terça-feira, 8 de novembro de 2011

Palavra de brigadeiro (4)

(...)
O avião lá caiu, lá se despedaçou, mas eu já não vi como. E a partir de agora é só um filme queimado que lhe posso mostrar, onde poucas sequências se aproveitam.
Na primeira dou comigo dentro dum charco. Sinto o lodo nas pernas enterradas, as ervas podres a enrolarem-se aos joelhos, e um clarão de alerta a explodir-me na cabeça: - Preciso de sair daqui!!!
Já a meio da encosta dum morro. Estou parado, voltei-me para trás, pergunto, a quem: - Como é que vou daqui para o Toto?!
Cheguei, parece-me, ao cimo do morro. Difusos, entrevejo vultos baços, vermelhos, lá em baixo, e grito: - Quem são vocês?! Que horas são?!
Agora já vou picada fora, no jipe da tropa. As pontas do capim, debruçadas na berma, vêm lamber-me a cara ensanguentada, deixam-me ferroadas na pasta amassada dos olhos. Um soldado cobre-me com o peito, parece a minha mãe.
A partir daqui, a história adquire maior constância. As sequências aproveitáveis tornam-se mais longas, aparecem encadeados de pensamentos, começam a jorrar tempestades emotivas. Reaparece o desconforto do medo, aqui e ali sinto-me vulnerável.
Agora estou já no quartel do exército, estendido na maca baixa, inundado pela euforia de me encontrar a salvo. Agito as pernas no ar, experimento músculos e dobradiças, lanço anátemas contra a guerra e todos os seus chefes, obtenho do brigadeiro a palavra de honra de que não fico cego. Chega-me pela primeira vez o gosto da fraude, sinto-me violado por dentro.
E estou já no aeródromo, rodeado da minha gente da força aérea. Aguardo o avião que vem buscar-me, deitado no chão duma ambulância verde. A ventoinha do tecto rodopia teimosa, agita um pouco a atmosfera quente. Apercebo-me do tempo, do sol, dou conta de que a tarde já vai longa. Num desespero que não entendo, agarro a mão dum amigo. Respiro a angústia contida dos meus camaradas, enterrado num cataclismo de emoções que não sei descrever. Aparece-me clara a ideia de que os comandos da base aérea não vão perder a oportunidade de fazer contas comigo. Pagar-lhes-ei, desta vez, a insubmissão, as resistências passivas, as heresias velhas e as novas. Os bonzos não me deixarão escapar. Este pensamento atormenta-me, dói-me, exposto assim e indefeso, como se tivesse acabado de sair do útero da minha mãe.
Estou já no chão dum avião, imagino-me sobre os Dembos. Em viagem para Luanda, mergulhado num agressivo bater de ferragens e latas, que me provocam dores insuportáveis. Queixo-me ao médico, que me cobre os ouvidos com algodão em rama. Sem nenhum efeito.
Já no aeroporto, transferem-me para uma ambulância. É claramente noite. Alguém recomenda aos enfermeiros muita pressa e muito cuidado.
Eis-me enfim na urgência do hospital militar. Há outras macas no chão, à minha volta. Vultos perpassam, com fardas de gente importante. Um padre aproxima-se, debruça-se sobre a minha cabeça. Lembra-me que sou filho de Deus, e que como tal devo encarar todas as provações. E que devo estar preparado para o sacrifício supremo, se tal for a sua vontade omnipotente.
Surpreendeu-me, com franqueza, a presença do padre. Vi-lhe claramente o significado mas considerei-a descabida, avaliando o meu próprio estado. A bem dizer assustou-me. Abriu brechas na minha segurança íntima, no último reduto em que me achava. Não sei se lhe devolvi uma palavra.
As últimas imagens são da sala de raios X. Estendido numa grande mesa, cercam-me tubos e olhos de máquinas. Sinto um vómito violento. Peço ajuda a um enfermeiro, que me ampara, debruçado sobre um balde de plástico verde. Vomito do fundo das entranhas, e oiço o enfermeiro comentar: - Este vem bonito! Só já vomita sangue! – Foi o mais macabro cumprimento que já me dirigiram. Deixou-me desamparado e aflito. Introduziu na minha fortaleza uma dúvida inimiga e perversa.
Valeu-me, de novo, este repetido baixar do pano, este gelar-se-me por dentro a ideia e a lembrança. E ainda não sei, talvez estas horas todas que eu vivi mas que não foram minhas… O que são estes lampejos de consciência que aparecem, furtivos, em que eu penso, e ajo, e sinto, e tudo o resto que não passou por mim, e que eu não guardo, e que nem ao de leve me arranhou, mas onde eu também actuo, e avanço, e recuo?!
Comecei a sentir pesada a língua, a invadir-me o peito aquela opressão de incapacidade e esgotamento que voltava sempre, mais forte do que eu. Soergui-me nos cotovelos, resisti, dei pelo pijama inundado de suor nas axilas.
Enfim, fiquei aqui, e dos primeiros tempos não guardo lembrança. Dias e dias que não foram meus, sabe o que é, até começar a acordar.
Vieram então pesadelos fantásticos, febris, escuros como fundos de poços. Olhava-me num espelho de corpo inteiro e desvendava uma barriga transparente, com pele de celofane, assim como um manequim de sala de anatomia. Deslizava sobre mim as mãos e não achava pernas, e ficava atordoado, a mim mesmo estranho, na penumbra surreal duma atmosfera de homens-cestos. Tinha uma coluna reconstruída, descarnada a espaços, com vértebras lisas e brilhantes talhadas em chifre cinzento. O pescoço alto, desproporcionadamente longo e fino. A minha cabeça tinha partes restauradas, com entalhamentos de baquelite castanha. Tudo funcionava, porém, na perfeição, obra-prima dum macabro Frankenstein.
Venho, assim, regressando desta viagem ao fundo das trevas, aos magmas de fim do mundo, onde já não há medos nem há emoções. Onde o sol e a paixão, o verde das florestas e o falar das gentes se dissolvem num vasto lago escuro, opaco, mineral.
E mais não me disse a língua naquela circunstância. Mais diria se o torpor não tivesse chegado, definitivo, urgente, fóssil.
A quarentona não cheguei a vê-la, sentia apenas latejarem-me os pontos nas pálpebras cosidas, por baixo dos esfregões de palha-de-aço. Enquanto iam renascendo, mais vivos, os olhos que não perdi, palavra de brigadeiro.