sábado, 22 de outubro de 2011
A choldra
Já duas vezes aqui foi dito, e hoje se volta a dizer, por ser ainda oportuno, verdadeiro e pertinente: o PSD é actor primeiro no palco da tragédia nacional, que não ocupa sozinho.
Desde o final dos anos setenta, em que o país precisava de romper com a medievalidade e definir rumos novos, a história do exercício do poder pelo PSD, e a sua contribuição para as soluções nacionais é uma sucessão de equívocos ou malfeitorias.
O primeiro legado substancial que nos deixou foi a reedição do mito de D. Sebastião, com Sá Carneiro. O tal que ficou na história, não pelo pouco que fez, mas pelo muito que havia de fazer, se não tivesse desaparecido tão cedo. Tudo o que deixou atrás foi a exigência do regresso urgente dos militares aos quartéis, e o desejo de conquistar, como forma de salvar a pátria, uma maioria, um governo e um presidente. Mas as suas cumplicidades políticas foram sempre com abencerragens democráticas do género de Spínola ou Soares Carneiro.
O segundo legado do PSD foi um olimpo de barões, que se foram servindo dum poder que lhe caiu nas mãos e com o qual sedimentaram carreiras, mas não deixaram a sombra dum pensamento útil. Euricos de Melo, Balsemões, Penedas, Ângelos Correias e outros quejandos pimpões inomináveis, uma plêiade de governantes e gestores de empresas, participadas e des-participadas, em que sobretudo governaram as vidinhas.
O terceiro legado foi a enxurrada dos oportunistas e dos gangsters, que floresceu à sombra do impoluto Cavaco, a partir da Figueira da Foz. Era a década dourada, em que o dinheiro europeu chegava com as marés, e em que era vital definir um futuro novo. Mas não ficou dessa gente uma ideia consistente, um rumo a seguir, uma estratégia de vida. Na Educação, na Saúde, na Economia, na Administração, na Defesa, na Cultura, na vida do país não ficou a memória duma luz. O que ficou desse tempo vital foram os escândalos da formação, paga a peso de ouro sendo um faz-de-conta. Foi um fartar vilanagem. Foram as universidades privadas de João de Deus Pinheiro, as Independentes, as Internacionais, as Modernas, as Portucalenses, as Lusíadas… essas instituições de pura caça à propina com cursos de papel e lápis, que defraudaram o país e levaram à certa a juventude. E ficou a herança que nos legaram os Dias Loureiros, os Oliveira Costas, os Isaltinos, os Arlindos, os Valentins, os Duartes Limas, os Sanches, os Coimbras, os Albertos Joões, os Rendeiros que eram às centenas. Tantos eram eles, e tão maus, que o próprio Cavaco os enjeitou. Aplicou-lhes o tabu de um ano inteiro, e no fim abandonou-os na orfandade.
O quarto legado foi o dos maoístas reciclados, dos quais Durão Barroso foi o herói maior. Depois dos serviços prestados à CIA, em tempos antigos, quando era preciso construir o caos e a anarquia,deixou ao país uma célebre frase: enquanto houver uma criança com fome, não haverá um novo aeroporto! Depois escapou-se para Bruxelas, a prestar outro serviço a novos donos.
O quinto legado é o dos aventureiros actuais. Criaram-se os mais deles à lei da natureza nos sertões africanos, onde a vida era servida já feita. Não dominam a língua nem a gramática dela, não têm mais leituras que a da sebenta duma licenciatura em Relações Internacionais numa escola manhosa. Não se lhes conhece outra experiência que não seja a tarimba e a movida nocturna na Jota do partido. Não conhecem o país, nem querem o trabalho de o conhecer, nem precisam de o conhecer para as suas aventuras.
Um dia um dos rapazolas, o Marco António Costa, chegou à Rua São Caetano. Espetou um dedo ao nariz do outro, o Passos Coelho, e disparou:
- Ou tens eleições no país ou no partido!
Lançou os dados e ufanou-se disso, porque o resto foi simples e ficou conhecido. Chumbou-se o PEC4, delapidou-se em eleições um tempo que era precioso. E com o beneplácito dum povo com o poder de análise e a capacidade crítica dum rebanho que passa de focinho rente ao chão, fez-se um governo novo que dura há quatro meses. Contam finalmente com um governo, uma maioria, um presidente, e até com o bónus duma oposição, para pôr finalmente o país na velha ordem antiga. A da penúria geral e da carência, a do desamparo, a da precariedade, a da emigração, a da canga, a dos chico-espertismo, a dos empreendedores parasitas, a das eminências pardas, a dos banqueiros rapaces, a ordem velha de quem manda e a de quem obedece.
Aos aventureiros mercenários do governo novo já resta pouco tempo para as aventuras, ao que se vai observando. Mas ao país ainda menos.