quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Farpas

Do Eça e da ramalhal figura, ainda está lá tudo, ou quasi. Mutatis mutandis. O que nos falta é lê-las e pensá-las.
"(...) Não se compra um livro de ciência, um livro de literatura, um livro de história. Lê-se Ponson du Terrail - emprestado. A indiferença do público reage sobre o escritor - a literatura extingue-se.
Nos teatros não se pede uma ideia: querem-se vistas, fatos ricos, mutações, mágicas. (...)
Os cafés são silenciosos, tristes. Meio deitados para cima das mesas, os homens tomam o café a pequenos golos, ou fumam calados. A conversação extinguiu-se. Ninguém possui ideias originais próprias. Há quatro ou cinco frases feitas de há muito, que se repetem. Depois boceja-se. (...)
Perdeu-se o sentimento de cidade e de pátria. (...) É uma nação talhada para a conquista, para a tirania, para a ditadura e para os domínios clericais.
(...) Vive-se na rua, ou no café. A casa aborrece e a família não nos interessa. As casas são pequenas, mal arejadas, sem conforto. O saguão é imundo, lúgubre, desmoralizador. A vida aparece como um cárcere. O burguês vai para o Grémio. O operário vai para a taberna.
Nas salas há uma mobília de mogno ou de murta, dura, lustrosa, pretensiosa, fria, quase inútil. (...) As mesas têm pó e vasos com flores de papel. Vê-se que aqui se não está senão de passagem, em acanhada cerimónia de gestos, de palavras e de ideias, mas que se não conversa, que se não discute, que se não ri, que se não existe, finalmente que se não vive em tais recintos. Se os mortos mobilassem os seus jazigos de família mobilavam-nos assim. (...)
Lisboa não se banha durante o inverno. Entrai nas três casas de banho que existem para uma população de 300 mil corpos. Achá-las-eis desertas. (...)
Nas aldeias, onde o quadro é mais compreensível e breve, observa-se que em cada freguesia é regra quase invariável que de todos os sujeitos o mais desordeiro é o regedor, o mais alegre o coveiro, o mais estúpido o mestre-escola, o mais estroina o cura. (...)"