quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Matilhas

Eles revezam-se em palco, agora tu, logo eu!
Mas têm todos o instinto do saque.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Para lá de todos os limites

Não acreditas?!
Vem ver aqui!!!

[ADENDA: O delíquio experimentado pela Secretária de Estado da maior potência do planeta ganha outra intensidade quando se ouve:
- que, nos últimos momentos de vida, Kadhafi pode ter sido sodomizado com um pau, pelos rebeldes que o capturaram;
- que a nova constituição líbia terá por base a sharia (lei islâmica), que recupera a poligamia.]

Vamos lá...

... tentar perceber melhor!

domingo, 23 de outubro de 2011

Irina

Em Luanda, em 1986, num velho arranha-céus colonial morava Irina, uma mulher redonda e muito branca, que dava lições de Física na universidade. Perto dela vivia Ngo-Diem, que era professor de Matemática e cozia os feijõezitos da soja num fogareiro a petróleo.
Logo à entrada da Ilha, voltada para o oceano, havia uma praia privativa das famílias dos técnicos russos, patrulhada por fuzileiros-navais de kalash engatilhada.
Reclamados pela guerra aos kwachas nos sertões do Kuando-Kubango, tinham vindo de Moscovo quinhentos blindados, que uns barcos descarregaram no porto. Mas a guerra continuava, e os mais deles desfizeram-se em ferrugem nas valetas de picadas infinitas. Eram os ninhos da surucucu, e ninguém veio a saber quem os pagou.
Nessa altura, no Afeganistão, os talibãs abatiam os helicópteros de combate russos com mísseis vindos da América. E cortavam às postas os pilotos que apanhavam vivos, com moto-serras eléctricas.
Irina não podia receber-me em casa, que o comissário do partido não autorizava, por razões misteriosas. Mas um dia eu fui lá visitá-la, e ela ofereceu-me uma fita com baladas de protesto do Vladimir Visotsky. Eram canções escondidas, que ela tinha copiado do gravador duma búlgara, que morava no patamar de baixo.
Eu não conhecia a língua do Vladimir. Mas a voz dele era uma mistura rouca de fumo de cigarros e vodka de batata, que arrepanhava a garganta. Era a voz da estepe russa, decifrava-se com facilidade e eu gastei horas inteiras a ouvi-la.
Mais tarde perdi a cassete de Irina, se antes ma não roubaram. Mas não levaram as canções do Visotsky.

sábado, 22 de outubro de 2011

Coca marada

Bem gostava eu de ter um link para isto! Mas não tenho, nem sei onde o arranjar. Por isso transcrevo, em parte, António Guerreiro, no ATUAL de hoje.

«(...) Por exemplo, quando se decide aumentar o IVA dos bilhetes de cinema de 6 para 23%, poupando os livros a essa subida, o princípio que determina esta medida é o de que há um valor cultural - de índole humanista, como sabemos - no ato de ler com o qual o cinema, filho da indústria do entretenimento, não tem o mesmo grau de compromisso. (...)
E, no entanto, há aqui algo de profundamente injusto e inadequado ao que se passa efetivamente. Os livros, quase na mesma proporção do cinema (isto é, a larga maioria) são meios de produção da imbecilidade e, se fosse possível introduzir aqui alguma justiça, deviam ser taxados como o tabaco. (...)
É preciso perceber que o amor universal pelo livro, a ideia de que o livro é, em si, uma coisa boa, encerra uma mentira: a de que muitos deles são nefastos e não deviam gozar de nenhuma prerrogativa. Como nefasto é este contrato público que prescreve a bondade dos livros e permite aos seus 'agentes' (autores, editores, difusores, livreiros) prosseguirem uma tarefa de destruição em nome de um grande amor por eles
».

Não caberá, ao crítico, dizer-nos o que ler e o que não ler.
Mas é sua estrita obrigação avisar claramente a nossa iliteracia que anda aí muita coca marada, com selo de garantia.
Que nunca lhe doa a pena, ao Guerreiro! É que os papagaios avençados nunca o fazem. Em proveito da vidinha, a deles, e em prejuízo da nossa!

A choldra


Já duas vezes aqui foi dito, e hoje se volta a dizer, por ser ainda oportuno, verdadeiro e pertinente: o PSD é actor primeiro no palco da tragédia nacional, que não ocupa sozinho.
Desde o final dos anos setenta, em que o país precisava de romper com a medievalidade e definir rumos novos, a história do exercício do poder pelo PSD, e a sua contribuição para as soluções nacionais é uma sucessão de equívocos ou malfeitorias.
O primeiro legado substancial que nos deixou foi a reedição do mito de D. Sebastião, com Sá Carneiro. O tal que ficou na história, não pelo pouco que fez, mas pelo muito que havia de fazer, se não tivesse desaparecido tão cedo. Tudo o que deixou atrás foi a exigência do regresso urgente dos militares aos quartéis, e o desejo de conquistar, como forma de salvar a pátria, uma maioria, um governo e um presidente. Mas as suas cumplicidades políticas foram sempre com abencerragens democráticas do género de Spínola ou Soares Carneiro.
O segundo legado do PSD foi um olimpo de barões, que se foram servindo dum poder que lhe caiu nas mãos e com o qual sedimentaram carreiras, mas não deixaram a sombra dum pensamento útil. Euricos de Melo, Balsemões, Penedas, Ângelos Correias e outros quejandos pimpões inomináveis, uma plêiade de governantes e gestores de empresas, participadas e des-participadas, em que sobretudo governaram as vidinhas.
O terceiro legado foi a enxurrada dos oportunistas e dos gangsters, que floresceu à sombra do impoluto Cavaco, a partir da Figueira da Foz. Era a década dourada, em que o dinheiro europeu chegava com as marés, e em que era vital definir um futuro novo. Mas não ficou dessa gente uma ideia consistente, um rumo a seguir, uma estratégia de vida. Na Educação, na Saúde, na Economia, na Administração, na Defesa, na Cultura, na vida do país não ficou a memória duma luz. O que ficou desse tempo vital foram os escândalos da formação, paga a peso de ouro sendo um faz-de-conta. Foi um fartar vilanagem. Foram as universidades privadas de João de Deus Pinheiro, as Independentes, as Internacionais, as Modernas, as Portucalenses, as Lusíadas… essas instituições de pura caça à propina com cursos de papel e lápis, que defraudaram o país e levaram à certa a juventude. E ficou a herança que nos legaram os Dias Loureiros, os Oliveira Costas, os Isaltinos, os Arlindos, os Valentins, os Duartes Limas, os Sanches, os Coimbras, os Albertos Joões, os Rendeiros que eram às centenas. Tantos eram eles, e tão maus, que o próprio Cavaco os enjeitou. Aplicou-lhes o tabu de um ano inteiro, e no fim abandonou-os na orfandade.
O quarto legado foi o dos maoístas reciclados, dos quais Durão Barroso foi o herói maior. Depois dos serviços prestados à CIA, em tempos antigos, quando era preciso construir o caos e a anarquia,deixou ao país uma célebre frase: enquanto houver uma criança com fome, não haverá um novo aeroporto! Depois escapou-se para Bruxelas, a prestar outro serviço a novos donos.
O quinto legado é o dos aventureiros actuais. Criaram-se os mais deles à lei da natureza nos sertões africanos, onde a vida era servida já feita. Não dominam a língua nem a gramática dela, não têm mais leituras que a da sebenta duma licenciatura em Relações Internacionais numa escola manhosa. Não se lhes conhece outra experiência que não seja a tarimba e a movida nocturna na Jota do partido. Não conhecem o país, nem querem o trabalho de o conhecer, nem precisam de o conhecer para as suas aventuras.
Um dia um dos rapazolas, o Marco António Costa, chegou à Rua São Caetano. Espetou um dedo ao nariz do outro, o Passos Coelho, e disparou:
- Ou tens eleições no país ou no partido!
Lançou os dados e ufanou-se disso, porque o resto foi simples e ficou conhecido. Chumbou-se o PEC4, delapidou-se em eleições um tempo que era precioso. E com o beneplácito dum povo com o poder de análise e a capacidade crítica dum rebanho que passa de focinho rente ao chão, fez-se um governo novo que dura há quatro meses. Contam finalmente com um governo, uma maioria, um presidente, e até com o bónus duma oposição, para pôr finalmente o país na velha ordem antiga. A da penúria geral e da carência, a do desamparo, a da precariedade, a da emigração, a da canga, a dos chico-espertismo, a dos empreendedores parasitas, a das eminências pardas, a dos banqueiros rapaces, a ordem velha de quem manda e a de quem obedece.
Aos aventureiros mercenários do governo novo já resta pouco tempo para as aventuras, ao que se vai observando. Mas ao país ainda menos.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

A ignomínia duns fariseus

A NATO foi à Líbia, à procura dum cano de esgoto. Destruiu o país mas encontrou-o.
Tirou de lá o Kadhafi e matou-o. Porque o gajo não podia ficar vivo, tinha uma língua comprida, ia pôr-se a contar o impensável.
Já segura de que o tipo estava morto, deixou uns papagaios a contar a sua história, e foi para casa tratar duns negócios.
Daqui por uns tempos vai ter que lá voltar, a apagar uns incêndios. Por causa do terrorismo, à conta do qual nos tem andado a dar cabo da vida.

Ainda a Júlia da Farmácia!

Já aqui se falou dela. Mas é irrecusável voltar à vaca fria, honni soit...
As histórias que José Rentes de Carvalho através dela nos conta, ou nos comovem, ou nos edificam, ou ainda melhor nos sobressaltam. Pela ironia, a vivacidade e o sarcasmo com que nos desvendam o mundo.
Saboreie o leitor Uns lotes à beira-mar, O Joalheiro, A Quinta do Mobutu, O Milhão, Scoop, Salon Gina, O Caderno de Hakim, O hospital militar, O sub... e depois fale!
Ficam agora também disponíveis, através da Sonora de S. Lázaro, para utentes invisuais, amblíopes, ou gente impossibilitada de ler.
Porque é preciso distinguir entre as cegueiras dos olhos e a cegueira real e programada, que é a das cabecinhas. Andam por aí a encher-no-las de areia, e de vazia genialidade, com Peixotos, e Tordos, e hugos mães de papel de cenário.
Eles lá sabem porquê. Mas isso é questão para o seu momento.

Amuse-bouche:
(...) depois de não nos vermos há muito encontrámo-nos uma manhã numa padaria, ele a entrar, eu a sair. Rimo-nos do acaso, abraçámo-nos, dei um passo atrás para admirar aquele Adô metamorfoseado, gordo e próspero, vestido com o esmero antigo:
- Houve milagre!
- De facto consegui salvar-me - disse ele. - Ou melhor: fui salvo pela merda. Literalmente. A merda salvou-me.
Num café a dois passos dali contou-me como ele e Janine, mesmo nos momentos de menos precisão, se tinham visto reduzidos a só comprar as entranhas dos frangos, e a sua surpresa ao notar um dia que os intestinos transparentes e finos, onde as cagalhetas se enfileiravam como contas de um rosário, possuíam uma curiosa trama e se dispunham num estranho desenho.
Foi a inspiração! Colando as tripas, com cagalhetas e tudo, sobre pequenas telas, colorindo-as e envernizando-as, tinha criado desse modo figurações tridimensionais de um estilo muito pessoal.
O êxito fora instantâneo. A galeria anunciava constantemente novas e maiores vendas. Chegavam pedidos da Suíça, do Japão, Itália e Estados Unidos. Directores de grandes museus intrigavam para que fosse dada prioridade às suas encomendas.
Com os primeiros fundos tinha podido comprar um apartamento na Rue du Bac, onde andava agora a fazer obras, e porque era perto fomos ver, não me custando a imaginar o luxo que seria quando estivesse pronto. (...)

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Mafia

Os mafiosos são muitos.
Mas o Corleone é este.
Bem nos foderam!

O Chile?!

De há 40 anos?!
Bailha-nos Deus!

Na dúvida...

Paus por baixo!

Mercenários

O orçamento de estado para 2012 corta nas despesas da escola pública três vezes mais que o imposto pela troika. Oiço falar em 864M€***.
Isto enquanto o financiamento do ensino privado sobe de 80 para 85 mil Euros por turma, com diminuição do número de alunos.
Serviço nacional de saúde, escola pública, funções sociais do estado, demolidas por aventureiros mercenários?
Não deve ser verdade! Isto é malta a dizer mal do governo!

***Adenda: Há quem diga que é o dobro!

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Manilha de trunfo

"P'ró preto" e muito bem, claro!
Para que tivemos nós um Gama, porra, um Albuquerque?!
Para que submetemos nós o Indostão?!
Não somos, afinal, um povo eleito, predestinado para não sei o quê?!
E novecentos anos de história, gloriosa e fidelíssima, não são ainda a manilha de trunfo?!
Isso da moral, do respeito, da justiça e da igualdade são mesmo coisas de hereges lá de fora!

Sala cheia

Alarmado com a crise, prisioneiro dos conceitos do custo e do benefício, limitado, o pobre, à estética aristotélica, o novo director-geral foi definitivo e terminante: nas artes de palco em geral, e nas performativas em particular, só a sala cheia garante o subsídio. Fora disso nem pensar!
Ficámos ali à nora. Com dois milhões por ano garantidos pelo erário íamo-nos aguentando, sempre gotejava o génio criativo. É certo que o público andava muita vez de candeias às avessas, serões havia em que se estava tintas para a performance. Mas a vida ia bem. Agora assim, logo do pé para a mão...
Fomos à bruxa, falámos com gurus, lá consultámos um programador.
-Há espectáculos para cinco, para um, para dez ou para centenas de espectadores. E exemplos não faltam de obras que foram feitas para públicos que haviam de vir. Como Os Lusíadas, para não irmos mais longe. Naquela altura mal se deu por eles e hoje em dia é o que se vê, a malta pela-se por glórias de papel.
Quem assim fala são os populistas e os ignorantes, que tudo desconhecem sobre os mecanismos da produção artística, da liberdade criativa, da formação dos públicos e da história das artes. E são discursos de ressabiado: como é que uma reles minoria entende o que eu não entendo, e ainda por cima pode tirar prazer disso?
O complexo do labrego, e a subliminaridade da síndrome da impotência, tais a ver?!
Bendita hora aquela! Melhor do que isto só a pítia original, nas cavernas em que imperava Apolo!
Em menos duma semana montámos uma cena para espectador único, inaugurámos um ciclo de sessões contínuas com lotação esgotada. O público, esse, ninguém pegava nele, foi preciso dobrar a assistência à bilheteira. E com uma ajudinha da crítica esclarecida, até o director-geral se deixou convencer.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

O mata-sete (2)

(...)
Mas vamos à história do João, que já deixou à espalda Sanza Pombo, já deu o seu bom-dia aos amigos da Quicua, e que agora, à vista da fronteira, mandou formação de combate e vozes de armar. O asa terá, ou não, ligado já o circuito das metralhadoras. E o João, impante e agressivo, disposto a levar a sério a sua missão de soberania, liga, sem olhar, os foguetes que traz. São dois enormes trambolhos que o bombardeiro vai arrastando sob as asas, pendurados nos mesmos ganchos das bombas. E o sofisticadíssimo sistema de armamento permite a escolha conveniente: ou larga tudo, quando é seleccionado o circuito das bombas, ou dispara os foguetes se tal foi a opção.
Ajustou o João o motor, e mandou ao asa que lhe cobrisse a manobra, lá em cima. O rio, assim visto de mais perto, límpido na manhã de sol, era uma fascinação para poetas. Mas não era para devaneios que o João ali estava. Por isso resolveu dar uma lição de soberania àquele preto, que freneticamente rema para terra, buscando no palmeiral um refúgio contra esse grande susto que aí vem, atroando os ares.
Dá um toque no rádio, aconchega-lhe o gás, puxa pela esquerda para a altitude de tiro, corrige o visor de que se tinha esquecido e entra no passe. Esmera-se com pequenas correcções, (o tempo dá para isso e ele não quer abater o homem!) e aponta à frente da canoa, em riscos de ruína sob a remada vigorosa do negro aflito. Lá lhe pareceu que era altura, e não conseguiu evitar um sardónico riso ao premir o botão de disparo.
Estranho sucedido este, que não viu sair os foguetes, antes parece que foi o raio do avião que deu um salto em frente! Carregou outra vez no botão, e o sacana do preto a desaparecer no palmeiral!
O João puxou bruscamente, pendurou-se na asa direita, o que ele queria era ver se ainda se podia fazer alguma coisa. E ficou esmagado quando descobriu, nas barbas das palmeiras, as carcaças dos contentores de foguetes.
- Ah cabrão, que falhaste a ligação!
E alinhou um comboio de imprecações a que não se pode aqui dar voz.
O pescador não soube o que fazer a tal oferta. O velho bombardeiro, liberto dos trambolhos a cortar-lhe o passo fatigado, deu mesmo um arranco em frente e lá seguiu, a 115 milhas. O João, com o dia todo estragado, esqueceu-se de reduzir o motor. E o asa teve que meter gás à tábua para o acompanhar.

domingo, 16 de outubro de 2011

O mata-sete (1)

Nada se parece mais com certas guerras do que as rapaziadas de taberna ou as cenas da caça. Mantidas as distâncias, claro está, já que também as diferenças são grandes. Mas numas e noutras há sempre um mata-sete.
Personagem de estatura menos que mediana, com tendência para o tacão grossíssimo, larga panóplia de trejeitos amalandrados, e galhardia, muita galhardia, e façanhas inultrapassáveis. O João era assim, jovem piloto numa esquadra do norte de Angola nos idos de sessenta e tal.
O João estava com a sua gente, porque os pilotos menos jovens e menos milicianos tinham desde cedo começado a rarear. E lá se convenceu de que tinha uma fama qualquer a manter, entre a rapaziada. Descompunha-se com frequência em comentários ao tiro dos companheiros, em sarcasmos aos fracos resultados do reconhecimento. E já uma vez cometera a proeza de entrar num passe de bombardeamento, descobrir, pelo meio, alguma coisa que mexia noventa graus ao lado, mudar de alvo, dar cabo dele, e recuperar triunfante, com vivas interjeições soltas no rádio.
Era assim, e ninguém se zangava, o João que um dia saiu numa missão a chefe. Tratava-se do que as neps designavam como “missão de soberania”, um patrulhamento de fronteira, sobre um estranho rio que corria para norte. Ao contrário de todos os outros rios, que não descansam enquanto não vêem o mar, este corria para o centro da terra, desafiando as normas da sua condição. Lá ia, caudaloso, ora saltando cascatas apressadas, ora espreguiçando-se em meandros vagarosos que eram uma beleza de se ver, e onde os pescadores, em pirogas rombudas, aproveitavam para lançar as suas artes pré-históricas.
A viagem era longa e rotineira. Nunca se previam sobressaltos, nunca havia semelhanças entre um qualquer negro à pesca e um terrorista temível, a executar uma invasão a partir do Congo. E, para o combustível, lá estava a escala de reabastecimento prevista em Malanje. Era um passeio agradável, de um dia inteiro, à deslumbrante paisagem do norte angolano.
Os dois bombardeiros lá seguiam, à distância do regulamento, semeando na limpíssima atmosfera da manhã o arfante rataplã dos nove cilindros americanos de mais de vinte anos. Eram bombardeiros porque a tropa assim os nomeava, talvez para os distinguir dos outros, que não levavam bombas. Esses eram mais frágeis, mais silenciosos, quando apareciam era para trazer correio ou comestíveis frescos, um raro passageiro, quando não era para levar um cidadão felizardo que se tomou de febres, ou algum acidentado. Os bombardeiros não. Ouviam-se à légua, e a agressividade do seu roncar, a silhueta mais corpulenta e os artilhanços que arrastavam pendurados nas asas mereciam a designação.
Para os aviadores eram uma excelente arma de arremesso, e havia quem lhes chamasse o 110. Subiam a 110 milhas, cruzavam a 110 milhas, picavam a 110 milhas, pouco mais. Era uma caricatura. Mas a robustez que mantinham aqueles aços, depois das atracações que já tinham suportado na mão de sucessivas gerações de candidatos a pilotos, garantia o esmagamento completo do que apanhassem pela frente.
(...)

sábado, 15 de outubro de 2011

Queres saber a melhor?!

Por mais extraordinário que te possa parecer, foi este o guardanapo que os portugueses escolheram para limpar as beiçolas!

Carpideiras de ofício

Será ladrar por ladrar. Mas só ladrando se entende a canzoada. E a questão é a seguinte.
Em lugar de se ocupar a sondar a realidade para poder fazer-lhe frente, o comité central prefere gastar o tempo a fac-similar livros antigos. Foi assim que decorou, e ainda sustenta, que um qualquer governo do PS, (na teoria, na prática, no sentimento, nas intenções e nos seus efeitos), é exactamente igual, se não pior, aos governos do PSD e seus acólitos. Os quais são feitos de aventureiros ou de predadores, de manobristas ou de parasitas, de demagogos ou gangsters. Em partes iguais misturam ignorância, decadência e gula. É a história que o diz.
Foi assim que o comité central estendeu, meses atrás, a passadeira vermelha ao governo que aí está. O que já seria uma vergonha, se antes não fosse o entrecho duma catástrofe trágica.
Quando a tempestade chega, como agora, o comité central ameaça motins. Lança granadas de pólvora seca contra as políticas de direita. Faz lembrar esgares de crocodilo, ou lamentos de carpideira de ofício.

Enquanto ainda

Enquanto persiste o Verão, e ainda saboreias uma mini, toma lá!

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Kapital para cães

Vivem às dúzias em prisões de arame, montadas num descampado, para fugir a vizinhanças. E são mal alimentados, para lhes acender nas tripas o mau instinto da presa.
Se acontece um viandante ali na vereda, não se queixam. Arremetem e exibem os caninos. E esperam que chegue o tempo das batidas, quando o dono os aluga aos caçadores. Só então lhes chega a liberdade.
O que estes donos mereciam bem eu sei. E não o digo. Mas um Das Kapital para cães, mesmo em vulgata aligeirada, já seria um bom começo.

O que sucede agora

Em lugar dos carvalhos e azinheiras, e outras espécies locais, os técnicos da Agricultura impõem a Riba-Côa exóticos cupressus. Não se compreende bem, já que são estranhos e canhestros, são sáfaros e maninhos. Mas garantem os projectos de floresta.
É como a amêndoa do Douro. A verdial, a casanova, a fura-saco, que fizeram as famas de Foz-Côa, vão sendo postas de lado, por causa da casca dura. Ganham as da casca mole, um refugo que vem da Califórnia.
Aventura por aventura, pena é que estes aventureiros não tenham em tempos embarcado todos na folia de Alcácer. Tinham ficado por lá e entravam também na história, sem ser o país forçado a pagar-lhes um resgate. Bem ao contrário do que sucede agora!

Caminhada

Ainda falta uma hora e parece logo ali.
Mas os calcâneos não cedem.

A um amigo da Madeira

Se ainda te faltavam decadentes, marginais, trogloditas e bandalhos, aqui os tens.
E são só pano de amostra, que isto anda tudo ligado!

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Prenda de casamento

- Maldita a hora e o dia em que te saltou da cama assim de madrugada, ó Reta! Bem melhor andaras tu…
Foi assim que falou uma sibila vizinha, quando chegou à Mata de Lobos a sentença do tribunal de Figueira. Que o cabo João Moutinho já nem às despedidas o deixaram vir.
O nevoeiro do rio foi o principal culpado. Os homens do contrabando passavam a Espanha rebanhos inteiros, de Poiares, dos Urros, de Ligares. E até de muito mais longe, no planalto. Desciam de madrugada a calçada de Alpajares, sempre com pastor à frente para manter iludidas as borregas e levá-las ao engano. Atrás vinham os passadores, uma tropa. Seguiam a ribeira do Mosteiro por veredas de há mil anos, amalhavam no escuro debaixo duns negrilhos logo que aparecia o Douro, o resto era trabalho do barqueiro. Era um rebuliço que durava a noite inteira.
Toda a gente o sabia em Barca de Alva, chegaram ordens do administrador do concelho, só restava à guarda armar-lhes a esparrela e dar-lhes as boas-vindas.
Haveria guardas locais de mãos untadas, quem o sabe?! E foi essa a má sorte do Moutinho, a quem veio a calhar descer da Mata à frente duma patrulha.
Maldita hora aquela! A barca abicava ali num varadouro, e os homens viram logo que os fariseus eram madrugadores. Já havia gado posto a bom recato debaixo das azinheiras. Mas quando a barca voltou, tudo foi precipitado. A patrulha soltou vozes de prisão na altura do desembarque. Inesperadamente um dos meliantes respondeu a tiro, tresmalhando os bichos todos pelo areal.
O ladrão do nevoeiro fez o resto. Num capricho da aragem a cerração aumentou, quando o Moutinho disparou a sarrasqueta foi o barqueiro a cair. Mal se pode imaginar ali a babilónia. E, bem ou mal, degredaram-no para Angola.
Meterem-no num porão ali na boca do Douro, numa manhã cinzenta, foi para a família toda uma calamidade. Mas a Maria Dolorosa Reta, com três ganapos na mão, tratou de engolir as lágrimas, farta ela de saber que a rodeira do destino anda para cima e para baixo. Enrijou-se nos costados e aguardou.
Quando em 1906 se pôs a caminho de Benguela para se juntar ao marido, também foi embarcar à foz do Douro. E levava pela mão a filha Laura, ainda uma criancita. Antes disso fez uma venda fantástica de quanto possuía em Riba-Côa. O mais eram courelas em S. Pedro, a dois passos da fortaleza de Almeida, já a fugir para Castela. Que a pena de João Moutinho não cobria a vida inteira, não era ainda a sentença da eternidade. Fosse amiga a padroeira, a Virgem dos Bons Sucessos, e um dia lhe voltariam à mão.
O Porfírio e o Laureano, ao tempo já espigadotes, lá tinham seguido a rota das aves de arribação. Custou-lhe os olhos da cara, mas lá foram. Desceram Castela abaixo, cruzaram a Estremadura, foram embarcar em Cádiz. O primeiro veio a finar-se no Congo, tomado dumas febres. O segundo deu à costa na Argentina, foi encontrar melhores ventos em Santa Rosa, Las Pampas, onde gozou vida longa.
Do outro lado do mar congraçou-se um dia Laura com Sebastião, funcionário da alfândega de Benguela. E se a comunhão de idades cauciona boas-venturas nos casamentos fidalgos, muito cedo se mostrou, neste correntio caso, que homem velho e mulher nova dão filhos até à cova. Bem depressa eram já três, e quem mais neles mandava era o compasso das luas. Mas não desandara ainda o alcatruz da fortuna. E não faltando motivos para se apelidar Benguela de cemitério dos brancos, um dia o homem morreu. Mal tinha vinte e seis anos e já Laura era viúva. E assim ficou, até ver.
Quinze anos cumpriu Moutinho a excomungada pena. Foi então a vez de Laura arrebanhar a família e tocá-la para S. Pedro, onde estavam à espera umas courelas. E trazia pela mão a filha Aida, ainda uma criancita. Será dela que eu um dia hei-de nascer, quando me chegar a vez.
Por enquanto ainda é cedo. Porque agora vai casar-se o Laureano com a Maria Schneider, em Santa Rosa, Las Pampas. Em breve se fará dona a rapariga, e bem precisada vem, que tem só dezasseis anos. Mas é bonita e fecunda, conforme se verá, dando-lhe o tempo. É um fruto exótico dos alemães do Volga, uns teutões que entram aqui na história porque a Grande Catarina os levou a desbravar as estepes do Cáspio, há-de haver duzentos anos. Mas os atalhos da vida tresmalharam-nos, e o mundo não era ainda a pequenez que é hoje. Lá foram parar à América, ao Brasil… no nosso caso às Pampas da Argentina, para o Laureano encontrar a cama feita.
Tão bem feita a cama estava, que nela fizeram ambos vinte e quatro filhos. E foi um neto deles a surpreender-me há tempos, embuçado nas névoas da Internet. Andava ele à procura de inculcas de S. Pedro.
Um bisneto do Moutinho, fruto cruzado da Mata de Lobos e das estepes do Volga, que o ladrão dum nevoeiro no Douro juntou em hora aziaga! Um dia destes, nas neblinas da Irlanda, vai ele casar-se em Belfast.
Já comprei um fato novo. E guardo ali, no saco de viagem, a prenda de casamento.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Tão difícil

Só o amor (que vive de milagres), e a arte (hoje aí na mão de proxenetas), justificam a vida.
Outras coisas há que a alimentarão (como o dinheiro), ou a facilitam (como a ignorância).
Mas todas juntas não a justificam.
Por isso anda ela tão difícil.

Lá chegaremos!

A contemporaneidade é um motim: político, financeiro, económico, energético, filosófico, estético, social, ético, ambiental. O motim é só um e é global.
Raramente, como hoje, foi tão espinhoso entender o mundo e viver nele.
O único remédio é transitar para outra forma de civilização que ninguém sabe qual é. Um dia lá chegaremos.

Isto anda tudo ligado (3)


Não basta fotografar um púbis feminino, rabiscar-lhe por baixo o nome do artista, e despejá-lo no saco das artes plásticas, para termos à nossa frente um objecto estético, um fruto da criatividade.
Não basta riscar uns hieroglifos em quinze metros quadrados de papel costaneira, rubricá-los por um qualquer Sarmento, e vendê-los à colecção da FLAD que os colará no betão da parede dum museu, como formas de expressão artística.
Não basta encher um triciclo de carga com santinhas de Fátima fosforescentes, impingi-lo aos olheiros do comendador Berardo, e chamar-lhe arte contemporânea.
Não basta juntar um triângulo de pedras, ao lado dum quadrado de pedras, ao lado dum círculo de pedras, dizer que são obra dum criativo inglês, e estendê-los numa sala da Casa de Serralves, para edificação estética de novos públicos.
Não basta erguer um manipanso com fardos de palha, com tubos de plástico, ou com varas de salgueiro, chamar-lhe instalação e servi-la ao natural.
Não basta isto, nem aquilo, para eliminar a condição de farsante. Mas não se pode dizê-lo em voz alta, porque não rende e é perigoso. Por considerandos de estatuto, ou de carreira, ou de simples direito ao trabalho.

Parabéns, pá!

Estamos de parabéns, tu e eu!
A nossa NATO, incansável a proteger o povo líbio, não se poupa aos grandes sacrifícios que os bons princípios exigem. Despeja bombas inteligentes, guiadas a laser, sobre os hospitais.
Há criancinhas torradas, já são mais de mil. Mas é tão consolador discerni-las no ecran, enquanto vamos jantando o frango de churrasco!

domingo, 9 de outubro de 2011

Isto anda tudo ligado (2)


Ripostando a uma catilinária de Pacheco Pereira, sobre um certo regabofe parasitário em que se movem os produtores das artes contemporâneas, disse António Pinto Ribeiro, ensaísta e programador cultural, no PÚBLICO de 13AGO:

«O dr. José Pacheco Pereira estranha que se conceba e realize um espectáculo para cinco pessoas. Há espectáculos para cinco, para um, para dez, ou para centenas de espectadores, e não é pela quantidade de público que se determina a sua qualidade (...).»
[Por simples contraste, isso já as audiências da TVI nos tinham demonstrado. Era agora altura de explicar o que é que determina realmente a qualidade do espectáculo!]

«O dr. JPP deveria saber que a arte exige um pensamento sofisticado, e que, a pronunciar-se sobre ela, deveria ter estudado, visto, investigado».
[Pensamento sofisticado?! Duma elite ilustrada? Duma seita arrogante e autista?]

«Há alguns (artistas portugueses) muito pouco interessantes, e há obras que muitas vezes nos levam a lamentar o tempo passado a contemplá-las».
[E sobre a diferença que define essa perda de tempo, e aquilo que o não é, ficamos eternamente em branco?]

«(Os artistas portugueses) deveriam saber escrever bom português (...) mas não é isso que se espera deles: espera-se mais, espera-se que sejam capazes de transmitir a singularidade da sua obra, e para isso há especialistas que o fazem e bem... mas custa dinheiro. E portanto são eles (próprios) que o fazem (...)».
[Então e a obra não fala por si? Não tem vida e existência própria? Precisa da voz dum demiurgo, dum especialista que a explique? Que a justifique? Será que ela não existe? Ou é o público destinatário que não tem um pensamento suficientemente sofisticado para lhe captar a singularidade?]

«(O dr. JPP) deveria admitir a sua enorme ignorância em muitas matérias, e em arte em especial, e então talvez começar por estudar, ler, e voltar a estudar (...)».
[A seita da criação contemporânea bebe do fino. Não se chega lá com um copo na taberna, se é isso que estavam a pensar.]

"Uma escuridão que não levanta"

(...)
«As notícias sobre a Grécia matam a Grécia, os alemães ajudaram a matar a Grécia. Como querem que um devedor pague a dívida depois de estar morto? Quando nos emprestaram dinheiro ninguém quis saber se o íamos pagar. Ninguém. Toda a gente fingiu que não viu o que se estava a passar, a corrupção, os partidos a contratar as clientelas, as contas aldrabadas. Vir dizer que foram apanhados de surpresa, os devedores, é uma colossal mentira. Os gregos sabiam, os bancos sabiam, toda a gente sabia, e toda a gente ganhava dinheiro à custa disso. Esperar que um povo se reforme de um dia para o outro é um erro. Tempo é do que precisamos mais, e ninguém nos dá». E o pior de tudo? O que é que a crise faz às pessoas? «O pior é a tristeza. Depois da indignação e da raiva desce a tristeza. Em Atenas a tristeza é uma coisa espessa, uma escuridão que não levanta. As famílias zangam-se, os casais separam-se, os amigos desconversam, a existência torna-se impossível quando nada funciona, quando não há dinheiro. Atenas vive em estado de terror e protesto. Era uma cidade alegre, é uma cidade desavinda. É como se a vida tivesse sido sugada das ruas e as ruas servem para a batalha campal. Pessoas que viviam bem agora contam os tostões para comer amanhã. As pessoas estão a perder as casas, a comida, as escolas dos filhos. Nem a emigração nos ajuda, porque ser-se grego nos tempos que correm é uma maldição. O grego tornou-se a escória da humanidade, o símbolo de tudo o que está errado como mundo financeiro e a Europa. Ninguém nos quer, só querem as nossas ilhas e a posição no Mediterrâneo. E cresce o sentimento antialemão. Coisas do tempo da guerra vêm ao de cima, rancores, ódios, vinganças. Nunca mais vamos recuperar dos danos morais desta crise. Nunca. Uma parte de nós já morreu. Estamos num comboio descontrolado. A Grécia era a última estação. Já passámos».
(Clara Ferreira Alves, in PÚBLICA, hoje)

Iconostase

Nesse tempo havia crenças, havia o santo dos santos, havia esperanças balsâmicas.
Não teriam fundamento. Mas alguma fé o tem?!
Hoje resta a razão pura.
E ainda bem.

Isto anda tudo ligado (1)

Os recitais de vanguarda, com que a Antena 2 nos brinda a horas mortas, martelam horas a fio e podiam durar a eternidade. Seguem muito bem o ar do tempo.
A estética complexa, que os insufla e lhes dá forma, é feita de lamentos do camelo que perdeu a caravana, de risadas histéricas de hiena, do choro de cabritos desmamados, das estridências de cordas amotinadas, dos trinados de castrato que baralhou as pautas, dos uivos dum lobo à lua, do troar das cachoeiras no inverno, dos silvos de serpente enfurecida, do protesto de bichos no açougue, do tropear das cargas de cavalaria, da explosão dos cabos de aço que ultrapassam a tensão, do arrotar dum bêbado descomposto, do caos das discussões dos ciganos, do esbracejar de orquestras sem maestro, do rumorejo das folhas numa brisa, das ressonâncias de órgãos esquizofrénicos ou tímbales que enlouqueceram.
Seguem muito bem o ar do tempo. E mal por mal eu prefiro as estéticas do outro, que batutou quatro minutos de silêncio, até jorrarem aplausos do deslumbrado auditório.

sábado, 8 de outubro de 2011

Pigas

Por ser dono deste espírito assim desassossegado é que o Tó acorda cedo. Hoje em dia, que já goza da reforma, bem podia ficar até mais tarde, abandonado ao choco dos lençóis. Mas não senhor! Ainda a manhã passeia por Castela e já ele vai charneca fora, à sua caminhada.
Um tal génio de galo madrugador vem-lhe desde a meninice, no tempo em que se criou numa ninhada de nove. E à medida que a vida passou por ele não fez senão agravar-se. Anos e anos andou atrás das ovelhas, era o pastor da família desde que saiu da escola. E quando se enfastiou dos recantos da charneca, e dos segredos que há nela, passou a trazer livros no alforge. Emprestavam-lhos no enxido, todas as quintas-feiras, na carrinha itinerante. Leu tantos livros de histórias, de aventuras e de reis, que até se esqueceu de alguns. Mas outros houve que lhe ficaram gravados.
Quando fez dezoito anos foi para o colégio da vila, por teimosias do padre. E num ano fez logo os primeiros dois, duma simples assentada. No segundo fez as Ciências do quinto, segundo a fórmula antiga.
Um dia partiu para França, queria desbravar o mundo. E viveu por lá um ano, a plantar árvores ao longo de auto-estradas.
Quando a pátria lhe sentiu a falta, e o chamou para as inspecções da tropa, assentou praça nas Caldas da Rainha. E seria, em Luanda, o primeiro classificado no curso de comandos, num regimento famoso que lá havia. Depressa o despacharam para Montepuez, para proteger dos macondes o distrito de Cabo Delgado.
Um dia deixou abandonada uma lata de sardinhas na picada e foi expulso. Era uma traição ao grupo. Passou à tropa macaca, mandaram-no a defender as obras duma barragem que andavam a construir numa garganta dum rio.
Passou, enfim, à peluda, quando a revolução chegou. E uma vez que regressara à aldeia, e deixara de passar a carrinha itinerante, voltou outra vez à vila. A ver se apanhava as Letras que tinham ficado atrás.
Assim foi cabo da guarda-fiscal, até que um dia lhe pediram cem contos para concorrer a sargento. Lá foi parar a Cacilhas, integrado na GNR. E já era graduado quando chegou a reforma, esta em que agora se encontra.
Tinha um filho, já crescido, um dia divorciou-se, voltou à aldeia outra vez. E há quem diga que era o dele, este espírito assim desassossegado que o faz acordar tão cedo. Mas não é de ir na conversa.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Ai dos simples!

A confusão que reina pelas cabeças de certos achadores de talentos literários só é ultrapassada pela cegueira contentinha que desgoverna as cabecitas dos achados talentos.

Na impossibilidade de obter um link, e num arriscado exercício de salvamento da Literatura, transcreve-se o crítico António Guerreiro, no último ATUAL:

"Sigamos Walter Hugo Mãe, se quisermos ver em funcionamento, sem hesitações nem alibis, a máquina de destruir escritores. A engrenagem subiu ao palco, sob a forma de tragicomédia, no festival de Paraty, de onde saiu uma personagem grotesca que se oferece em espectáculo numa representação de cabaré, amplificada por aplausos emocionados de espectadores que gostam do teatro das emoções, e acham que um escritor é tanto melhor quanto mais escreve como respira, isto é, como mente. (...)
Finalmente, a grande engenhoca do lançamento, para a qual se convocou o mais respeitável construtor da nossa democracia para a tarefa da mobilização nacional em torno do escritor, coroou este percurso pelo qual um romance passa a ter um destino extraliterário. (...)
Terminada a festa da destruição do escritor, fica o objecto desamparado do romance, no meio dos destroços. Quem, por dever de ofício, por curiosidade ou porque não se pode subtrair à 'atualidade', assistiu aos actos preparatórios da implosão, só tem um desejo, que, a cumprir-se, proporcionaria o júbilo pérfido da vingança: que o romance se erga acima do seu autor, apesar dele, ignorando os seus desvarios e as engenhocas promocionais de destruir escritores.
Infelizmente o desejo não se cumpre, o júbilo perverso fica adiado e o dito romance, tão patético como a engrenagem destrutiva que preparou o seu aparecimento, faz-nos passar por aquela experiência muito embaraçosa de sentir a vergonha que caberia ao outro. Nem um deus, quanto mais um filho, o pode salvar".

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Angelina

Angelina tem 73 anos e vive em Dine, que é o lugar onde nasceu. É uma aldeia com fornos de cal abandonados há muito. E fica para lá do derradeiro monte que limita os fins do mundo. Chega-se lá depois de passar muitas encruzilhadas, e é um lugar tão bonito que nem apetece deixá-lo. É aqui que Angelina vive, com uma cadela que se chama Luna. Ouve uma pessoa um nome assim e põe-se logo a fazer perguntas ao instinto.
A seu tempo foi Angelina mãe solteira, duma filha que vive na cidade. Trabalha no comércio, a rapariga, e Angelina está toda contente. Gosta mais de a ver longe neste ofício, do que perto a labutar no campo. Isto ressalvando a tristeza comum de ambas se encontrarem só de horas em quando. Mas um dia há-de-lhe dar uma netinha.
Angelina vive perto da fontana, ao lado duma represa que também serve de tanque de lavar. E, quando chega o Natal, faz todos os anos um presépio ali no jardinzito, para animação do povo. A casa fica além, debaixo da parreira, e vivem hoje nela a dona e a cadela, conforme antigamente lá viviam a filha e a mãe já velha. Sempre que voltava a casa, Angelina punha-se a fingir a voz duma vizinha, às punhaladas na porta com recados urgentes, para lhe fazer picardia.
– Oh que assim és tontinha, minha filha! - E riam ambas no fim.
Ao contrário do resto da aldeia Angelina não anda de preto, porque não é viúva. E por sobre ser uma mulher alegre, tem um espírito aberto, dado e solto. O melhor será chamar-lhe livre, porque o é. Ninguém lho amansou, que é o que sucede as mais das vezes, quando passa por cima das mulheres o rolo compressor da conjugalidade. Não é provável que Angelina tenha consciência disso. E foi com um largo sorriso que nos convidou para almoçar, um frango caseiro que já lá tinha ao lume.
À despedida ofereceu-nos um tantinho de nozes e castanhas. E confessou que, por esse mundo além, só lhe agradava ver a árvore de Natal numa praça do Porto. Disseram na televisão que não há outra maior, e ela acredita.

Meta-conversa, ou o discurso sobre a conversa

Este mundo está desgraçado, não vive senão de estímulos subliminares. Nada nele é mais sério que esse pouco. Já viste a publicidade que te cerca, a criar necessidades que não tens? Já viste a moda, o amor, a arte contemporânea, a própria literatura?! Repara-me neste texto:

O abelharuco, que tem o rabo longo, passa o tempo a estudar o relvado, hesitando entre a faia e a figueira. Não são, a bem dizer, os figos que o motivam, mas os grilos. Quando algum se arrisca no carreiro, mergulha em cima dele. Crucifica-o no bico, vai sentar-se num galho e come-o. Passou a manhã nisto.
Fora disso abriga-se na sombra e alarga as penas à brisa, a refrescar-se. Só volta ao chão se um grilo se aventura.
Mas quando a gralha, que tem a fala dura, espanejou as asas e desce do carvalho, logo o abelharuco desampara o relvado. Esquece grilo e tudo.


Bela fábula, dirás! Mas saberás por que a escrevi assim? Porque te surpreendo e te seduzo. A ti, que deixaste de ir ao campo, se alguma vez por lá andaste. Não sabes nomes de pássaros. Viste uma vez margaridas num portfólio de artista. E vives aterrorizado pelo buraco do ozono, o aquecimento global, o terrorismo inventado e a prestação duma casa. Sabes lá o que são abelharucos?!
É por aí que a fábula te assalta, e o discurso te belisca. Estimulando a tua ignorância. Tu já me viste este mundo?!

domingo, 2 de outubro de 2011

Até futuro aviso

Com a canzoada toda por aí à solta, a vinha está vindimada.
O resto vem no Borda d'Água
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