segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Palavra de brigadeiro (3)

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- Imagino que a senhora dispõe de pouco tempo para estas conversas, que tem uma vida enervantemente carregada de compromissos, que isto é para si apenas um descargo de consciência, uma injecção de morfina no cancro da existência. Sei que gosta de passar por aqui para que se saiba que esteve cá, armada em Santa Isabel da tropa, abrindo o regaço generoso aos massacrados da guerra, distribuindo larachas ridículas, ou livrinhos de cordel já surrados de tanto peregrinarem de mão em mão. Sei que gosta de passar por aqui como cão por vinha que foi vindimada, envolta nas liturgias beatas duma visitinha pascal – breve, breve, que a malta é muita! – e deixar atrás de si um rasto de perfume de fêmea.
Senti-me cáustico, injusto, infame. Uma cobardia de novato ameaçou-me a garganta. Mas ainda assim me saiu a voz como se não fosse minha.
- Aqui estou há três semanas. Julgo que não me engano, muito embora os rigores do tempo me tenham escapado. Conheço os meus companheiros pelo ouvido, e comecei a ver as horas na voz do enfermeiro que me traz o almoço. Já tenho tentado, nos momentos em que estou desperto, ligar as vozes destes colegas de camarata às suas histórias pessoais, captar-lhes as inflexões, os maneirismos, e pintar-lhes o retrato robot, como fazem os polícias enganados pelos ladrões. Aquele além do meio, por exemplo, há-de ser um macaco de focinho quadrangular e obtuso. Raciocina linearmente, agarrado ao sentido imediato das coisas, tem a casca dura e o pêlo hirsuto, faltam-lhe na ascendência gerações de banho morno quotidiano. Aquele lá do fundo chegou há um par de dias, traz umas lascas de caveira a menos por certos maus encontros que teve, ao que me consta. Não fala, não o conheço. Há um aí para a direita que não se cansa de engolir noticiários. Homem paciente, liga o transístor à hora certa, como quem peneira leitos de rios à espera de ouro. Nem chega a excitar-se, pois nem reflexos de mica lhe aparecem no fundo do crivo. E desliga sempre o aparelho no fim das notícias. Deve ser um tipo de olhar ansioso, eu vejo-o ruminante, pouco falador, a guardar no peito uma esperança não sei de quê.
Pouco falamos, enterrado cada um na sua fortaleza. As nossas conversas são como folhas amarelas de Outono, limitam-se a cair umas atrás das outras. Somos uma armada de barcos naufragados, cada um a tratos com a sua procela pessoal, aferrado às suas bóias interiores.
Eu entrei aqui feito num bolo, mais morto que vivo. Vim dos matos do norte, onde me espetei com um avião pelo chão adentro. A ganância do alvo a fugir, sabe o que é, aquele fascínio de o ter no visor e as putas das balas perdidas não se sabe por onde. Não custa nada prolongar o passe mais uns décimos de segundo, pode ser, enfim, que o pundonor se salve, e o alto conceito em que nos temos a nós próprios, se formos imbecis até tal ponto, como é frequente, sabe como é?
Imagine pois que o meu alvo era um bicho do mato, um pacação, não sei se já tem visto. Apanhou com o avião ao longo do espinhaço, lá ficou ele e eu, pelos vistos eu em bem melhor estado! Bem sei, mas não me interrompa para me recriminar. Já sei que, se foi mal, o mal está feito. Já tive aqui uns visitantes pressurosos a recolher-me o depoimento, prontinhos a alindar-me a folha de serviços com algum floreado do regulamento infringido. Mas sempre lhe direi que o fiz para evitar a fome e o mau passadio, o meu e o dos companheiros. Por isso, bem ou mal, depende só da moral.
Quando senti o avião a esfregar a barriga no capim, puxei-o, e ele recuperou. Mas já não vinha inteiro, metade duma asa saltara no choque violento que me projectou a têmpora direita contra os ferros da carlinga. Partiu-se o capacete que me rasgou os olhos, e o choque deixou-se num estado de sonambulismo inconsciente, em que o fio da memória se me cortou. Não foi porém tão rápido que eu não tivesse visto avançar direito a mim, distinto e inevitável, o manto escuro do aniquilamento. Passou-me na cabeça um clarão de raiva. Mas logo me inundou um tranquilo sentimento de entrega, de renúncia pacata, de submissão quase doce.
(...)