sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Desmancha-prazeres

Entrar na biblioteca, ou no Centro Cultural, dum qualquer desertificado concelho do interior, é sempre um exercício de muito proveito e grande inspiração. Pois que se ganha em disponibilidade e atenção das hospedeiras o muito que se perde no vazio de utentes.
Veja-se aqui este Portugal nos Mares Vol. I, de Oliveira Martins, Edit. Ulmeiro, s. d., pág. 111:

"De 1497 a 1612 armou o governo português para a Índia 806 naus que à razão de 125 mil cruzados representam 100 milhões e 750 mil cruzados. Computando o cruzado a 2.057 rs. de hoje, temos um custo dos navios, sem cargas, que atinge a soma de entre 207 e 208 mil contos de réis, o que importa um orçamento anual de cerca de 2.000 contos de réis só para construções.
Basta o enunciado destes algarismos para se fazer ideia das consequências financeiras da aventura da Índia. Incontestavelmente, a pimenta foi um mau negócio para o Tesouro de S. A.; e a Índia, como negócio, foi pior ainda para a economia portuguesa. Esterilizou uma sociedade que no séc. XIV, ainda no séc. XV, se desenvolvia normalmente, como riqueza e população, e corrompeu-a esterilizando-a. A pobreza trouxe consigo os vícios inerentes, e juntou-os aos vícios da vaidade e da dissipação.
Diz um escritor que D. Manuel conquistou na África, na Ásia e na América, o direito de gastar muitos milhões; tudo isto é verdade; mas verdade é também que a nossa ruína foi o preço do maior acto da civilização nos tempos modernos. Valha-nos a consciência dessa glória, perante o espectáculo das nossas misérias.
Com a Índia aparece entre nós pela primeira vez a instituição da dívida consolidada; é D. Manuel que a inicia, criando os padrões de juros reais; é no seu tempo que se esgotam os antigos tesouros soberanos, verdadeiras caixas económicas dos povos; Entra-se no período do capitalismo moderno que, desde então, através de sucessivos jubiléus, ou pontos, vem a parar na dívida monstruosa que actualmente nos esmaga.
Os embaraços financeiros, criados pelo poder marítimo português, existem já no tempo de D. Manuel: prova é o pedir emprestado; mas atingem proporções de crise no tempo de D. João III, quando os padrões, emitidos antes a 5 e a 6 por cento, sobem a 8 e a mais; quando a dívida flutuante, obtida por meio dos câmbios de Flandres, se contratava a tal preço que se dobra o dinheiro em quatro anos, por não haver já quem quisesse comprar os padrões da dívida fundada. (...)
É deplorável: já nesse tempo - nada há novo sob o sol! - se recorria ao sofisma de chamar extraordinárias a despesas que todavia se repetiam constantemente. (...)
Compreende-se pois o estado agudo da crise, que fazia dizer ao conde de Castanheira:
'Quando cuido nas coisas que Vossa Alteza é obrigado a suster e o modo de que está sua fazenda, representam-se-me tantas desesperações que muitas vezes me parece que vêm mais de a minha compleição melancólica que doutra coisa.
Des que se começou a tomar dinheiro a câmbio até agora, nunca se outra coisa fez, e quase se não sustém dal as despesas de Vossa Alteza. E porque ainda isto não bastava para se remediarem, se começaram a vender juros (padrões)... e o pior é que já agora não há quem os compre
'.
A compleição melancólica do conde de Castanheira antevia a sorte do país e o termo da viagem iniciada em 1498. O mar devorou-nos; a Pátria naufragou como essa Marinha que, levando-lhe a bandeira por todos os mares, se pode dizer que levou também consigo o sangue, a virtude e a força das populações vivas que tinham aclamado o Mestre de Aviz.
Antes de morrer em África, D. Sebastião teve um Alcácer-Quibir financeiro, quando foi necessário declarar a bancarrota, reduzindo o capital e os juros aos Padrões e vendendo-os à força, porque já desde o tempo do seu avô ninguém os queria comprar. Só os judeus de Flandres emprestavam a Portugal em condições em que se dobra o dinheiro em quatro anos...
"