sexta-feira, 14 de março de 2014

Vidas 3

De Busch, no Campo Grande
Para Nath, em Lisboa
1 de Novembro

Se o senhor tivesse visto as cenas que eu vi, e experimentado os mesmos sentimentos e emoções, desde que o deixei (no Rossio), ficaria admirado por eu ainda aqui estar vivo. Mal me tinha afastado vinte passos, deparei com a nossa antiga governanta, que há cerca de dez meses casou em TREVES, caída no meio da rua. Tinha apenas vestida uma camisa, mais vermelha de sangue do que branca. Tinha a cabeça ferida e os seios machucados. Como não se mexia, julguei-a morta. Entretanto vi a criança meio nascida, a mexer a cabeça e os braços. (...)
Aí reconheci a voz do velho Cloe e das suas duas filhas. (...) Havia outras pessoas na mesma rua que poderiam ajudar estes infelizes, mas todos tentavam sair rapidamente da cidade, e não queriam parar para salvar os que estavam soterrados. Como, para mim sozinho, seria um trabalho impossível e vão, continuei. No caminho encontrei o nosso empregado português Pinto, que estava nu, e apenas trazia um avental de mulher. (...) Chamei-o mas não me respondeu, parecia louco e fora de si. Pegou numa pedra e começou a bater no peito. Deixei-o ficar e afastei-me, porque temi que ele me desse também com a pedra.
O convento de Sta Ana estava todo no chão. Ouvi a voz de uma dama portuguesa, da qual apenas se via a cabeça, o resto do corpo estava enterrado nas pedras. Como vinham lá três portugueses fortes, pensei que eles podiam ajudá-la. (...) Ouvi outra gritaria, e quando voltei a ela vi que tinha as orelhas rasgadas, e que eles lhe tinham roubado os brincos. (...)
Quando saí da cidade (...) notei que muitas pessoas formavam um círculo, entre as quais meia dúzia de padres ou monges. Ao aproximar-me, vi o sr. ____ sentado no chão. Estava tão perturbado que não me reconheceu. Os padres estavam ocupados em baptizá-lo e em dar-lhe os santos óleos. E pouco lhes custou convencê-lo a mudar de religião, pois tinha perdido a razão, e a cada momento parecia desfalecer. Fui embora e não consegui dizer nada, nem levar o jovem comigo, pois temia o fanatismo dos religiosos, e penso que me teriam apedrejado (...).
A maior parte dos portugueses que me conheciam ajoelhavam, beijavam-me as mãos e pediam perdão, se alguma vez me tivessem feito mal; acreditavam que este seria o último dia. Ninguém se preocupava mais com teres e haveres. 
(...) Se encontrar gente da nossa casa mande-a cá (...). Também lhe peço que mande 20 trabalhadores a casa do sr. Cloe, custe o que custar, para salvar a pobre família, pois temo que sejam queimados vivos. (...)