terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

da capo - 23

PAÍS PROFUNDO
Quem vai ao Porto vem do sul. Chega à margem do rio e dá com o Porto do outro lado, húmido e escuro, como as pedras antigas. A cair devagar pelas escarpas. Fizeram-no assim para durar muito, como os casacos velhos. Já não agasalham grande coisa, mas ainda servem.
Um poeta chamou-lhe o arrabalde de si mesmo, e quem o fez assim nunca mais olhou para ele, até chegar, em 2001, a Capital da Cultura. Algumas ruas ficaram transitáveis.
O Porto é o retrato mais inteiro que se pode fazer de todos nós. Cabemos todos lá. É o país integral, tirando os arrebiques. Ao pé dele um Rossio qualquer, um largo em Santarém, uma Albufeira de betão, são curiosidades modernas. Imagem dum país de equívocos ou mitos, o Porto junta aos mitos os equívocos. O vinho, que é da casa, vem todo do Pinhão. Ufana-se de ser a terra do trabalho, quando apenas esbraceja a ver se mata a fome. Quando começa o verão solta no ar balões de mecha a arder, a ilustrar o S. João e a incendiar pinhais. A cidade mais paroquial do mundo, onde o Mozart é muito conhecido porque já jogou nos Lampiões, exercita o efémero em Serralves, vai a concertos minimais no Rivoli. E mandou fazer uma Casa da Música, multiplicando por três os prazos de entrega e por seis o orçamento. Ganhou com ela um vistoso meteoro, onde alternam lanços de escadaria com firmamentos vazios.
A zona histórica do Porto foi, há anos, património mundial. E agora, que já não é português, desaba o património nas escarpas. O resto da cidade antiga é um campo devoluto, a apodrecer aos poucos, a tresandar a bafio e a óleos de cozinha requentados.
Toda a beleza concentrada do Porto não enche um pátio de Évora. Mas o lugar mais nobre da cidade, que são os Aliados, faz de largo das camionetas. A roncar, ao ralenti, à espera do horário da tabela.
Se os portugueses merecessem Portugal, aproveitavam o sotaque do Porto, o único com marca na ourela. Levantavam-se cedo e iam a Lisboa, tirar a capital da cama. É que assim, nem o rio mais homem deste mundo resiste a esta cidade. Quando lá chega encolhe-se, mete o rabo entre as pernas e safa-se para o mar. Como ribeira qualquer do sexo fraco.