Em Luanda, em 1986, num velho arranha-céus colonial morava Irina, uma mulher redonda e muito branca, que dava lições de Física na universidade. Perto dela vivia Ngo-Diem, que era professor de Matemática e cozia os feijõezitos da soja num fogareiro a petróleo.
Logo à entrada da Ilha, voltada para o oceano, havia uma praia privativa das famílias dos técnicos russos, patrulhada por fuzileiros-navais de kalash engatilhada.
Reclamados pela guerra aos kwachas nos sertões do Kuando-Kubango, tinham vindo de Moscovo quinhentos blindados, que uns barcos descarregaram no porto. Mas a guerra continuava, e os mais deles desfizeram-se em ferrugem nas valetas de picadas infinitas. Eram os ninhos da surucucu, e ninguém veio a saber quem os pagou.
Nessa altura, no Afeganistão, os talibãs abatiam os helicópteros de combate russos com mísseis vindos da América. E cortavam às postas os pilotos que apanhavam vivos, com moto-serras eléctricas.
Irina não podia receber-me em casa, que o comissário do partido não autorizava, por razões misteriosas. Mas um dia eu fui lá visitá-la, e ela ofereceu-me uma fita com baladas de protesto do Vladimir Visotsky. Eram canções escondidas, que ela tinha copiado do gravador duma búlgara, que morava no patamar de baixo.
Eu não conhecia a língua do Vladimir. Mas a voz dele era uma mistura rouca de fumo de cigarros e vodka de batata, que arrepanhava a garganta. Era a voz da estepe russa, decifrava-se com facilidade e eu gastei horas inteiras a ouvi-la.
Mais tarde perdi a cassete de Irina, se antes ma não roubaram. Mas não levaram as canções do Visotsky.