sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Portugalmente (23)

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A tarde já vai a meio quando o viajante, um tanto retemperado, torna à estrada de Lamego. A sua intenção é voltar à direita, na direcção de Trancoso, para lá vai o seu destino. Antes, porém, há-de ir à procura duma estação de serviço, para os lados da Lezíria. Ouviu falar dela e gabar-lhe o desempenho, ali entre pinhais, no cruzamento da Cunha. O seu velho companheiro de estrada tem exigências de óleos e de valvulinas, dói-se de artroses várias. E o viajante, por sobre o afecto que lhe tem, está a ficar tão velho como ele, sabe do que os velhos precisam. Por isso não lhe falta com uma boa lavagem, e massas consistentes, e banhos de parafina.
Antes mesmo de entregar o seu carro aos cuidados do mestre lavador, acha-se o viajante no meio dum ruidoso adjunto, que espera um transporte, pelos vistos atrasado. É o que se conclui desta vozearia, destes inconformados gestos, e das pragas que fervem no ar. Terá o grupo umas quinze pessoas, as mais delas mulheres já maduras. Têm ancas largas, e seios fartos, e ventres salientes, comem farnéis e fumam e praguejam, em sotaques estranhos, como se estivessem numa caserna. Esta veio de Ovar, aquela de Ílhavo, aqueloutra de Leça, há gente de Viseu, da Pesqueira, de Moimenta, e esta família inteira de quatro veio do Ladário. Há jovens que riem do nada, e homens adultos, que são dois, e bebem a sua cerveja enquanto esperam. Elas agitam-se, nos fatos de licra que lhes moldam as formas, falam aos filhos nos telemóveis, lembram o gato que vai morrer à fome, e recomendam cuidados a uma avó, com a pasta da escola.
Estão todos à espera dum transporte que vai levá-los para a Suíça, onde têm trabalho por três meses, em hotéis, em cozinhas, em serviços domésticos, e nas quintas agrícolas dos Alpes. Alguns vão à apanha dos morangos, e quando estes acabarem há-de vir a colheita das maçãs em França, e as vindimas na Rioja, e antes disso as estufas do melão na Andaluzia. Nesta nave, que é estação central de chegadas e partidas, amontoam-se sacos de batatas e máquinas de lavar, frigoríficos velhos e garrafões de vinho, caixotes de cartão e atados de roupa, e tubagens enroladas, e cortadores de relva, e máquinas estranhas a que faltam pedaços, e jantes de alumínio, e sacos de viagem, e coisas que este viajante não é capaz de definir.
Alguém lhe falou, lá atrás, nas campanhas da fruta. Mas uma coisa é ouvir alguém falar, e outra bem diferente é ver, e reparar. E o viajante já não sabe se veio a uma estação de serviço, a cuidar do seu carro, ou se foi parar a um cais de Belém, donde partem as naus da Índia. São portuguesas todas, estas vidas. Foram ontem lastro de caravelas, hoje lastro são das sociedades desenvolvidas, amanhã serão lastro doutra coisa qualquer, vidas é que não parecem ser.
O viajante olha à sua volta, e não exagera se disser que fica angustiado. Depois de séculos por trancos e barrancos, bem gostava ele de pensar que Portugal regressou à Europa, e assumiu nela um papel, como toda a gente. Não contava achar agora aqui este rebanho transumante, amontoado num cais, à espera de partir no convés duma nau.
A tarde já vai longa quando o viajante recebe o seu carro, tão fresco e luzidio como se fosse novo. Segue devagar pela estrada, à sombra duns freixos velhos, de janela aberta à brisa morna, e o peito serenado por não ter de partir às campanhas da fruta. Cruza-se com um furgão vermelho que anuncia VOYAGENS, vem carregado de gente e arrasta na cauda um atrelado cego. Quem vai ficar contente são as mulheres de Leça, de Viseu e de Ovar, que estão impacientes por partir, e mais ainda estas que regressam, e acabam de chegar. Quem não fica satisfeito é o furgão. Porque é só render-se o condutor, trocar umas por outras as bagagens, mudar de passageiros, e voltar pelo mesmo caminho. Vai-se num pé, vem-se noutro, numa roda-viva, nem tempo há para mudar as valvulinas.
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