra uma vez por ano.
O viajante escuta com toda a atenção o rosário das queixas do senhor Albino, há muito que sabe que todos os milagres nascem apenas duma boa palavra. E bem gostava de a conhecer agora, para a poder usar, porque o rol das desditas do seu amigo ainda não terminou. Quando começou a trabalhar no comércio, a sua mais velha precisava dum carro, para se movimentar. O senhor Albino aceitou que não há modos de se viver sem ele, e lá lhe deu mil contos por um. Até ao dia em que sucedeu não sei o quê num cruzamento, e o carro acabou na sucata. O pobre homem teve que comprar outro, e agora não sabe bem o que fazer quando os outros filhos começarem todos a trabalhar, e precisarem também dum carro, para se movimentarem.
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