domingo, 11 de setembro de 2011
Ecos da Sonora - XLII (2)
Esta obra de Rentes de Carvalho colige 30 textos, de dimensão e apuro variáveis. Titulados mas sem data, é difícil definir-lhes uma idade, um dia de nascimento. Porém os conteúdos, assim como ocasionais variações formais, sugerem um alongado período de produção. E terão ficado na gaveta, a marinar à maneira de Horácio, candidatos a uma página, na colectânea que finalmente surgiu.
A questão carece de importância, e não tem maior significado. Salvo permitir-nos acompanhar o autor, e concluir que Rentes de Carvalho não é homem de se pôr a emular cânones. Tem o seu, que definiu e cultiva. Escreve ao sabor da própria respiração.
Salvo opinião abalizada, nenhum dos textos cabe na definição canónica do conto. Se a dimensão o sugere muitas vezes, logo os tempos, ou os lugares, ou o desfilar das personagens, ou o fluir solto da intriga o contradizem. Nesse aspecto é Rentes de Carvalho moderno e actual há muito tempo. Para mim, leitor atreito a normas e taxinomias, por lhes reconhecer alguma utilidade, se tivesse que lhes dar um género, chamava-lhes histórias.
A escrita é fluente, correntia, despreocupada na aparência, às vezes surpreendente. Numa esquina qualquer espreita-nos um gracejo, uma ironia subtil, um sarcasmo desenganado, mais raramente um cinismo. Leitura útil que, se não desvenda o mundo, nos conta muito sobre ele. Para o meu gosto, falta às vezes, aqui e ali, um pouco mais de tensão na corda narrativa.
Uma historinha de página (188) dá o sugestivo nome à colectânea: Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia. E a sua leitura deixa-me em perplexidade, resistente aos ensaios todos que já fiz.
Porque é domingo, e sendo o texto tão curto, arrisquemos um exercício. Sem invasão daquilo que é do autor, e do seu direito à malandrice e à picardia. Nem daquilo que do leitor é, e direito seu à inépcia ou falta de agudeza.
[narrador, Júlia e um senhor]
“Os braços da Júlia da farmácia ainda um dia o deitam a perder. [esta premonição é feita pelo narrador, ou pelo senhor?] No emprego usa a bata branca do regulamento, mas na rua, mal o tempo aquece, passeia-os em todo o esplendor da nudez, e a impressão que tem é que ela faz aquilo de propósito, com a única intenção de lhe acender calores que julgava extintos. [parece claro que a premonição é expressa pelo senhor, confidenciada ao narrador, que no-la comunica]
Como se conhecem, encontram-se às vezes no café, e é um tormento. Pele com maciezas de seda, a penugem dourada, a delicadeza dos pulsos, o suave redondo dos ombros! Esforça-se por mostrar que a ouve atento, mas naquele sonho de que delícia seria tocar-lhe, mesmo de leve ou a fingir acaso, antes de dar conta já os olhos resvalam para os dedos, acariciam a perfeição das unhas, sobem pelo antebraço, param nos ombros. [detalhes confidenciados pelo senhor ao narrador, que nos dá conta deles]
- Estava eu a dizer… [uma fala de Júlia?] - Faz [o senhor] o trejeito involuntário de criança apanhada em flagrante, e ela continua, finge não reparar. Para ambos é um jogo, mas só o de Júlia é inocente. [juízo feito pelo narrador? Por Júlia?] Sente [ela]os tremores, adivinha-lhe a excitação, por vezes a segredar qualquer coisa quase lhe toca e não lhe escapa o fremir das narinas. Mas depois diz-se [a si própria] que se engana. [parece manifesto que estas confidências são de Júlia ao narrador]
- Está a ver? Não sei porque estou a falar disto. Então um senhor que conheço desde pequena, colega do meu pai, que até já tem netos… E tão carinhoso. É tolice minha, não é? [discurso de Júlia, que conversa com o narrador]
Aceno que sim, de facto é tolice. Surpreendi-a ao dizer-lhe que tinha uns braços muito bonitos, e foi então que ela contou o caso.” [o narrador assume as confidências de Júlia. Mas no início parece haver também confidências do senhor. Ou o narrador é natural confidente dum e doutro, em momentos diferentes?]