sábado, 7 de fevereiro de 2009

Tributo antigo

Daqui desta janela vejo o mundo, o pouco ao menos que dele se deixa ver. Como o padre que lá vai, cambaleando, a caminho da paragem da carreira. É segunda-feira de Páscoa. E todos os anos, na segunda-feira de Páscoa, acontece a mesma coisa. Sua reverência sai de casa, vermelhusco e azamboado, a arrastar o corpo mole até se desfazer dele num banco da velha Dodge amarela, que passa aí ao meio dia. Vai à vila, dizem as línguas más, sossegar a consciência junto do arcipreste, e confessar o pecado da bebedeira pascal. É assim todos os anos, toda a gente já se habituou ao ritual, e olha o vulto hesitante do padre com tolerância ou desprezo, conforme o caso de cada um.
Já é sabido, depois da missa lá vem o almoço, e pelas três da tarde começa o compasso. As primeiras casas são as da rua de cima, atrás da fonte, têm os homens que se adiantar para não serem apanhados em falso, seria grande heresia. Nas outras pode o dono ficar mais um migalho no adro. A função só termina já noite cerrada e o padre vai alargando os seus vagares, à medida que os copos de vinho fino se lhe acumulam no estômago, e a litania das bênçãos dá em sair-lhe mais empastada da garganta.
Vai o da campainha lá na frente, um garoto qualquer, a chocalhar o badalo por tudo e por nada, a anunciar o movimento. Depois vem o da cruz, homem maduro, de opa avermelhada. Entra sisudo e oferece a prata em volta aos beiços da assembleia, ainda não terminou e já o padre está chegando, a casa é térrea e mal iluminada, e o denso vulto atravessando a soleira mergulha o adjunto na obscuridade. Há saudações canónicas ao bem-estar de corpos e ao sossego de espíritos, aleluia aleluia, toda a gente sabe de cor o salmejar mas apenas o padre o recita e alguns o tomam a sério, não quer vossa reverência um copo de vinho fino, uma fatia do nosso pão leve, Maria traz lá uma cadeira do quarto.
Discreto entrou o que recolhe os donativos, ora a moeda presa nos beiços duma laranja, ora o óbolo escondido num envelope fechado, di-lo-ão mais generoso, inventam os homens estas cerimónias e nós ficamos ao certo sem saber. Traz o rapazote um pequeno saco de veludo encarnado, de vez em quando toma-lhe o peso com ambas as mãos e alegra-se de verdade, sem compreender porquê, à medida que o vê ganhar corpo e substância. O saco tem laços de garrote, a cada função compete a conveniente palamenta, que a igreja não dispensa. E estes são tempos de ocorrência abundosa de meios, os humanos e os outros, vasto e submisso é o rebanho, não é o que se verá daqui por uns anos, um dia lá chegaremos.
Este do saco há-de ser rapaz de confiança, sabido como é dispor o demo de muitas artimanhas e vastíssima experiência em malas-artes. Ora desviar para bolso próprio o que à santa igreja mais convém seria perdição do pecador e grave dano do padre. Por isso escolhe sempre um moço de família para a função. Desde há uns anos, para evitar as tentações mais correntias, vem-na ele reservando a um rapazito que tenho aqui na escola, não sei com que proveito, do padre falo, é claro. Por enquanto é ele atilado quanto basta, na aula pelo menos, quanto ao resto não porei as mãos no lume. Consta que o padre o tem encomendado para seguir o seminário, única forma de fugir à fatídica enxada, talvez venha ele a escrever estas histórias que por aqui hoje acontecem, um dia Deus o dirá.
Casas há em que o padre se demora mais um pouco, e não será do calor da recepção, que em todo o lado é cabonde alvoroçada. Talvez seja do conforto da casa, ou tão só desta sabida conivência com as famílias mais gradas, os séculos ensinaram à igreja tais diplomacias, só as não vê quem não quer, a pobreza e a humildade pertencem ao sermão, e a igualdade só no céu a encontraremos, em na havendo. Sentou-se agora o padre num velho canapé, ajeita-lhe a dona da casa as almofadas em volta das cadeiras, ao menos tem o pobre, neste dia, direito a cuidados de mulher. Estende sua reverência um pouco as pernas, já entorpecidas do vasto caminhar, enquanto corresponde à geral alegria dos rostos e à particular disposição do dono da casa, não há como este júbilo no coração dos humildes. Tirai às gentes estes rituais e a vida será logo um vale de lágrimas, sem interregno nem sentido, um chapinhar na lama dos caminhos, porém hoje o mesmo Cristo ressuscitou dos mortos, aleluia aleluia, vai mais um copinho antes da partida, senhor abade.
Cá fora vai a tarde escurecendo, mal se distinguem ao longe os campos de centeio, verdes cabeleiras a ondear ao vento, nem se define já com precisão a cor dos lilases a espreitar às paredes das hortas, ficou só o rescendente aroma a espalhar-se por estas fragas do Cabeço, sete casas nos faltam antes de recolher à sacristia e arrumar a palamenta, aleluia aleluia.
No fim do compasso, cansado o corpo de tais trabalheiras e fatigada a alma destas desobrigas, recolhe o padre em casa toda a quadrilha. É o momento do caldo verde e do galo capão em molho de vilão, pois que se pode outra vez comer carne lá estão as mãos da velha cozinheira afeitas ao pitéu. Exultam os estômagos da rapaziada, que todo o sacrifício foi do galaroz, mas cada um tem seu destino e hora, e os deste há muito eram conhecidos, só ele talvez os não soubesse. O padre pôs-se à vontade, libertou finalmente os pés nas chinelas de trapo, tira o cabeção e abate as defesas perante o garrafão de tinto. Isso vem a produzir momentos de risada aberta e sã camaradagem, parece isto uma santa irmandade primitiva, e acaba por levar a um pesadiço torpor, rebolam entarameladas as palavras nos beiços orlados de gordura, que a gente é de gesto rude, e já as ideias se enovelam, parecem tropeçar umas nas outras. É tempo de deixar aberto o campo ao sono, amanhã voltaremos a ver-nos, quem sabe se ainda nos lembraremos disto.
(Continua)