segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Cândida (1)

Vive além naquela casa grande, ao fundo da vereda, mas nunca gostou de morar fora do povo, aqui no descampado. E agora está sozinha, desde que enviuvou.
Antigamente a vida era diferente e até os dias pareciam pequenos, sempre numa fona entre a cozinha e a horta, o asseio da casa e as lixaradas que o vento juntava no pátio. Agora tornaram-se tão grandes, e às vezes tão pesados, que mal os consegue suportar. Só a poder de tristeza e solidão.
Metade da casa não parece sua, fechou a porta que dá para o corredor e nem lá entra. Só para se defender. As latas das sardinheiras que rodeiam o pátio ficam semanas sem uma atenção. O que lhes vale é serem resistentes e saberem esperar. Agora já tem pena, mas foi assim que as sécias lhe morreram.
A ideia das sécias traz-lhe uma aflição, fá-la sentir-se culpada da morte do marido naquela manhã. Ele em frente do espelho, a deixar de ver no queixo a espuma da barba, a queixar-se das tonturas. Vem ela a correr, e ele dobrado por cima do lavatório, ele a estender a mão à procura da parede, ele a pedir que lhe limpe um suor frio na testa. E ela a ficar ali atarantada, a telefonar ao cunhado em vez de ligar para as ambulâncias, o cunhado a tirar o carro da garagem, a levar o irmão ao consultório do médico, e o médico sem atentar no que fazia, sem perceber o que se estava a passar, sem o recambiar logo para as urgências, o médico a escrever uma carta vagarosa para os colegas do hospital, a mandá-lo seguir no carro do cunhado em vez de reclamar os bombeiros, o tempo a passar e os dois a gastá-lo na sala de espera, sem que nenhuma funcionária reparasse neles, sem que a menina da bata lhe adivinhasse o nome e viesse chamá-lo, senhor Manuel dos Santos.
Ah, se ela soubesse a tempo que havia ambulâncias quando se deixa de ver a espuma da barba em frente do espelho, se ela tivesse num papel o telefone dos bombeiros, se ela ao menos soubesse conduzir, talvez o Manel não tivesse morrido cercado de gente, ali à entrada das urgências do hospital da cidade!
(...)