quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Portugalmente (16)

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Quando o viajante chega ao Reboleiro, logo repara que a aldeia é diferente das que tem visto. Os montes escarpados ficaram para trás, o vale ganhou alento, e as várzeas frescas puderam respirar, ao longo da ribeira. Se não fosse diferente a terra, não teria vindo aqui uma ministra excelentíssima a inaugurar este Centro Cultural da Ribeirinha, em Fevereiro de 2001, conforme diz esta placa. É uma construção ampla e moderna, quase a destoar numa aldeia assim, outras terras maiores não desdenhariam tê-la. O viajante visitou uma creche, na aparência bem apetrechada, porém a esta hora vazia de crianças, por ser já o fim da tarde. Há um bar e uma sala de jogos com mesas de bilhar, e um grupo de jovens locais assiste à televisão, em sofás de bom desenho. Existe ainda uma sala com computadores e ligações à internet, isto é o que vai dizendo uma assistente profissional e amável, e o viajante encontra sobre as mesas muitas pastas e cadernos, que sugerem materiais de estudo. Parece que ficaram assim abertos e espalhados há menos de um minuto, para um intervalo. E o viajante só estranha não ver nas redondezas quem os tenha utilizado.
No andar superior existe um auditório, que é também a sala de espectáculos. Anunciado para breve está um filme recente, que andou noticiado no jornal há um par de semanas. Embora não goste de ver estes filmes americanos, muito se alegra o viajante, por já não haver no mundo as distâncias que antigamente havia. E talvez aqui não tenha chegado ainda o rugir das pipocas nos queixos da assistência.
O viajante, que andou ao sol durante todo o dia, precisa de se refrescar com uma cerveja, e vai à procura dela na esplanada dum café, ali em frente do Centro. Na verdade não sabe que utilização dará a estas instalações a gente do Reboleiro. Era uma pena que elas servissem só para engalanar a festa da padroeira, ou para usar em casos de protocolo com entidades distantes. Mas fica a pensar que há visitas de ministros que sempre valem a pena, e que alguma coisa afinal ficará dos fundos europeus, quando um dia vierem a acabar. O que lhe agradava agora era assistir a um espectáculo no auditório do Centro, se não fosse dessas artes musicais que se vendem nas feiras e embrutecem o gosto, boçalizam o espírito e enchem de animação os arraiais. Talvez um dia a juventude que parece ainda haver no Reboleiro, num intervalo das suas viagens pela internet, resolva encenar uma peça do Almeida Garrett, mestre de viajantes. Este admirador já assistiu, em tempos muito antigos, a récitas em palheiros e odéons improvisados, e nunca mais se esqueceu delas. Cá estará, nesse dia, a aplaudir.
- Está a desenhar a pedra cavaleira?
A pedra cavaleira é igual a tantas que há no mundo, a cada terra a sua. Está além bem à vista no cimo da encosta, montada sobre as outras que a sustentam, ninguém sabe como não cai, tão insegura parece. E o viajante está aqui na esplanada, com as suas folhas rabiscadas sobre a mesa, qualquer um vê que não é desenhador. Mas o homem, que parou agora o seu camião ali ao lado, quer apenas um pretexto para meter conversa. O viajante fica encantado, a um lado porque deixou de ser o cobrador de impostos, e a outro por ter arranjado companhia para beber mais uma cerveja.
O homem, que antigamente andou quinze anos por França, acabou de chegar de lá, porque agora trabalha nos transportes internacionais. E por ele fica a saber o viajante que, muito antes da ministra excelentíssima, esteve aqui o primeiro-ministro em pessoa, a inaugurar o lar de Santa Catarina. Embora se tratasse dum momento solene, e fugisse ao protocolo, não se impediu o governante de comparar logo ali a dimensão vulgaríssima da obra com a grandiosidade da factura. Isto é o que diz o camionista, que ouviu falar do caso. Mas os fundos europeus têm largos costados, e a obra aí ficou, com famas para a terra e proveitos para o gerente. E também para alguns idosos, que assim ganharam quem lhes dê cuidados.
Quando por lá passar a ver o casarão, o viajante há-de encontrar-lhe na fachada uma cabeça de bronze, sobre um pedestal. É dum político que deixou nomeada, e ainda hoje faz milagres na boca de muitos, porque morreu há vinte e tal anos, num desastre de avião. E o viajante, que conhece o seu quê de portugueses e foi ficando céptico com a idade, lembra-se logo do rei Sebastião. O tal que ficou célebre não pelo pouco que fez, mas pelo muito que havia de fazer, se não tivesse morrido num desastre fatal. Ao viajante, e a despropósito, só lhe vem à lembrança o seu amigo Albino, que já ficou lá para trás, desiludido e hesitante, diante da urna dos votos.
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