MADONA EM MAUSOLÉU
Na estrada a tabuleta anuncia o Solar dos Brasis, na aldeia chamam-lhe a Casa das Fidalgas. Não sei quem tem razão. Eu fui lá muitas vezes, atraído pela gala das talhas, pela febre das cores a gritar nas madeiras, e a simetria misteriosa das janelas, a fingir horizontes pintados nas paredes. E acabei feito pagão, morto de amores por uma pujante madona de terracota, que escondia promessas carnais num manto azul a esvoaçar. Cheguei a congeminar o caviloso plano de raptar a madona numa noite de inverno.
Nesse tempo era vivo o Gastão, um caseiro que habitava os anexos e olhava pelo conjunto. Fazia bonecos de madeira a canivete, e flautas de cana que vendia aos passantes. Era naquilo tudo a única coisa viva, e queixava-se do IPPAR, e das águas no telhado, dos roubos das imagens e da segurança escassa. Levava-me às palmeiras do passal, à mãe-de-água de pedra à beira do ribeiro, numas terras que o fidalgo arrematou, à vinda do Brasil. Tinham sido confiscadas a um marrano qualquer, pela Santa Inquisição.
Subíamos depois ao belvedere e mostrava-me o salão de honra, nos altos do torreão. Pendiam do tecto caixotões de santos, a ameaçar ruína, alguns a desabar por causa das humidades. Finalmente levava-me à capela, onde a santa, à minha frente, se desfraldava num pedestal.
Depois contava-me a história. Que D. Luís se foi ao Brasil, ao ouro, no tempo dele. Que era capitão da armada real, e provedor dos quintos de el-rei em Vila Rica de Ouro Preto, nas minas de Sabará.
- O muito e o pouco passava-lhe pela mão! Era de el-rei, mas quem parte e reparte... - sugeria o Gastão, sem avançar.
- D. Luís tinha em casa uma escrava da Mina, por quem se apaixonou. E trouxe, no regresso a Lisboa, a mulatinha Angélica, que vemos nestes quadros. "Mercê que fez Nossa Senhora, no Instituidor, vendo-se em perigo de morte no sertão do Brasil, em jornada de 900 légoas às Minas do Ouro". E lá estava um dragão pintalgado, a soprar fogo ao fidalgo em terror. "Milagre que fez Nosso Senhor... no mar da Bahía...". E era um barco a adornar, a vela já perdida, o fidalgo no convés a amparar a mulatinha.
- D. Luís era de Santa Marta de Penaguião. E ao ver-se em aflição, prometeu erguer à Senhora da Penha de França esta capela. Ao lado do solar, e dum convento franciscano que não chegou a existir. Onde o meu cavalo parar, aí o santuário hei-de levantar! O cavalo é que escolheu este lugar! - concluía o Gastão.
E mostrava-me, num livro dum letrado, que o fidalgo tomara ordens sacras ao fazer sessenta anos, que a mulatinha morreu sem descendência no ano em que assaltaram a Bastilha, e que o Solar dos Brasis é testemunho da boa aplicação em Portugal do ouro de Sabará. Eu sempre vi neste lugar um túmulo, entre muitos, onde embalsamaram Portugal. Mas nunca cheguei a dizê-lo ao Gastão.
Não sei se os caixotões acabaram por cair, ou se a madona continua lá, a voar no pedestal. Quando há dias voltei ao Solar dos Brasis o Gastão tinha acabado de morrer. E o IPPAR pôs um telhado novo nos altos do torreão, e trancou as portas e as janelas com grades de ferro chumbadas na ombreira.
Fica-me a pena de não ter assaltado a madona, numa noite de inverno. Mas ainda bem que o Gastão foi embora, sem saber a verdade.