sábado, 21 de fevereiro de 2009

Portugalmente (27)

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O viajante fica duplamente compensado. A um lado porque desfez o seu enigma, e a outro por ter achado em Salvador uma fantasia que pede meças à sua. Embora já tenha o dia ganho, decide explorar o filão. Salvador há-de conhecer a história do assalto à quinta do Ferro, o viajante ouviu versões desencontradas, gostava de tirar uma prova real.
- Real ou não, temos a prova perto! Quer ir lá ver?
Sem dar parte de fraco, Salvador acelera a passada, que a violência deste sol já não é para os seus costados. Apoiado no bordão conduz o viajante até ao cemitério, onde sobressai o mausoléu das famílias da quinta do Ferro, encostado a uma parede. É uma imponente mastaba de pedra, em proporção do que se vê, guardada por uma grade de ferro antigo, e tem à volta um canteiro onde devia haver flores. Um fuste central sustenta, lá em cima, um anjo velador.
- Aconteceram esses casos nos tempos do rei dom Miguel, que outra coisa não deixou senão a descendência, ainda hoje à espera de se sentar no trono. E tem aqui os olhos que assistiram a tudo!
O viajante não vê olhos nenhuns, mas deixa-se ir na fantasia. E o que julga entrever, num quadro de fumo e trevas, é uma fuça estarrecida, de pânico e de espanto, a do antigo Ferro marrano, quando o levaram à fogueira.
- Eram tempos danados, esses, com o país dividido em dois partidos, que se chacinavam com furor igual. Mal comparados, e mudando as maneiras, fazem lembrar os dias de hoje. O que reinava por estas províncias eram os bandos de guerrilhas e as quadrilhas de ladrões, qual deles o mais raivoso e justiceiro, se o do Espadagão, ou o dos Marçais, ou o do Traquina, ou o dos Brandões, ou o dos Leais, ou o do Trancaria, ou o do Cachapuz. Havia mesmo um batalhão sagrado, feito só de sotainas e ódios ao jacobino, que usava a cruz para fazer pontaria, mas disparava zagalotes de mosquete.
O viajante centra a sua atenção numa placa de metal onde ficou registada a linhagem de Domingos Saraiva, a quem vieram a caber os despojos do desgraçado Ferro. Toda ela aqui jaz, debaixo destas pedras. Há nela morgados e viscondes, e entre eles está Maria José, a dona dos olhos de que Salvador falava.
- A fidalguia inteira por aqui apoiava os miguelistas, pois natural, ainda hoje ninguém mexe em equipa que prometa ganhos. E de todas a mais assomadiça era a gente da quinta, descontando agora o velho patriarca, que há poucos dias entregara a alma ao criador. Lá em casa tudo era tristeza e lutos, e visitas só de condolência. Mas nem isso amoleceu o peito aos quadrilheiros.
- Caía a tarde e as crianças desceram ao jardim, era o António Saraiva e a Maria dos Prazeres, que o senhor aqui vê. À boca da noite, foram eles os primeiros a dar conta da numerosa cavalgada, e da restante peonagem que descia a carreteira e foi tomando posições de cerco.
- Mais tarde não faltou quem pusesse a boca nos Marçais de Foz-Côa, mas nunca se tirou a coisa a limpo. Eles eram malhados até à quinta casa e tinham as costas largas, não custava nada guardar o proveito e passar-lhes as culpas. Para tornar tudo mais convencedor, até lhes desenharam um trajecto no mapa, e acusaram-nos de terem varejado a Canameira, e a quinta da Veiga, e o solar do morgado do Rabaçal, no caminho para cá.
- Mas a meu ver não houve no assunto políticas nenhumas. Os tempos eram de rebaldaria, e quem se apresentou na quinta, nessa noite, vinha apenas ao cheiro das pratas e das baixelas. Assim mesmo foi dito que havia gentalha de Trancoso misturada na quadrilha. E a partir de então, com justiça ou sem ela, de algumas casas se começou a dizer que cheiravam a ferro. Claro que se desconfiou da criadagem, houve mesmo quem pusesse a boca no padre capelão, um desaforo. Fosse ele como fosse, quem ali se mostrou não só conhecia bem o cheiro às pratarias, mas também lhes sabia o covil.
- Primeiro arrancaram o badal à sineta. E depois de forçarem as portas, veio ter ao salão um mascarado, todo salamaleques e atenções. Fez o sermão da ordem a apaziguar o adjunto, e a todos recomendou sossego para salvarem a pele, e a conformidade requerida pelos alvoroços do mundo. Entretanto a peonagem vasculhava baús e gavetões, foram-se ao bragal do falecido e puseram-lhe a cote os camisotes e as ceroulas de finíssimo linho.
- O mascarado foi pedindo à dona da casa as chaves dos contadores, dos cofres de jóias e valores, dos arcazes de sedas e damascos. E entregava cada uma ao ajudante, mascarado igualmente, a quem despachava lá para dentro, com instruções precisas. Afora isso os quadrilheiros não molestaram ninguém, nem patrões nem criadagem. E andaram nisto até à madrugada, a máscara a dar ordens, dona Maria José a obedecê-las, e a peonagem a vasculhá-las. Só quando chegou a altura de abrir o segredo das pratas da família é que a dama não cumpriu. Nunca lá tinha entrado, nem lá iria agora! Mas o mascarado não perdeu o concerto. Escolheu ele próprio a chave e mandou violar o esconderijo.
- No fim a retirada foi mais atabalhoada. Não que houvesse ali um qualquer perigo, toda a quinta é um ermo. Mas só bestas de carga eram várias dezenas, a carrejar o espólio de muitas gerações. A partilha do saque foram fazê-la num pinhal, para lá do Távora, numa mata das Arnas, e consta que houve então certo alarido. Mas tudo se apaziguou, e nunca houve denúncias nem acusações.
- Foram casos que deram brado durante muito tempo, ainda hoje estamos aqui a falar neles. Mas a dona Maria José, que o senhor aqui vê, é que nunca se resignou. Dizem que só esqueceu quando finalmente aqui veio parar.
O viajante dá-se por feliz com a sua sorte, já ouviu o que queria, e mais bem explicado do que imaginava. Dá uma volta ao redor do mausoléu, e fica a pensar na paixão que tanto afligiu a dama da quinta do Ferro, e só em Rio de Mel achou descanso.
- Dos tesouros da quinta, e do nome desta terra, é bem caso para dizer, água os deu!
A risada de Salvador atesta a sua concordância. E ao viajante, que já está de partida e não quer ser indelicado, falta-lhe o descaro para juntar ao rol a garrafa dos diamantes, que aqui tinha lugar, porque também água a levou. Deixa Salvador entregue às lembranças antigas e despede-se de Rio de Mel, com a vaga impressão de o não ter encontrado. Para tudo ficar dito, desconfia mesmo que este lugar lhe escondeu alguma coisa. Hesita entre o Vasques Coutinho e o romeiro afortunado, e não atina o viajante por que lado arrematar.
(...)