segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Portugalmente (56)

(...)
No seu deambular prefere o viajante estradas secundárias, que são as que melhor mostram o mundo. E foi seguindo por elas que alcançou Aguiar, uma vila adormecida à beira do alto Távora. Tem a mesma população medíocre da Meda, mas carece de qualquer acento urbano e nem sequer produz vinho. Com vagar a foi atravessando, para a não tirar do sossego, até dar com o sobressalto da Senhora do Castelo.
O morro é um lugar antigo. Já existiu nele um castro, e mais tarde um castelejo, hoje sobrevive apenas algum resto duma alcáçova mesquinha. Tem lá dentro uma cisterna de cimento, fizeram-na há muitos anos para distribuição de água e já perdeu serventia. Ao lado da cisterna abandonada, em cima duns pedregulhos, sobreleva uma figura tosca, a imagem perplexa duma santa a abrir os braços ao mundo.
Em redor dos vestígios de muralha estende-se um logradouro baldio, a despenhar-se na encosta. Retoiçam nele as galinhas vadias da vizinhança, tomam o sol uns gatos mandriões, nas escadas dum cruzeiro. Aqui, ali, uns carvalhos anões, duas robínias tristes, uma capela isolada. Ao longe alcança a vista uma pedreira a esventrar uma serra, ouvem-se máquinas a ruminar gravilhas. Há uma coluna de fumo no horizonte, pomares abandonados numa várzea, uma piscina caseira debaixo dum salgueiro, nas costas duma vivenda. É este o desamparo e a inocência da Senhora do Castelo de Aguiar, que em seu sossego estaria, não tivesse a câmara local decidido transformá-la em ex-libris.
O viajante subiu pela direita uma rua entre casas, passou ao lado duma torre antiga. Alcançou o cruzeiro onde dormitam gatos, voltou-se para a cidadela, e lá trepou esforçado uma vereda, até aos braços da santa. Apreciada a paisagem voltou pelo mesmo caminho, e retomou a estrada que deu a volta ao outeiro e já começa a descer. A via tem seis metros de largura. E a acompanhar a descida, à mão esquerda da estrada, segue um passeio de metro.
Porque faltava um passeio à direita, onde a pendente é abrupta, mandou a câmara chamar um paisagista. E logo ele plantou, encosta abaixo, uma centena de metros de passadiço metálico, com dois metros de largura, apoiada em pilastras de cinco metros de altura, a acompanhar a estrada. Com tal cinturão de ferro, iluminada por potentes projectores, a Senhora do Castelo ganhou as proporções dum monumento. E o viajante perdeu uns minutos na visita, mas ganhou muito mais em vertigens alpinas.
Ao fundo da ladeira, num largo mesquinho, sentou-se o viajante à sombra duma olaia. O funcionário da sala da Internet está encostado à ombreira, ao cimo duma escada. Vê-se mesmo que espera um cibernauta que o salve do desamparo em que naufraga. Mas este viajante fica a olhar cá de baixo o viaduto de ferro e nada pode fazer. Outras são as navegações em que se perde, a duvidar do que os seus olhos vêem, a perguntar se andará no seu juízo. Do solitário fica a saber que a câmara local é do mesmo partido há trinta anos, desde que há eleições. E outras coisas que ver em Aguiar, só se for o complexo das piscinas e o estádio municipal, na estrada que além vai.
Lá segue o viajante estrada fora, a queixar-se do sol. Falassem eles e quem mais se queixava eram estes pomares, do desmazelo e da sequia. Que aos munícipes não cabe em Aguiar razão de queixa maior. Só na piscina interior, aquecida em lhe chegando o tempo, cabe metade do concelho. A outra metade tem por sua conta os vastíssimos terraços da piscina de exterior, e os courts de ténis anexos, e os campos de multi-jogos, e um restaurante para almoçar quando lhe apetecer.
O viajante dirigiu-se às hospedeiras de serviço, que eram três na recepção, deu uma volta pelas instalações, e sem surpresa maior as encontrou desertas. Do outro lado da estrada, numa azáfama de ferros, anda um empreiteiro a rematar as bancadas do estádio municipal. É o que lhe está fazendo falta, que já tem um alto muro a circundá-lo, e um verdejante relvado, e as pistas de meio-fundo, e quatro torres de poderosos holofotes, para torneios vespertinos.
O viajante não sabe quanto custa manter umas tais instalações, nem conhece quem lho diga. Por muito esforço que faça, não lhes antevê utentes nem futuro. E acaba a dar razão ao Unamuno, sobre ser Portugal um país de suicidas. Aturdido pela enxurrada dos fundos, que lhe toldam a memória e lhe fizeram esquecer a miséria, diverte-se a construir estes conventos de mafra, enquanto os ingleses compram o vale da Vilariça para as vinhas do seu benefício, os espanhóis se apoderam do montado alentejano e plantam olivais, e os leoneses tomam a seu cargo rebanhos inteiros do planalto mirandês. Em tais contradições deixa o viajante para trás uma Aguiar adormecida. Ainda bem que há um programa a exigir-lhe cumprimento, o seu próximo destino é Celorico.
(...)