quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Portugalmente (52)

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- Se o viajante mandasse, punha já daqui para fora este ringue de cimento! Punha-lhe um sobreiro em cima!
- E outro na casa do guarda, que perdeu a serventia!
Quem entra aqui no dueto é mestre António, ali sentado na sombra duma azinheira, a esfolhar o seu jornal. Conhece bem a biblioteca nova, embora a velha a soubesse de cor, se gastou nela boa parte da vida. Era a biblioteca itinerante, e nunca houve serviço melhor. Muita gente aí pelas aldeias só punha os olhos num livro quando ele chegava na carrinha e parava no largo. Mas agora os livros deixaram de ter pernas, e ficaram acamados nas estantes, à espera de que alguém se lembre deles. Mestre António já está velho e dá-se mal com o ar condicionado. Por isso vem até ao parque, arrimado na bengala, e fica aqui à fresca a ler o seu capítulo, enquanto os olhos durarem.
O ringue fizeram-no há muito, para as férias de alguns burgueses que jogavam ao ténis, no tempo em que os havia. Perdida a finalidade, aqui no meio do parque, só atesta o desmazelo de quem devia olhar por estas coisas. Agora a casa do guarda mandaram-na construir depois da revolução, alguma coisa haveria para guardar. Aqui ficou até hoje, sem préstimo que se veja.
O viajante não apurou o mistério, e o mestre António é parco nos considerandos. Cada um fica no que lhe parece. Mas lendas e tradições, mais as famas e os proveitos delas, nunca faltaram em Trancoso. Conhecida capital de contrabandos pesados e traficâncias várias, dela fizeram poiso trauliteiros e bombistas depois da revolução. A princípio eram todos democratas, se não mesmo activos militantes da redentora novidade. Receberam a tropa com presunto e cortesias quando um dia cá chegou, entregaram-lhe de mão beijada o saco dos partidários da União Nacional, como coisa que tivesse utilidade. Mas bem cedo estalou esse verniz. De Penafiel vinha muito o frade Nuno, amesendava aí e ajudava a passar a Castela as pratas e as obras de arte, as divisas e os valores, e os fascistas que andavam cheios de medo e se queriam pôr a salvo. Era aqui uma das portas de saída. Já cá não está quem conte essas histórias, das Berliets da tropa que rebentaram em Pinhel, do tesouro que foram assaltar a Guimarães, tomado por empréstimo a Santa Maria da Oliveira, das nocturnas emboscadas nos caminhos a quem não lia a cartilha miguelista. Uns tiveram de fugir para salvar a pele. E a outros rebentaram as castanhas na boca, como se viu naquele caso das carrinhas que foram dinamitar as antenas da televisão, e acabaram a arder numa estrada do Monsanto, às portas da capital. Eram cá da terra os activistas.
O viajante ficava a tarde inteira de bom grado a ouvir contar tamanhas aventuras, e mais da boca de quem as presenciou. A seu pesar partirá, que a vida não se resume a deleitosas sombras, nem a árvores protectoras, nem a agitadas memórias. Já segue pela avenida, que as Portas de El-Rei o chamam lá ao fundo.
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