terça-feira, 15 de setembro de 2009

Elite delinquente, dum regime marginal, dum estado pária


O facto é surpreendente. Mas ainda hoje há em Portugal espíritos fantasistas, a sustentar que a guerra das colónias estava praticamente ganha, e que os "militares de Abril" foram um bando de cobardes, que entregaram o eldorado ao comunismo internacional.
Já se sabia que Portugal emergira dos destroços do império em situação de naufrágio. Mas ainda não era conhecida a profundidade da insânia a que o regime fascista conduzia o país. Culpou-se Marcelo Caetano de indecisão, que afinal não existiu. A sua solução para a questão colonial era indiscutivelmente militar.
A abertura do Arquivo Histórico Militar e do Arquivo do Secretariado-Geral da Defesa Nacional permitiu aos investigadores Aniceto Afonso e Matos Gomes lançar uma luz nova sobre o assunto.
A partir de 1968, sabe-o bem quem por lá andou, a Força Aérea Sul-africana prestava apoio logístico e de transporte às tropas portuguesas em Angola. Havia helicópteros directamente empenhados em operações, e a Força Aérea Portuguesa tinha ao serviço numerosas aeronaves cedidas pela África do Sul.
Em 4 de Março de 1970, esse tipo de apoio táctico transformou-se numa aliança formal. Numa reunião havida em Pretória nessa data, as delegações militares portuguesa e sul-africana analisaram a situação em Angola e Moçambique. E em face dos fracos resultados obtidos pelo esforço de colaboração anterior, o tenente-general Frazier propôs um plano de defesa para a África Austral, que estabeleça as normas de utilização das tropas disponíveis de forma coordenada e planeada, para fazer face ao inimigo comum. Era o Exercício Alcora.

O aprofundamento da aliança, e o acordo sobre o Exercício Alcora, foi assinado na reunião de 14 de Outubro de 1970, pelo coronel Rocha Simões, da Secretaria-Geral da Defesa Nacional, e pelo brigadeiro Greyvenstein, do Ministério da Defesa sul-africano. A Rodésia de Ian Smith juntar-se-ia à aliança na reunião seguinte, a 30 de Março de 1971. Nessa reunião foram definidos os territórios Alcora, hoje repartidos por cinco estados: África do Sul, Angola, Moçambique, Namíbia e Zimbabwe.
Há 7 actas, de 7 reuniões (duas por ano), alternando entre Lisboa e Pretória. Em Novembro de 1972, em Lisboa, foi definido o conceito estratégico da aliança. As ameaças são o comunismo e o nacionalismo africano. E o objectivo é assegurar a inviolabilidade individual dos territórios Alcora, pela eliminação da subversão. É decidido organizar uma força estratégica constituída por meios aéreos de ataque e forças terrestres altamente móveis, que assegurem uma intervenção oportuna e eficiente. A uma adequada propaganda caberá convencer as nações africanas e o mundo livre de que a sua própria sobrevivência está sendo ameaçada na África Austral.
Em Outubro de 1973 é firmado o acordo entre os Ministérios da Defesa de Portugal e da África do Sul para a criação de uma Organização Permanente de Planeamento Alcora (PAPO). E na sexta reunião de alto nível, em Salisbúria, logo em Novembro seguinte, avançou-se no sentido de um exército comum, com Quartel-General sedeado em Pretória, sob o comando do general sul-africano Clifton.
O QG deveria entrar em funções em Janeiro de 1974. Mas a demora na nomeação dos representantes portugueses e rodesianos atrasou o processo. Pressionada pelo evoluir da situação, a África do Sul assume claramente a iniciativa e os encargos da aliança. E nessa reunião manifesta-se disposta a mobilizar cem mil soldados brancos para as brigadas mistas, prontas para intervir em qualquer ponto de Angola e Moçambique. De Portugal reclamava apenas o empenhamento de algumas companhias de comandos e pára-quedistas.
Em 8 de Março de 1974, o ministério português das Finanças contrai junto do South African Reserve Bank um empréstimo de 150 milhões de rands, para compra de material de guerra.

O governo de Lisboa debatia-se com uma dupla contradição. Enquanto membro fundador da NATO, não podia integrar uma aliança formal com dois estados votados ao ostracismo internacional. E não se vê como conciliar uma tal política, racista e discriminatória, com a doutrina do Estado Novo, de um mítico país pluricontinental e multirracial.
Em 24 de Junho de 1974, a 7ª reunião prevista para Lisboa realizou-se em Pretória, sendo a delegação portuguesa chefiada pelo gen. Bastos Machado. Na situação resultante do 25 de Abril, e instado pelos restantes comparsas, o general afirmou que o objectivo do governo português era obter um cessar-fogo, para negociações com os nacionalistas africanos. E considerou conveniente manter o segredo e suspender quaisquer acções conjuntas, mormente em Moçambique.
Em Maio de 1975 houve encontros em Lisboa, para analisar a devolução de grandes quantidades de material e equipamentos "emprestados" a Portugal. E o Exercício Alcora conheceu o fim, com a independência das colónias portuguesas.
O Zimbabwe tornou-se independente em 1980.
O apartheid sul-africano caiu em 1991.
A invasão de Angola em 1975, e o papel sul-africano nas guerras civis da UNITA e da RENAMO, ganha assim nova clareza.
Sem apoio de retaguarda, a orgia sanguinária da RENAMO exauriu-se em 1992.
E a guerra civil angolana só terminou quando Jonas Savimbi foi abatido no leste de Angola, descartado pela CIA.
Em 1995, o marechal Costa Gomes fez uma enigmática referência a uma misteriosa "arma invencível" da África do Sul. E mais tarde, na Comissão Verdade e Reconciliação, foi dito que havia um programa de miniaturização de armas nucleares tácticas na África do Sul, em colaboração com Israel.
A Guiné era, neste contexto, um caso reconhecidamente insustentável e perdido. Mas o efeito-dominó arrastaria Angola e Moçambique, o que era incompatível com os interesses do regime, e com os compromissos de Portugal junto dos seus dois comparsas. Por isso o gen. Bettencourt Rodrigues, em Setembro de 1973, marchou para Bissau com ordens de "resistir até à exaustão".
NOTA: Tudo isto ajuda a esclarecer o estranho facto de o Movimento dos Capitães não ter sido oportunamente jugulado pela PIDE. A insânia do regime levou a outro critério: o último a sair que apague a luz!