domingo, 8 de fevereiro de 2009

Tributo antigo (cont.)

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Mas o melhor é que nos não lembremos. Já lá vai a velha Dodge amarela, uma chiadeira de molas nos poços do macadame, será do peso do padre, Santa Eulália o acompanhe. Tem ele um automóvel aí, numa garage improvisada lá para os fundos do povo. Para o que lhe havia de dar, um dia apareceu aí com o animal, espécie de cavalgadura sem ferraduras, preto retinto, com dois enormes olhos de sapo no focinho, a encimar uma larga dentuça de varetas de metal, não sabe a gente se vai a morder ou se vai a sorrir. Foi uma exaltação na garotada, e tão grande era a nuvem de pó na estrada como a fumarada escura que lhe escapava das tripas ruidosas. Mas o padre, ao que consta, não se ajeita bem com a alimária. Um dia destes quis pô-la ao sol, e só à custa de muita força de braços ela soube mover-se. Parece que os ratos já tinham aproveitado o estofo dos bancos para fazerem criação, quem vai chamar-lhes parvos. Em todo o caso, mesmo que estivesse o animal disponível para a caminhada, dez quilómetros para cima com outros tantos para baixo, não no estaria hoje o padre, com a celebreira que ainda arrasta.
Bem vistas as coisas, tolerância para com ele não me falta, coitado. Uma mulher é diferente. Mas não se enterra assim um homem sozinho numa aldeola que nem vem no mapa, sem ter quem o use e o cuide, à sua volta uma caterva de aldeãos sujos e miseráveis, crendo no céu e no inferno como lugares físicos e verdadeiros, triste rebanho bíblico a viver no esterco com ninhadas de filhos, e a pedir fiado, para se alumiarem, meio litro de petróleo que chega no carrão, de mês a mês. Fica o homem confinado entre sacristia e altar-mor, num gineceu de bafio, obrigado a acreditar nas trapaceiras que infantilizam mais a desgraçada gente, a prometer-lhes a eterna ventura no além, para que eles aceitem resignados a miséria em que vivem, para que eles continuem a suportar a canga do servilismo até ao último sopro, os bens deste mundo não são dos bem-aventurados, porque deles é o reino dos céus e só esse contará. Levantam-se, noite ainda, e fazem troar pelas calçadas os tamancos ferrados de pau para acudirem à rega da horta de que se alimentam, para sacharem o milho que tratam às terças com o dono da terra, para segarem, no corgo, a erva da vitela que trazem ao meio-ganho, para cevarem o porco que hão-de levar à feira de Agosto, e de que esperam algum sobejo depois de pagar a renda, depois de entregar a côngrua, depois de comprar uns farrapos aos filhos nas tendas ambulantes.
Levantam-se gelados de frio para apanharem as castanhas nos soitos do senhor conde, de que hão-de receber a mais minguada parte, e lá vão, ainda a manhã anda em Castela, a picareta às costas e o gasómetro de acetileno na mão, a caminho das minas da serra, as botas de pneu já na última e os pés enterrados na lama das galerias, um dia, que ainda vem longe, vão todos empenhar-se e pagar a um passador que os leve daqui para longe, hão-de passar a fronteira a salto, de noite, como ladrões de quinta, hão-de cruzar a pé serras geladas fugindo aos carabineiros, porque essa há-de ser a única forma de escapar a esta miséria. Por enquanto levantam-se cedo, ainda meninos, e vão guardar as ovelhas merinas dum senhor doutor por esses montes, pobres enjeitados cujo fito maior é escapar à fome, é poder adormecer à noite sem o relógio da barriga a dar horas, conhecem as chalanas pelo nome e pelas marcas da pelagem, e levam de farnel um bocado de pão e figos secos numa meia velha da patroa, e lá vão, a sonhar com os vermelhos de anilina com que hão-de pintar o rebanho em chegando a festa da Senhora da Saúde, hão-de dar três voltas à capela com o carneiro enfeitado à frente, a cabeça do rebanho irá juntar-se à cauda e então há-de o pastor sair da roda e ver o gado a rodar, como tonto, à volta da santinha que o guarda das doenças, e há-de ser então tal padre, tal pastor, nem sempre a comparação nos sai assim tão exacta e percuciente, com perdão da palavra.
Depois, em chegando Junho e o calor apertar, há-de o manajeiro marcar o dia do encontro no Chafariz do Vento, e lá irão por esses caminhos os homens e as mulheres, estropiada hoste que assim vai à conquista das searas do Ribatejo, do trigo ou do arroz, se acaso maleitas e sezões a não dizimarem primeiro. Mas temos que ver ainda se o pregador põe a chorar ou não o mulherio na missa da santa, caso em que se dará por bem empregue o dinheiro que ganhou, vede, irmãos e irmãs, como sois indignos da misericórdia de Deus, porque chafurdais no pecado e mantendes cerrados os ouvidos à voz benigna do Senhor, e cultivais o orgulho e a soberba quando devíeis ser submissos e obedientes diante da palavra da Santa Madre Igreja e das autoridades, pois não há em todo o mundo um jardim de paz e de ventura como esta nossa pátria eleita pela Virgem para sua morada na terra, e tudo isto é obra e sacrifício dos sábios governantes que Deus nos mandou e que vós não respeitais cabonde, vede só o que vai de guerra por esse mundo, mormente a desgraça dos nossos vizinhos espanhóis que Deus, na sua infinita misericórdia, acabou por salvar aniquilando os vermelhos, os iníquos de entre eles, e por isso três vezes amaldiçoado há-de ser aquele que não fechar os olhos do corpo e da alma às tentações e às falácias do mundo, e aquele que praticar a soberbia e a vaidade, e a ambição e a inveja, pois bem sabeis, irmãos e irmãs, que Deus desprezará o primeiro que na fila se colocar para receber no dia fatal os presentes divinos, e lhe pegará pelas orelhas, e o expulsará para o último lugar da divina quermesse.
Fica o homem, coitado, preso no que diz, condenado a acreditar naquilo que lhe resta, a sua própria rotina, e na repetição mecânica dos indecifráveis latinórios de baptizados e enterros, em verdade, em verdade vos digo, meus irmãos, que já não sei se vos digo aquilo em que acredito, ou se creio, afinal, naquilo que vos digo. Que um homem há-de cansar-se duma vida de encenações. Sabemos, bem entendido, que todos os rituais são importantes para organizar as vidas onde mais nada existe, e tirá-los às pessoas é deixá-las à solta, num escuro vazio. Mas também é verdade, quando a prática tanto se distancia da realidade, que em certo momento perde a retórica todo sentido e o ritual toda a eficácia. Fica apenas um balão vazio, que vitimará o mesmo encenador. Por isso eu compreendo o pobre padre, que se adormece no vinho, outros descambarão em práticas mais inadequadas, quem sabe se mais humanas.
E lamento o que há dias aí se passou no enterro duma velhota, que nem todos os homens são pacíficas ovelhas no redil do Senhor. O padre, que não podia adivinhar-lhe o passamento, apanhou nessa tarde uma bebedeira de caixão à cova, deixem que passe a coincidência involuntária. E, ao apresentar-se na igreja para encomendar a defunta, deu em recusar-se-lhe o palavrório do responso, o padre não atinava duas com duas, engrolada a língua no sarro da vinhaça. O burburinho ganhou corpo, vieram os maçónicos da venda, todos a ver qual era o primeiro a chegar-lhe a roupa ao pêlo, paramentado e tudo, com a estola, embora, às três pancadas. A defunta acabou por regressar ao tugúrio donde veio, e foi tal o alevanto que ninguém se dispôs a levá-la ao cemitério, com o padre naquele estado. Até que alguém agarrou nela às costas e lá foram, bem encomendada não terá descido à terra. Com mais sorte andou o padre que teve quem o guardasse, e por ele pôs mão até correr por dentro os ferrolhos da porta.
Não ficam bem tais maneiras, a meu ver, nem o povo recebe bons exemplos donde eles podiam vir. Por mim, cumpro o meu papel sem abdicar. Nunca pedi ajudas a ninguém para ir abrindo estas cabeças rudas, para os obrigar a lavar os pés nem que seja nas lajas do ribeiro, e para deixar nas mãos de cada um alguma arma útil amanhã. Mesmo que nenhum deles tenha consciência disso. Se assim não fosse, por certo me havia de acontecer a mim pior que ao padre.