quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Portugalmente (25)

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Bem queria o viajante satisfazer sem demora o bicho da curiosidade, mas não é verdade que Deus ajuda quem mais madruga. O viajante madrugou, e a meio da manhã já percorreu a rua Longa, e a da Carreira, e a do Gorgolão, e a do Combarrinho, e a do Pendão, e as outras todas. Foi mesmo meter o nariz na rua das Laijinhas, betesga minúscula entre velhos tugúrios onde hoje ninguém passa, e que não tem mais préstimo senão estar ali. É uma testemunha dos tempos, e já não é pouco.
Encantado com os nomes das ruas, que guardam o sabor de falares muito antigos, o viajante ia à procura dum rio de mel e não deu com ele. Não lobrigou sequer um rio. Num pequeno largo encontrou a taberna velha, com os seus postigos de batente, hoje parados, há muito que não dão passagem a ninguém. Quem sabe se ruminando em convívios antigos, ou passadas alegrias, estavam dois paisanos sentados num maçadoiro de pedra, mal lhe devolveram os bons-dias. Mas acabaram a dar-lhe notícia da casa do padre santo, além desabitada, ao fundo daquela rua. Um padre santo! O viajante fica a pensar nestes exagerados modos de falar. Olha a casa de pedra, sem ninguém lá dentro, que os santos acabaram. Ou acabou-se o mundo em que eles tinham lugar.
E é nestes indecisos pensamentos que o viajante encontra a dona Glória a traquinar num pequeno quinteiro, enquanto apazigua um cadelito, que insiste em empinar-se às pernas do intruso. Este pediu-lhe inculcas sobre o nome da terra, assim tão pouco visto e tão cheio de promessas.
- Sempre lhe ouvi chamar assim, dês que tenho lembrança, a gente sabe lá!
O viajante pensa que o mesmo responderia o cadelito, se não estivesse tão zangado. E conclui que o topónimo há-de ser muito antigo, a avaliar pela idade da dona Glória.
Desarmado e perplexo, fica o viajante sem saber por onde prosseguir. Esperava encontrar uma curiosidade interessante, mas agora vê-se de mãos vazias e não sabe o que fazer. Já viu a igreja matriz, com três ventanas sineiras e uma torre que lhe pareceu inacabada. É uma fábrica ampla, de imponência bastante, embora sufocada pelo casario. Mas não pôde ver o que está lá dentro, porque não descobriu maneira de entrar. Já viu que as ondas da emigração não provocaram no corpo desta aldeia as mudanças radicais que o viajante já tem visto. A geografia dela é a que sempre foi, e não se alterou o desenho antigo das ruas, cuidadosamente empedradas. Pelas marcas dos esgotos, descobre o viajante que esta obra foi feita antes de ter chegado a enxurrada dos fundos. É um caso notável e muito pouco visto, ele haverá uma razão para isso, quem sabe se um zeloso presidente da junta, um compadrio político, o viajante não o sabe. No mais, a aldeia conserva o núcleo original, e as construções havidas, que são muitas, fizeram-se no seu interior. Apenas além, ao fundo da rua do Ribeirinho, cresceu uma zona moderna, com chalés que não escandalizam, e um centro social a merecer aplauso, assim visto de fora.
Desarmado como ficou, e à falta de informação mais viva, o viajante resolve ir consultar os seus cadernos, que é onde devia ter começado. Decide voltar ao princípio e dirige-se ao carro, que ficou à espera estacionado ali no largo, em frente da capela de Nossa Senhora do Bom Sucesso.
Este é o terreiro mais ancho e dilatado da aldeia, e dum adro assim desafogado é que a igreja matriz lhe pareceu muito precisada. O viajante não sabe quando ela foi construída, nem conhece a idade desta capela. Diz-lhe a imaginação, e não sem lógica, que nalgum tempo já foi aqui o adro da aldeia, talvez o campo santo, em volta da capela. O cemitério moderno ainda hoje fica ali ao lado. E a matriz, que terá vindo mais tarde, acolheu-se onde pôde, e lá ficou a respirar a custo, afogada entre as casas. O viajante põe-se a cogitar, e conclui que só é um bom pastor o que mantém debaixo da mirada o seu rebanho inteiro.
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