quarta-feira, 7 de maio de 2014

A cinturinha de vespa e o B52

Um belo dia chegou ao planalto uma notícia fausta, a Olga Prats dava no cineteatro da capital da província um recital de piano. Era evento muito raro, ainda para mais na folga dum domingo e a horas muito decentes. Logo me veio à cabeça que o Auster era o meio adequado aos cinquenta quilómetros da ida, e aos outros tantos da volta. Mais rápido e mais seguro que o jipão de volante à esquerda, oferecido à esquadra pelos sul-africanos ricos. Isso foi o que eu pensei, e o capitão anuiu.
Mal engolido o almoço, embarquei na passarola e ala moleiro! E aterrei sem sobressaltos, a carregar na roda esquerda, como era hábito meu.
Era ainda muito cedo para a hora do recital. E decidi visitar uma donzela que há uns tempos conhecera em festa de aniversário. Muito precisada disso andava ela, a desditosa, constou que vinha das mãos dum alferes do arre-macho, embarcado para a metrópole quando lhe chegou o tempo. Ora toda a gente sabe que a mordedura dum cão melhor se cura com o pêlo de cão igual.
Mão aqui, braço acolá, tinha ela a cinturinha mais marcada que alguma vez torneei. Nunca mais vi outra igual e a tarde passou num ai. Até a Olga Prats guardou um silêncio cúmplice, e quando olhei para a janela a noite estava a chegar.
Corri num táxi para o aeroporto, pus em marcha a tactear, dispensei as leis do manual. Entrei na pista, abri-lhe as goelas todas, e seja o que Deus quiser, que o crepúsculo é fugaz.
Por duas vezes ainda faisquei o isqueiro, para ver a pressão do óleo e a velocidade de subida. E o painel dos instrumentos, já de si rudimentar, reduziu-se ao cantar do motor e à conversa muda das vibrações nos comandos. Um manto escuro confundia a noite e a mancha do horizonte, sobre os montes em volta da cidade. Nivelei mal me pareceu, e uns faróis a farejar numa estrada balizavam a rota aproximada.
Em breve apareceu no rádio a voz distante do controlador, a lançar à noite chamadas insistentes. A primeira vez nem queria acreditar, pus-me a imaginar a cena, a esquadra inteira de alerta à minha espera a tais horas. E eu senti-me tão exposto e miserável que mesmo a cinturinha de vespa me desertou da lembrança.
Lá tranquilizei a torre, dei-lhe um tempo estimado casual, abandonei-me à cegueira da noite. Até que apareceu no horizonte a dupla faixa de luzes de iluminação. Afinal o céu não me caíra em cima e eu sosseguei finalmente, dei uma folga ao motor. Tinha sido accionada metade da iluminação da pista principal, que funcionava a tochas de petróleo. 
Quando as rodas afloraram o asfalto, a mão direita deixou o motor abandonado a si próprio. Era preciso ocupar-se do manche, usualmente entregue à mão esquerda. Mas essa era necessária para recolher os flaps, manobrando uma alavanca que baixava do tecto, fazia-me lembrar o tubo da bazuca e bloqueava a abertura da porta. Com os flaps recolhidos, tudo voltava às posições normais.
Embora às apalpadelas, a boa da passarola não se desviou um milímetro do eixo da pista. E ainda bem. Um cavalo de pau naquelas circunstâncias não seria bom de ver. O capitão aguardava-me em silêncio atrás da secretária, com os regulamentos na mão. E eu nem comentei a Olga Prats, nem o Bruno Pizzamiglio, nem meti ao barulho a cinturinha da vespa. Pendurei ao peito a corda do penitente e estendi o pescoço ao veredicto. 
O capitão comandava bem melhor do que eu pensava. Do B 52 não havia que dizer. Mas o Auster era mais fiel que nós os três.