quinta-feira, 15 de setembro de 2011

"Fomos ao rio de Meca" - 1

Banhados de poeira e lama os camiões perderam a cor, mordidos pela soalheira inclemente de cinco dias de viagem. Saíram de Luanda em coluna aprumada, rigorosa, cheios de massa nova nas articulações de ferro. Alarmaram as gentes do Cacuaco, excitadas ao ouvir o roncar longo dos motores e os grossos pneus rangendo no asfalto. Em algazarra viva, os monandengues largaram as suas construcções no pó da rua, e vieram contá-los um a um, até esgotarem a tabuada, ia a coluna a meio. Havia camiões azuis e vermelhos, verdes e cinzentos, havia muitos castanhos e até um amarelo. Longo tempo levaram a passar no meio das casas, na sua cadência certa, intervalados a espaços por jipões daquele verde morto da tropa, carregados de soldados.
Depois o asfalto acabou. Vieram as picadas enrugadas, veio aquela nuvem de pó teimoso a infiltrar-se nos pulmões dos motores e dos homens. Os camiões ficaram velhos e sem graça. Os motoristas cobriram os narizes com lenços atados ao pescoço, como assaltantes de pradaria. Os monangambas, forçados a viajar a descoberto, no cimo das cargas, ficaram estas máscaras do outro mundo, iguais na cor do pó vermelho das camisolas rotas, das faces, das carapinhas.
A longa serpente de viaturas ronronou pelo horizonte infindo dos sertões do norte, durante cinco dias. Subiu e desceu colinas arredondadas, torneou escarpas íngremes, passou vaus de regatos secos, bordejou florestas sombrias. Os monangambas fizeram fogueiras à noite, cozinharam o funge. Embrulhados em cobertores, ressonaram os motoristas nas cabines, ao lado das carabinas de repetição. Os soldados montaram guarda, cheios de pó e de cansaço.
O protesto dos motores, no seu alarido gritado de aços quentes, aterrorizou bichos nos seus fojos, espantou bandos de pernaltas brancas que lavavam os pés nos charcos. Uma nuvem de poeira sufocante levantou-se no ar, picadas fora, do Ambriz a Maquela do Zombo. Ficou, por momentos, suspensa, na atmosfera parada das tardes de sol quente do planalto. Até cair, suavemente, maculando as folhas verdes do capim, debruçadas sobre a picada.
(...)
[texto de 1982]