Homenagem
(a Thomas Ehrling, operário no Lausitz, ao tempo em que os havia)
O homem está sentado debaixo da macieira que dá maçãs vermelhas, no pequeno quintal. Vagueiam-lhe os olhos, silenciosos, na paisagem breve, a terra é plana e o bosque de bétulas fecha logo ali o horizonte, atrás dele só a pesada silhueta da fábrica de briquetes. As últimas folhas do outono passam levadas na frialdade da brisa, por isso o homem tem este ar arrepiado na face, e tem húmidos os olhos inquietos. Não sabemos decifrar-lhe a expressão nem contar-lhe os anos do rosto, vemos é que tem na fronte rugas pronunciadas, será a gravidade do momento que as torna mais fundas.
Hoje não foi trabalhar, nem sequer se aproximou do portão da fábrica. Rebelaram-se nele rotinas muito antigas mas ficou aqui, debaixo da macieira que dá maçãs vermelhas, os olhos incapazes de furar para lá das bétulas, incapazes de passar além da silhueta da fábrica velha, onde a altíssima chaminé deixou de fumegar.
Divagam-lhe no ar frio recordações distantes, neste céu que subitamente ficou vazio. Ele sabe, por ouvir contar, que há muitos anos reinava aqui uma grande quietude plácida e verde, com bosques de abetos, e faias, e carvalhos, vinham os homens com lanças e dardos e corriam atrás dos gamos que se aventuravam nos prados. Então eram os rios claros e bucólicos, desciam das montanhas distantes e passavam tranquilamente, e traziam nas águas peixes prateados que os homens apresavam em armadilhas de cana, nas margens baixas. Para lá da floresta semeava-se o trigo com arados antigos, e nas hortas, por trás das casas de madeira, as galinhas guardavam os filhos das ameaças do gavião, abrigadas aos caules de ruibarbo e de funcho.
Um dia, quando as cidades começaram a crescer e a vida dos homens apareceu com exigências novas, um artesão que passava no antigo vale glaciar encontrou sinais de minério de ferro à superfície. E não demorou a chegar o inferno vivo dos regatos de gusa a arder nas fundições, e a fumarada dos altos-fornos, e o cantar matutino do martelo no ferro quente das forjas. Encontraram-se na orla da floresta depósitos de linhite, e logo se rasgou a barriga da terra para os explorar. E construíram-se fábricas para albergar as máquinas de volantes aterradores, que engoliam o carvão e vomitavam pequenos briquetes negros, logo levados por vagões apressados a incendiar as caldeiras das máquinas a vapor. E surgiram na paisagem, riscando o céu e perturbando os deuses que habitavam nos bosques, grossos cabos negros que levavam para longe uma energia nova e misteriosa.
Os homens dormiram cansados mas contentes, por acreditarem no progresso. E a terra foi-se cobrindo desta poeirada escura, gerada no ventre das fábricas, tão fina e tão subtil como areia de ampulhetas, a marcar a galopada frenética das máquinas.
O homem olha, à sua volta, o manto negro, regurgitado pelas chaminés ao longo de séculos, dispersado pelo vento sobre as terras e os caminhos, sobre os jardins e os telhados das casas, e as sepulturas dos mortos. Debaixo deste manto viveram gerações que produziram riquezas, modelaram o mundo e alargaram o saber dos homens. Nesta mesma fábrica trabalhou o seu pai, logo a seguir à guerra. Foi uma canseira pôr tudo a funcionar depois de tanta destruição, contava ele. Mas havia os direitos da vida depois de tanta morte, faziam falta o calor e a energia que as cidades engolem para serem habitáveis, à custa de privações e sacrifícios a vida recompôs-se e a produção recomeçou a sair.
Mais tarde chegou a sua vez, o homem entrou na fábrica e nunca trabalhou noutro lugar. Moldaram-se-lhe os gestos ao ranger das gruas, ao matraquear incessante das válvulas, e acabou por lhe adoptar o corpo a respiração das velhas máquinas, devorando o carvão que chegava em vagões cobertos de fuligem. De dia ou de noite a sua própria cara era tão escura e cheia de majestade como a das locomotivas que vinham da mina a céu aberto, a galopar na paisagem violentada.
Habituado a cumprir metas de produção, planos quinquenais, emulações proletárias, o homem construiu a sua vida ao compasso infatigável da fábrica. E era para ele um orgulho e uma esperança ver chegar, dia a dia, os camiões que vinham da fronteira, de cidades e países distantes, e faziam fila à espera dos briquetes que deslizavam nos tapetes rolantes.
Mas quem poderá desvendar os caprichos da roda do mundo, ou do interesse dos poderosos? Um dia a fábrica parou e todas as chaminés da paisagem deixaram de fumegar, como coisas inúteis. E o trabalho deste homem é agora arrancar dos alicerces aquilo tudo que foi a sua vida. Deixaram de ter préstimo, ele e as velhas chaminés, foi o que lhe disseram.
Tudo perdeu, de repente, o sentido, por isso o homem ficou aqui sentado, todo o dia, no pequeno quintal. Amanhã há-de ir de novo à fábrica, vencerá o desespero que lhe treme nas mãos, e desmontará, peça a peça, as máquinas antigas, encharcadas em óleo, como quem se desmonta a si próprio. Depois há-de vir o camartelo encarregar-se do resto. E ele talvez receba uma pensão para deixar de viver.
No céu cinzento, por trás da espessura das nuvens, o velho Cronos, o ancião barbudo, vai devorando pacientemente os filhos. E espreita, quem sabe, as maçãs vermelhas que pendem dos ramos, indiferentes ao chuviscar do Outono. São carnudas e frias.