quarta-feira, 31 de maio de 2017

Deus nos pertuja!

O agente da GNR mandou à oficina um carro da corporação. E, uma vez reparado, voltou lá para o levar.
O mecânico quis fazer um teste de estrada na companhia do cliente, como é de norma. Entraram ambos no carro e o mecânico apertou o cinto antes mesmo de arrancar.
Reparo do patoléu: ó mestre, não é preciso esse cuidado! Então não estou eu aqui?!

terça-feira, 30 de maio de 2017

Ser lúcido

Às duas da manhã regressava eu a casa, vindo do Pátio do Seabra onde fora comemorar o aniversário dum amigo dilecto. Na 2ª circular um funcionário da TAP, encharcado em cocaína, entrou pelo panzer dentro e arrancou-lhe a roda direita à frente, mandando para a oficina outros três carros. A polícia nem lhe fez o teste adequado. Mas a Mercauto, ali a Sete Rios, em dois meses pôs aquilo num brinquinho.
No dito aniversário, dum mestre de cultura que tive na literatura da Uninova, estava ela. Era assistente, dava-nos o Gil Vicente, mas sentia-se insegura. E lá no meio das galinhas cacarejantes das humanidades, que eram as minhas colegas, era eu o seu apoio.
Ela andava em depressão, às mãos dum professor que se ia servindo dela enquanto divagava sobre o Cadornega. E um dia o psiquiatra chegou a receitar-lhe equitação terapêutica, que ela ia tomar à praça de Vila Franca.
Um dia não aguentou e engoliu o frasco inteiro das pílulas. Passou-se, sem eu dar conta.

segunda-feira, 29 de maio de 2017

Pão e laranjas

 À falta de pretexto melhor, hoje é feriado municipal. Comemora-se a batalha de S. Marcos, quando há 900 anos o alcaide de Trancoso, o de Linhares, o de Celorico e o de Ferreira de Aves esperaram pela hoste dos castelhanos que tinham ido a saquear Viseu.
Os chefes fidalgos, enquadrando grupos de campónios locais armados de chuços, dizimaram os castelhanos que voltavam a Castela com uma luzida récua a arrecadar o saque. A maior parte foi morta e aprisionada. E D. João I de Castela teve que reunir forças para voltar a invadir o reino, a caminho de Aljubarrota, onde ele próprio viria a sucumbir.
O povo ouve hoje discursos patriotas e faz um piquenique no planalto, porque deixou por uma vez os castelhanos a pão e laranjas. O mundo é que mudou, e as leis dele, e não há produtividade que resista!

domingo, 28 de maio de 2017

Lembranças

O Círculo de Leitores já não existe. Mas eu era sócio em 1970, e foi através dele que conheci Um Dia na Vida de Ivan Denisovich, de Alexandre Soljenitsin. Nunca mais me esqueci da importância que tinha uma migalha de pão para conservar a vida, nos campos de degredo do Stalin.
Eu morava então ali ao Califa, e aguardava lá por um transporte que me levava à Ota, onde me esperavam aviões da guerra da Coreia. Tão velhos, coitados deles, que já tinham fissuras na estrutura e limitações de manobra. Um dia o Barbeitos ejectou-se com fogo no motor, a cadeira não se separou do paraquedas e ele morreu esfacelado mas sentado.
Eu aproveitava os transportes para dormir, e às vezes também dormia quando estava de serviço na torre móvel. 
Do que veio a seguir nos Bijagós o melhor é nem falar. Nem sei porque é que me fui agora lembrar disto!

sábado, 27 de maio de 2017

Mestre

 
"Encontramos Safo já viúva e com uma filha. Intrigada pela fama de um certo jovem de beleza irresistível, e sequiosa de viver novamente o amor, Safo enamora-se de Fáon, um velho barqueiro de Mitilene que as artes mágicas da deusa Afrodita transformaram no mais belo rapaz que alguma vez existiu. Dizem que o seu olhar é de luz mas a sua alma é de gelo.
O drama reside em que a alma ardente e jovem de Safo, presa no invólucro da velhice, ama o corpo jovem de Fáon, que encerra um espírito velho e desapaixonado. Mas Safo parece ignorar essa diferença e entrega-se sem reservas à paixão pelo homem da barca de olho fenício." (da contracapa)
25 anos após os aclamados A CASA DO PÓ e A SALA DAS PERGUNTAS, Fernando Campos, da universidade de Coimbra, deixou-nos ainda A ROCHA BRANCA, romance de 2011.

sexta-feira, 26 de maio de 2017

Revolução ou cultura?

 
Este álbum do Sgt. Pepper's, surgido em 1967, transformou radicalmente o mercado da música ligeira.
Nada voltaria a ser igual, com o aparecimento dos Jefferson Airplane, os Doors, os Pink Floid, os Procol Harum, os Bee Gees, os Moody Blues e os Rolling Stones.
Parece fácil mas não foi. Os Beatles gastaram 700 horas do melhor estúdio de gravação de Londres e 40 músicos entre os quais um cravista, para apresentar isto. Entretanto ouvia-se por cá o António Calvário.

quinta-feira, 25 de maio de 2017

Última tentação

Então ela quis tentá-lo definitivamente. Olhou bem em volta, com extrema atenção. Mas só conseguiu encontrar uma pera pequenina e pálida.
Ficaram os dois numa desesperante frustração.
Não há dúvida que o Paraíso está a tornar-se cada vez mais chato!

quarta-feira, 24 de maio de 2017

Poço sem fundo

Não sei bem o que a vida seria, sem música, sem literatura e sem pintura. Uma das minhas frustrações há-de ser partir um dia para a eternidade sem levar um instrumento musical, para lá tocar. Ainda assim imagino o que ela será, passada entre cus de anjinhos loiros e cânticos de louvor.
Era eu pouco mais que infante, na mão dos jesuítas (chamo-lhes assim!), quando obtive permissão para passar os intervalos em frente duma pauta de música, em vez dos jogos. Havia em cada sala uma organeta de pedais, que simulava um órgão. Passado um tempo e já se ouvia cá fora um arremedo duma sonata de Bach. Havia quem passasse e fosse ver. A nossa vida é mesmo um poço sem fundo!

Revolução

O Rogério afirmou, convicto:
- É para sexta-feira. Sem falta.
- Sexta-feira? - espantou-se o Antunes, sem perceber lá muito bem.
Sim, claro. Sexta-feira - insistiu o Rogério. - Saimos prá rua. Está tudo combinado. O que é preciso é a ditadura do proletariado. Então não te disseram nada?
- Não tenho estado por cá estes últimos dias - retorquiu o Antunes, um pouco enfiado. - Mas vamos fazer o quê, na sexta-feira? Confesso que só ouvi falar vagamente nisso. Não tenho estado cá, já te disse.
O Rogério franziu o sobrolho.:
- Que diabo, homem! A revolução. Que querias que fosse?
- Ah, pois! - O Antunes pareceu aliviado. De repente sobressaltou-se:
- Mas olha que sexta-feira é já depois de amanhã. Achas que há tempo?
- Está tudo preparado - acalmou-o o Rogério. - A Tucha traz-nos as metralhadoras na quinta-feira à noite, depois do jantar. Na sexta, às oito, oito e um quarto da manhã juntamo-nos com o nosso núcleo.
O Antunes parecia um pouco desconectado:
- Mas há bastante gente?
- Claro, homem, claro. Temos os camponeses e os operários connosco. É a tomada do poder. Rápida, fulgurante, sem dar tempo a qualquer recção revisionista. É tiro e queda, é o que eu te digo.
- E temos bombas? - perguntou o Antunes, já entusiasmado.
- Temos, evidentemente.
- Bastantes?
- Ó Antunes, esse teu anarquismo latente ainda dá cabo de ti. São bastantes, sim.
- Então vou.
O Antunes esfregou as mãos, encantado, e saiu batendo com a porta.
Na quinta-feira a distração era geral e os grandes chefes partidários continuavam a descompor-se mutuamente, com excelente eficácia. Tudo óptimo. Mas na sexta-feira começou a chover a potes, logo de madrugada. E não parou mais. E esta, hein!
Foram todos para a discoteca do Martinelli, no carro do Jonas. Ouvir canções revolucionárias cubanas e música chilena.
Por sinal que a música chilena é bem bonita.

terça-feira, 23 de maio de 2017

Boneco

"São no entanto os portugueses que estão de parabéns neste dia e são, sobretudo, os portugueses quem hoje quero felicitar". (O laparoto, hoje, no DN)

Ó Láparo, cá por mim vai felicitar o caralho! Percebeste ou faço-te um boneco?

Cravo

Então quando o Verão chegava, a Casa de Mateus distribuía em Vila Real a cultura musical pelos municípios da região. Recebia revoadas de músicos que enviava pelo distrito. E foi assim que em Amarante conheci o mestre do cravo, Gustav Leonhardt, na igreja de S. Gonçalo.
À noite, os espectáculos musicais eram na eira, num anexo agrícola da Casa. Ouvi lá a dona moderna da zarzuela espanhola, Alicia de la Rocha.
Mais tarde as coisas mudaram, os artistas deixaram de vir, a música enclausurou-se na Internet e desapareceu dos nossos verões. Só nos ficou aquele inesquecível luar nocturno e algumas constelações no céu.

Mário Henrique-Leiria

"O MÁGICO ENCANIZADO

- Então que é que você quer que eu faça? - retorquiu zangado o Samuel. - Naturalmente pensa que posso mesmo fabricar coelhos, não?
- Mas, ó Sam, isso de só tirar caramelos e chaves velhas do chapéu , não dá nada. Ninguém acredita, que diabo! Um caramelo, uma chave, ora bolas, então que magia é essa?
-E você paga o coelho? E olha que o coelho, às vezes, até sai correndo que ninguém mais o apanha.
Fizemos um acordo. Eu fornecia os coelhos, as fitas coloridas, até mesmo as bandeiras patrióticas, tudo o que fosse necessário para surdir do chapéu. Depois era com o Samuel isso do espanto popular.
E deu resultado. Lá íamos.
O Sam esmerava-se, saía tudo daquele chapéu magnífico e tubular. A mulher dele, em cuecas e um sutien americano, dava o apoio conveniente e as crianças funcionavam, trazendo a mesa de pés dourados e o saco preto dos mistérios e pasmos.
Mas houve certa altura em que verifiquei, com alguma reserva, que embora as fitas, as bandeiras das pátrias e até os caramelos e as chaves continuassem a sair em abundância, coelhos nenhum.
Deixei seguir, porque a assistência lá ia aplaudindo e eu também tinha o meu número com aquela bendita onça que só me dava dores de cabeça e arranhões razoáveis. Deixei seguir mesmo.
E de coelhos nada.
Foi então que notei que as crianças do Sam tinham um aspecto muito saudável e anafado.
Quando a onça resolveu ficar mais bonitinha e deixou de me dar ralações, achei que era altura de inquirir.
- Vamos lá saber, ó Sam. Estou pagando coelho e mais coelho, todos os que você pede e, nestes últimos dias, não tenho visto surdir nenhum desse chapéu desgraçado. Que diabo anda você fazendo com eles?
E, ostensivamente, mirei os três filhos do mágico que, rechonchudos, pasmavam para a nossa conversa.
O Samuel não gostou. Achou abuso.
- O número agrada ou não? - retorquiu, enfezado.
- Bem, não se trata disso. O que é preciso é fazer sair coisas graúdas do chapéu, coisa que pareça que não cabem lá, coelhos, por exemplo.
- Se o caso é esse, de coisas graúdas, não se preocupe você com os coelhos. Não se preocupe, é o que digo, que hoje à noite vai ver.
E afastou-se, encanizado.
À noite a função correu como de costume. O trapézio funcionou certo. a minha onça não me arranhou excessivamente, os palhaços esbofetearam-se com a dignidade devida e chegou o número do Sam.
Começaram a sair as fitas e as bolas. Aplausos. Vieram os caramelos atirados p+ara a assistência. Mais aplausos, o chapéu parecia inesgotável. E então, ó coisa inaudita, primeiro um, depois outro, finalmente o terceiro, os três filhos do Sam, sorridentes e saudáveis, saíram também, lentamente, com extrema precisão, daquele chapéu alucinante."

segunda-feira, 22 de maio de 2017

Estes dias tempestuosos

" (...) Por mais negro que se apresente o futuro imediato, nem tudo está perdido. A humanidade dá-de sobreviver pela fé e a esperança, o amor e o sofrimento de um punhado de homens que se encontram em todos os campos, dispersos por todos os partidos e em todas as nações, os homens que dizem: "a despeito de tudo, aconteça o que acontecer, eu creio". São eles a raiz sagrada, o contingente salvador. É nos seus corações que está guardada a força que alentará a ressurreição, quando a aurora dissipar os terrores da noite. (...)
O mundo não se destrói ou cai, com descobrimentos e invenções, nem com o tropel dos exércitos ou o estrondear produzido pelos aviões de bombardeamento. O mundo levanta-se ou tomba em virtude das leis da vida (...)".  

Regabofe

A quantidade de sindicatos da PSP tende para um infinito irracional. E cada um deles tem direito a ausência do trabalho para actividades sindicais. Alguns deles têm apenas um filiado, que é também (claro!) dirigente nacional.
Um dia lixam-se e depois queixam-se.

domingo, 21 de maio de 2017

Ilusões

Hoje ninguém se lembra disso, nem os próprios. Mas houve um tempo em que os retornados, os maiores iludidos pela história, voltaram ao cais de embarque trazidos pela ponte aérea internacional.
Em todos os municípios encontro o bairro deles, feito de casas de madeira da solidariedade sueca. Eu passo, e penso, e concluo.

Há cem anos

Foi assim, em festa engalanada, que há cem anos chegou o ligeirinho pela primeira vez a Duas Igrejas, que ficou a estação terminal.
É que já houve um tempo em que se inovou em Portugal! E eu ainda tive o privilégio de fazer no ligeirinho uma grande parte da viagem.

sábado, 20 de maio de 2017

Tempos

Já não sei onde  é que li. Que uma universitária de Braga (?) acabou em cuecas num autocarro dos STCP do Porto, cavalgada pelo namorado impaciente. O resto dos colegas alheou-se, compreendeu. E o motorista nem viu.
Mas alguém pôs imagens no fècebuk, porque hoje morreram as privacidades. O Correio da Manha deu-lhes eco, é do que vive. E a minha alma fica parva, ela que não é puritana penitente.
Eu não sei se isto é verdade. Se o for, em vez de frequentar uma universidade, a esta pêssega fazia-lhe bem um servicito cívico, que já houve. Noutros tempos!

sexta-feira, 19 de maio de 2017

Mário Henrique-Leiria


ANTI-PROVÉRBIO

Usando do direito lhe é conferido pelo provérbio, o Gato estava muito bem escondido atrás da porta, com o rabo de fora.
Passou o Cão. Viu aquilo e disse:
- Olha uma salsicha! - E zás, deu-lhe logo uma dentada.
- Irra que é bruto. O senhor não vê que isso é o meu rabo! - Informou o Gato, abespinhado.
- Ora essa, - retorquiu o Cão - quem tem uma salsicha com um gato na ponta, não a põe de fora. - E seguiu o seu caminho.
                           Donde se conclui que a lógica deverá ser: rabo escondido com gato de fora.

quinta-feira, 18 de maio de 2017

Psicopatas

" (...) A moderna psicanálise permite-nos compreender, em certa medida, as perigosas consequências do instinto de domínio. O europeu degenera facilmente nos domínios tropicais.
É incontestável que entre os milhares de jovens europeus que partem todos os anos para servirem como administradores, agrónomos, organizadores e feitores se encontra uma pequena minoria de idealistas, que prestam real auxílio à população nativa. Mas poucos são capazes de subtrair-se à influência desmoralizadora do meio em que se acham. Raros resistem à terrível tentação dos poderes quase ilimitados de que o homem branco desfruta ali.
Além disso, em vez de melhorar, o nível intelectual e moral dos homens que vão para as colónias baixa constantemente, porque um número sempre maior é exigido. Observadores conscienciosos do sistema colonial africano (...) anotaram o facto de que uma alta percentagem dos guardas das plantações perdem o seu equilíbrio mental. Sob a influência da solidão, do tédio, do álcool, de condições sexuais e sociais anormais, eles transformam-se em psicopatas. O mesmo se dá com as tropas. Toda essa gente tem propensão para vingar-se dos seus padecimentos mentais em pobres criaturas indefesas. As vítimas não ousam queixar-se.
A raça dominante, os exércitos coloniais e as companhias de exploração são uma só coisa: trabalham de mãos dadas. Não há meio de escapar-lhes. Nenhum meio, excepto um gigantesco S. Bartolomeu, isto é, uma matança de todos os brancos.(...)
O homem branco, ao destruir o sossego mental do indígena, matou o seu próprio. Ambos são acossados pelo medo. (...).
A nossa expedição foi à África recolher danças e canções, porque os indígenas dançam e cantam cada vez menos. A arte nativa vai desaparecendo. A escultura em madeira tornou-se tão rara que conseguimos com dificuldade poucos espécimens. (...) A cobiça está transformando um continente inteiro num mundo de sangue e de lagrimas".
[Estes Dias Tumultuosos, Ed. Livros do Brasil, Lisboa, 1946]

Vidas


Isto anda tudo ligado, o mais difícil é juntar as pontas!
Entre esta narrativa do espanhol Javier Cercas, que em 2014 conheceu o sucesso, e o cartapácio do Pierre van Paassen holandês, que fui descobrir num alfarrabista do Porto em tempos idos, editado em Lisboa em 1946: as dores de dentes dos potentados industriais europeus depois da 1ª guerra mundial; os inícios do pós-guerra civil espanhola e as atrocidades do generalíssimo Franco; os charnegos miseráveis; o lúmpen dos subúrbios de Girona, o bairro do chino, o Gafitas que seria advogado de sucesso...
Mal comparado e com elementos novos, parecem os tempos de hoje. Quem dera que os nossos escribas caseiros se deixassem de merdas e aprendessem alguma coisa! 

quarta-feira, 17 de maio de 2017

Nasceu há 150 anos



If...

Se uma cidade, capital de distrito, constrói um centro comercial enorme em oito pisos, que só funciona à custa de escadas rolantes e dois elevadores, com um dispêndio absurdo de energia;
Se além disso o dito monstro destruir a cintura de muralhas medievais, com um anexo de vigas e ferralhas modernistas que ficou devoluto e não tem destino comercial visível;
Se os pavimentos das ruas e os passeios dos peões são um mar de riscos permanentes  para os utentes mais idosos;
Se os jardins e árvores e torreões da cidade são um pasto onde repoltreia uma corja de autarcas paraquedistas, que vieram de longe a construir currículo;
Se os cidadãos do burgo assistem a isto tudo na maior das indiferenças...
Então a cidade só pode ter o destino que a espera: a irrelevância, o abandono, a desertificação.

terça-feira, 16 de maio de 2017

Poder local democrático.

Convenhamos que o nome era algo possidónio: Centro de Investigação Gastronómica! Tratava-se dum velho lagar de azeite abandonado à ruína, ali à curva do rio, um lugar bem aprazível. A cozinha servia velhos sabores, antigas iguarias que os lagareiros usavam ao almoço, nos intervalos da faina.
Não havendo empresários futricas com capacidade para o reconstruir, a câmara tomou isso a seu cargo. E fê-lo bem. O interior era em pedra, da decoração constavam antigas mós, equipamentos e prensas que vieram do Rossio ao Sul do Tejo. 
Em vez de concessionar o restaurante, a câmara explorou-o durante vários anos, pendurado no orçamento. Os clientes começaram a afluir e eram bem servidos.
Um dia a câmara decidiu concessioná-lo. Mas colocou a fasquia tão alta que nenhum privado lhe pegou. O pessoal foi para a rua e o restaurante fechou, aguardando uma ruína nova.
Agora, quinhentos quilómetros em volta não há restaurante onde valha a pena ir. E aumentou a desertificação do interior, neste tristonho país.

segunda-feira, 15 de maio de 2017

Parasitas

(clicar)
 
" (...) Os parasitas das forças policiais, com a autoridade discricionária que lhes foi conferida, conseguem aterrorizar os cidadãos. Só num país estruturalmente autoritário e tristemente xenófobo é que há tanta gente a achar que um polícia, só por ser polícia, tem de ser obedecido, e pode agredir quando, como, e quem lhe apetece."

Mário Henrique-Leiria

O REPOUSO DO GUERREIRO
 
Depois de ter andado bastante tempo de um lado para o outro, voltou a casa, já com 50 anos.
Trazia um bicho. Uma panterazinha negra de seis meses, cheia de ternura, amizade e dentes.
Então resolveu ficar sentado, olhando a televisão, os livros, alguma música e várias bebidas.
Três anos depois, ou talvez um pouco mais, não estou agora certo, alguns amigos acharam graça ir visitá-lo.
Foram.
Bateram à porta.
Apareceram dois meninos a abri-la. Dois meninos escuros, com dentes eficazes e sorriso amigo. Rosnavam ternamente.

domingo, 14 de maio de 2017

Parasitas

O cabrão do cuco anda num frenesi. Está doido por deixar um ovo no ninho duma pássara ingénua.
Do ovo há-de nascer um monstro de que a pássara se ocupa. Ele ficará a destruir-lhe a ninhada, enquanto o cuco vai à vida dele.
Mas para o ano há-de voltar. E voltará outra vez, enquanto durarem as ingenuidades da pássara.
O resto agora é só mutatis mutandis.

sábado, 13 de maio de 2017

Alienação

 
À primeira olhas para a idolatria e a superstição de Fátima e sorris.
Se mergulhares mais, interrogas-te à segunda.
Mais fundo ainda, entendes a alienação de séculos de inquisição e jesuitismo farisaico.
Acabas finalmente por chegar à explicação deste fadário secular, com a cobiça da pimenta. Pois chegaste ao tempo em que nos levaram a deixar de ser o povo que já fomos. Ao serviço de elites de farsantes.

sexta-feira, 12 de maio de 2017

Diagnóstico

" (...) Encontrar dois alemães na Legião Estrangeira nada tinha de extraordinário, a falar verdade. No tempo da República de Weimar nada menos de sessenta por cento do pessoal daquela brigada, eternamente em campanha, eram rapazes alemães. (...)
Eram de Stettin, ambos sub-tenentes na Legião, com dois anos de serviço em Marrocos contra os cabilas do Riff em seus assentamentos e três anos na Síria, para onde tinham vindo no tempo da revolta dos drusos. Um deles possuía a Croix de Guerre com diversas palmas douradas e o outro a Legião de Honra, conquistada au péril de la vie, dizia ele risonhamente. (...)
A conversa derivou para a Alemanha, a pobreza a que estavam reduzidos os parentes dos dois oficiais, a inflação, a acção de Herman Mueller  no Ministério dos Estrangeiros, o Presidente Hindenburgo e o nascente partido nacional-socialista. (...)
Nós perguntámos aos nossos dois companheiros por que se haviam alistado na Legião Estrangeira. Os legionários não gostam de falar nesse assunto. Esses homens têm em geral algum motivo oculto, completamente alheio ao desejo sentimental de aventura e romance, como gostam de imaginar os leitores de certo tipo de novelas. Essa unidade guerreira, cujo lema doméstico é Marche ou crève, unidade votada à missão impopularíssima de esmagar a resistência dos movimentos nacionalistas e patrióticos, perdeu há muito tempo o seu prestígio romântico. (...) E com efeito se Djemal Paxá pudesse oferecer-lhes pilhagem mais abundante do que os ingleses, eles teriam lutado do nosso lado. Mas nem a Turquia nem a Alemanha possuíam o ouro com que os ingleses carregavam caravanas inteiras, para conservarem a aliança dos xeques. (...)
Entretanto os operários dos populosos bairros de Wedding e Berlin-Ost tinham, por sua própria iniciativa, começado a rechaçar as tropas de assalto nas ruas. O instinto do povo não o enganava: chegara o momento de lutar, e lutar com afinco. Os operários exigiam acção. Mas nos círculos superiores do partido marxista reinava uma confusão inimaginável. (...) Os telegramas de Moscovo tinham recomendado cautela. - Que venha Hitler! Nós seguiremos Hitler! - disse Herr Thaelmann, repetindo o diagnóstico da situação feito por Stalin. (...)"
(Pág. 193 e seg.)

quinta-feira, 11 de maio de 2017

A bruxa vermelha

Tou como dizia o outro: eu não acredito em bruxas,  pero que las hay... E se isto não era um mau presságio, mais parece. Há muitos anos hesitou até ao último minuto, no dia do casamento. Chegou atrasada igreja, deixando o noivo à espera.
Não dispensava, mais tarde, os encontros de médiuns. Os crentes reuniam-se em volta duma mesa, punham o prato a rodar... e o ladrão movimentava-se. Não sei se eles viam quem estava no outro mundo, se falavam com o além. Mas que o prato se movia...
Depois de ter regressado do primeiro exílio, sem ela eu teria naufragado. Nunca fui um proletário, não sabia manter-me sem trabalho, sem profissão, sem família, e reconstruir a vida ao mesmo tempo. Nunca a tinha conhecido, mas sem ela não ia lá das canetas. Foi o que terão pensado uns amigos comuns, que se davam com ela e nos ligaram.
Fui viver para casa dela, seguindo o que há anos era a sua prática, a determinações do comité central. Dava albergue passageiro a amigos políticos, muitos deles eram pretos africanos que em Lisboa necessitavam de apoio.
Comigo foram diferentes as coisas, quantas vezes acontece a realidade impor os seus direitos. Foi assim que ela criou aquela paixão por mim, e um dia deixou expresso: se não vieres a ser meu, não haverá mulher na tua vida. Porém eu nunca pude ultrapassar a diferença de idades.
Não havia problema que nas mãos dela não tivesse solução. Porque trabalhava em rede, em qualquer ponto do país parecia ter apoios eficazes. O exemplo mais flagrante, intrusivo e doloroso foi logo que eu quis organizar a minha vida no Norte. Montou um sistema organizado de destruição da mulher que eu conhecera, e sabia muito bem as nossas fragilidades. 
A mim poupava-me sempre, mas foi impiedosa para ela. Para o que ela não fazia, lá estava o bruxo encartado: contratava marafonas que faziam escândalos na rua a achincalhá-la, encomendava serviços a ciganada... e a pobre da rapariga claudicou. Acabou por cair no único refúgio duma igreja marginal, que trocava diáconos por rituais e dízimos. E o resto da vida que ambos fizemos, encurralados entre a angústia, a dúvida e o medo, acabou por afastar-nos.
Já o primeiro exemplo fora uma namorada que tive em Berlim e era fotógrafa. Tinha ela um projecto para realizar e um salário para o fazer. Consistia em fixar em imagens as mudanças intensas que a Alemanha tinha em curso com a unificação. Ela saía, instalava o aparato técnico nas fábricas, fazia os preparativos. E no momento de disparar a máquina, claudicava. Eu não podia entender um tal fenómeno, acabei por abandonar o campo de batalha e voltei a Portugal.
Embora contrariado, hoje estou só. Mas também ela já não tem a energia antiga, nem a rede de influências, nem os poderes que isso gera. Por certo se sente condenada e frágil, isso há-de tirar-lhe o sono. Mas porém, cá se fazem...

quarta-feira, 10 de maio de 2017

O parque municipal

Uma das coisas que caracteriza e distingue o burgo de Trancoso é o parque municipal. Foi criado aqui há cento e tal anos, por um autarca ilustrado. Isso não basta para que os indígenas lhe dêem  a importância que merece. Passam-lhe ao lado e é pena.

"O parque não é espelho de cuidados, nem parece ser objecto de paixões desenfreadas. Não é caso de admirar. O viajante deixa-se levar pelas ruelas de saibro, pelas várias naves desta catedral pagã. São altíssimas as copas, sempre a disputar o sol, já que não pode esta faia chegar-se àquela tília, ó vizinha dê-me lume. Lá tem a natureza as suas regras, assim as cumprissem todos. (...)
Ainda hoje um tal cuidado é cativante. Mas não explica donde vieram estas faias, e os cedros do Himalaia, e os bordos da Noruega, e os castanheiros da Índia, e os ciprestes do Arizona, e as tuias americanas, e os variados carvalhos, e os teixos, e os mostajeiros, e as sequóias sempre-verdes, os abetos brancos e os do Cáucaso, os pinheiros insignes e os silvestres e os da Ponderosa, os freixos e azinheiras e plátanos e robínias, os loureiros reais e os ulmeiros, os castanheiros e sobreiros, e o mais que este viajante não sabe identificar."
(Portugalmente - Peregrinação da Lapa a Riba-Côa, Ed. Âncora, Lisboa, 2012)
Andaram aqui uns especialistas da flora de Serralves e classificaram isto tudo. A maior parte das tabuletas foi vandalizada, e os nomes já se perderam. Que nos valha um deus pagão!

terça-feira, 9 de maio de 2017

O livro de Cesário Verde

DE TARDE

Naquele pic-nic de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampamos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia

Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!

segunda-feira, 8 de maio de 2017

Máro Henrique-Leiria

A FAMÍLIA

Vamos à pesca
disse o pai
para os três filhos
vamos à pesca do esturjão
nada melhor do que pescar
para conservar
a união familiar
a mãe deu-lhe razão
e preparou
sem mais detença
um bom farnel
sopa de couves com feijão
para ir também
à pesca do esturjão
e a mãe e o pai
e os três filhos
foram à pesca
do esturjão
todos atentos
satisfeitíssimos
que bom pescar
o esturjão!
que bom comer
o belo farnel
sopa de couves com feijão!
e foi então
que apanharam
um magnífico esturjão
que logo quiseram
ali fritar
mas enganaram-se na fritada
e zás fritaram o velho pai
apetitoso
muito melhor
mais saboroso
do que o esturjão

vamos pra casa
disse o esturjão

Estilhaços

Foi então, a meio duma tarde, que chegou um alferes do batalhão da Cuimba, com o pelotão de morteiros. Tinha um vago tique aristocrata, amamentava exóticas ideias monárquicas, e frequentava o quarto ano de medicina quando o despacharam para os sertões do  Congo.
Estacionou os dois burros do mato em frente do que sobrava da sé catedral resumida a umas paredes (o templo católico mais antigo a Sul do Equador!), mal saudou os aviadores que despejavam bidões de gasolina nuns aviões cobertos de poeira e dirigiu-se a casa.
A mulher era legista, praticava de notária, servia de magistrada. Morava numa casa da avenida e estava ausente em Luanda, na companhia dum alferes médico.
O artilheiro reuniu o pelotão, montou nos burros do mato e regressou à Cuimba. Mandou formar no meio do terreiro, meteu uma bala na câmara da Walther que lhe pendia à ilharga, e descarregou nos miolos os nove milímetros dela.
Uma semana depois a história já estava morta. Ninguém gosta de viver com estilhaços que matam.

domingo, 7 de maio de 2017

Líricas

 
 (Soneto XIII de Manuel Maria Barbosa du Bocage, nascido em Setúbal em 1765. Faz parte das suas Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas).
 
É pau, é rei dos paus, não marmeleiro,
bem que duas gamboas lhe lobrigo;
dá leite, sem ser árvore de figo,
da glande o fruto tem, sem ser sobreiro;
 
Verga, e não quebra, como o zambujeiro;
oco, qual sabugueiro, tem o umbigo;
brando às vezes, qual vime, está consigo;
outras vezes mais rijo que um pinheiro;
 
À roda da raiz produz carqueja;
todo o resto do tronco é calvo e nu;
nem cedro, nem pau-santo mais negreja!
 
Para carvalho ser falta-lhe um u;
adivinhem agora que pau seja,
e quem adivinhar meta-o no cu.

sábado, 6 de maio de 2017

Exercício prático

"Estavas tão tétrica
Tão meditabunda
Que eu medi-te a bunda
C'uma fita métrica."

Trata-se de saber de que comunidade de falantes chega o autor!

sexta-feira, 5 de maio de 2017

Mistificações

Esta foi uma das maiores do século passado, com o sol a andar a dançar no céu, a 13 de Outubro de 1917. É a prova mais real dos acontecimentos da Cova da Iria. 
Os letrados procrastinam. Os crentes, esses pobres, maravilham-se. As elites rejubilam. Parece hoje!

quinta-feira, 4 de maio de 2017

In illo tempore*

Já não sei o que fazia, num lugar daqueles, um alferes de artilharia antiaérea. Mas o facto é que ele estava lá e era melómano.
Foi ele que me deu a novidade de que a Olga Prats e o Bruno Pizzamiglio davam um recital em Carmona, esse lugar implausível.
A mim coube-me pensar que o Auster era o meio de transporte mais adequado e rápido para andar 50 Km e ir lá ouvi-los. Muito mais do que o jipe de volante à direita que os sul-africanos ricos tinham oferecido à esquadra. Além disso era domingo... O comandante da esquadra não colocou objeções e eu lá fui.
Tinha conhecido há tempos a cinturinha de vespa, uma cachopa da terra, numa festa de aniversário. Ela acabara de sair das mãos dum alferes do arre-macho que terminara a comissão e regressara a Lisboa.
Antes de ir para o auditório passei pela casa da cachopa. E foi lá, durante a tarde, que descobri que ela tinha a cintura mais elegante que já me foi dado ver. A mãe manteve-se discreta, e o tempo foi escorrendo, entre blandícias. Até me esqueci do recital. A certa altura olhei pela janela e vi que a noite chegava.
Saí à pressa, e um táxi levou-me ao aeroporto. Meti-me no Auster, arranquei para a pista sem outras delongas, e iniciei a descolagem montado na roda esquerda, que era o meu hábito. O crepúsculo era naquelas terras um intermezzo breve, quando iniciei a subida os montes em volta eram uma escuridão. Tão densa como o painel de instrumentos, que não tinha iluminação.
O regime e as rotações do motor eram de ouvido. E eu fui subindo até me parecer altura de nivelar. Ainda acendi um isqueiro, para ver a pressão do óleo. Quanto à rota, uma estrada que passava lá em baixo, com faróis de viaturas ocasionais, era boa referência.
Às tantas apareceu na rádio a voz do controlador da base, a repetir chamadas insistentes. Eu respondi, dei-lhe um tempo de chegada, até que vi ao longe uma pista descomunal, em parte balizada por candeeiros de petróleo. A torre estava à minha espera. Fiz aproximação directa e aterrei na perfeição.
O comandante da esquadra estava no gabinete, à minha espera. Mal sabia que eu trazia os olhos cheios da cinturinha de vespa. Cuidou que era o piano da Olga Prats a enfeitiçar-me. Eu não desfiz o engano  e ele mandou-me ir para a cama. Desarmado.
*Nesse tempo a Olga Prats era assim. Eu não a vi mas contaram-me depois! 

Velho do Restelo

É uma das figuras mais injuriadas e mais caluniadas do sótão da nossa história. E no entanto o poeta deixou dele uma visão positiva, sem auréolas pintadas nem coroas de louro falso.
Era um velho de aspeito venerando, tinha um saber só de experiências feito, e tirou do experto peito anátemas de bom-senso: contra a glória de mandar e a vã cobiça, contra a temeridade que põe em risco a vida, contra as promessas falsas que o povo néscio enganam, contra a vaidade que enleva a fantasia, contra a feridade a crueza a que puseram nome esforço e valentia.
Tresleram-no desde logo os poderosos do reino, que das misérias alheias sempre encheram a barriga. Crismaram-no de timorato e de cobarde. O néscio povo seguiu-lhes o exemplo, e agora já é tarde para mudar.

quarta-feira, 3 de maio de 2017

Ruínas

 
(Os fornos crematórios eram todos iguais e eram isto.) 
Em 1976 nos arredores de Berlim havia sepulturas pelos bosques, de soldados soviéticos caídos em combate. Tinham flores, e homenagens e cuidados. Na cidade havia o monumento em Treptower Park, ao soldado soviético que tomou Berlim.
Em 1995, numa aldeia distante, ao lado dum cemitério comum havia também um cemitério judaico, com pedrinhas nas campas e nas áleas. Na aldeia passava uma linha de caminho de ferro que vinha do Sul.
Os nazis queriam esconder a hecatombe da solução final e dos campos de concentração. Mas o Jukov já vinha perto, a caminho de Berlim. Então os nazis atulhavam vagões de gado com prisioneiros e mandavam-nos para o Norte, para o Báltico, na esperança que o mar lhes oferecia de se desfazerem deles.
O comboio parou aqui, abandonado nos carris. E foi dos mortos que nele foram achados que o cemitério se fez.

terça-feira, 2 de maio de 2017

Plutocracia 2 - Belle-Époque

"As exigências do meu trabalho levavam-me para rumos bem diferentes: para o meio de intelectuais fatigados, cuja força criadora se mirrara num simples desejo de entreter e agradar; homens e mulheres que viam na poesia, no amor, no sacrifício e até na dor humana tão somente motivos para silogismo e jogos de espírito. Eram eles os artistas que tinham nascido bem-fadados, que não criavam nada, e contudo davam a nota nas rodas cosmopolitas de arte e literatura; autores de bom ton e de bonne compagnie que escolhiam bem as suas palavras, untavam-nas bem, para que elas entrassem por um ouvido e saíssem por outro sem atritos, sem tocar em nada à passagem; críticos cuja ocupação principal era manejar a escova de polir; os petits précieux de Molière, excentricamente trajados, de maneiras impecáveis, que compunham doutrinações para os jornais sólidos e bem pensantes, financiados pelos trusts das munições e pelos reis do aço; poetas que pontificavam e super-realizavam, supra-inspirados; mulheres que pagavam a aristocratas decaídos para irem visitar em sua companhia os bas-fonds de Montmartre e verem um proxeneta deitar-se com a sua amante dentro dum ataúde, ou um gigolô negro sodomizar uma mulher branca; (...) financeiros que exploravam plantações de borracha no Senegal, canaviais na Cochinchina, bananais na Guiné, minas de ouro no Cameroun e cinemas em Marselha e Buenos Aires. Toda essa gente refinada andava constantemente em busca de novas sensações, novos arrebiques, novas emoções, novos frissons em arte, amor e literatura. (...) Queriam a arte sintética, confundiam publicidade com fama, e imaginavam que podiam comprar a paz de espírito como se compra um par de chinelos num bazar. (...)
Uma das minhas incumbências era a de investigar os mistérios do Bosque de Bolonha, os deleites dos bares de Montmartre, as alegrias dos cabarets do alto da colina, onde dezenas de milhares de americanos esbanjavam milhões de francos em prazeres duvidosos. Estávamos no meio daquele afluxo anual de turistas que atingiu o auge no Verão de 1929, e nunca mais se repetiu. Eles desciam sobre Paris como um nuvem de mosquitos, machos e fêmeas, magros e rechonchudos, homens de óculos, mulheres de saias curtas, brancos e pretos, ricos e pobres. O franco andava cotado a quarenta e cinco por dólar, e os títulos americanos subiam vertiginosamente. (...) A lotação das Follies-Bergères era vendida com uma semana de antecedência, as mondaines dançantes achavam-se todas tomadas às seis da tarde. A América queria dançar! (...)".

Gato por lebre

Apanhadas entre fogos cruzados múltiplos, as galinhas extinguiram-se em Espanha, durante a guerra civil. Com elas foram os ovos.
É por isso que, no fim, quando a guerra terminou, os compradores de Castela e de Leão vinham a Portugal comprá-los. Paravam aqui na aldeia e matavam a fome na taberna.
É claro que havia a eterna dúvida, quando se sentavam à mesa. A cozinheira jurava que era coelho, mas eles suspeitavam de que era gato, a que chamavam romízio.
Depois lá iam, a alimária carregada de ovos. Por cá ficou apenas a expressão.

segunda-feira, 1 de maio de 2017

Plutocracia*

Li-o a primeira vez emprestado por um amigo, no Porto. Era ele um velho stalinista que só ouvia as prédicas do comité central, o que hoje se compreende muito bem. Mas depois tive que lho devolver. E foi num alfarrabista que acabei por encontrar o exemplar que hoje tenho em casa.
A minha leitura dele é agora diferente. Mas continua a ser instrutiva e cativante. Não é um manual de história de encartados, porque é melhor. Passa nele a vida das pessoas, a que tem sangue e lágrimas e dramas.
É a história duma loucura antiga, de há cem anos, que as elites repetem conforme lhes convém. Com dados novos, como era de esperar. 
" (...) Tinha imenso respeito a esses homens, que ousavam remar contra a corrente. Vejo agora que eles foram os legítimos heróis da guerra. Expostos ao opróbrio do mundo pelas nações cristãs, curtindo anos na cadeia e nos campos de concentração pelo crime de se haverem negado a assassinar, eram eles os verdadeiros campeões dos princípios cristãos mais básicos e essenciais. (...)
Das verdadeiras causas da guerra nada sabíamos. E esta foi uma das lições que me ensinaram as lancinantes experiências da guerra: o dever de revelar ao meu próximo o que me foi dado conhecer das engrenagens que provocam tais catástrofes. Os alemães não são mais bárbaros que os outros povos. A guerra não é consequência dos instintos bestiais do homem, mas o fruto de profundos antagonismos sociais, que opõem às forças naturais os interesses constituídos. Não só a guerra, como também a ruína e a decadência que feriram todas as nações após a guerra, são resultado do mesmo desajuste fundamental: a exploração duma maioria produtiva por uma minoria locupletada. (...)".
(NOTA: De facto, o conceito que parece abranger o essencial da questão aqui posta em causa parece ser o de plutocracia alienada dos povos, ainda em vigor.)

Peregrinação

"(...) Na estrada a tabuleta anuncia o Solar dos Brasis, na aldeia chamam-lhe a casa das fidalgas. Seja ele como for, é um insólito lugar. E o viajante já por aqui andou alguma vez, atraído pela gala das talhas, pela febre das cores a gritar nas madeiras, pelo mistério simétrico das janelas, a fingir horizontes pintados nas paredes.

O viajante empurra um portão carcomido. Mas não encontra o Gastão, sentado atrás da bancada, a fazer bonecos de madeira a canivete, e flautas de cana para vender aos turistas. O anexo do solar está fechado, a cumeeira mestra já ruiu, e quem recebe o viajante é uma assistente que anda por ali, de mau feitio e pior catadura. Logo lhe dispara a novidade da morte do feitor.
Antigamente o Gastão habitava estes anexos e olhava pelo conjunto. Ele era neste lugar a única coisa viva e queixava-se do IPPAR, e das águas no telhado, dos roubos das imagens e da segurança escassa. Mostrava ao viajante as palmeiras do jardim, as japoneiras em flor quando era o tempo, levava-o à mãe-de-água de pedra à beira do ribeiro, nas terras que um fidalgo arrematou ao fisco à vinda do Brasil, há muitos anos atrás. Tinham sido confiscadas a um marrano qualquer pela Santa Inquisição.
Subia depois ao belvedere, virado às doçuras do poente, e mostrava o salão de honra nos altos do torreão. Era um deslumbramento inusitado, olhava o viajante a paisagem lá fora e não acreditava no que estava ali, à frente dos seus olhos. O tecto era um céu de caixotões pintados, com o brasão do fidalgo no lugar central. O resto em volta eram painéis de santos e naturezas mortas. E tão mortos estavam, as naturezas e os santos, que uns prometiam a ruína e as outras já desabavam, comidas da humidade. O todo apoiava-se nos cantos em anjos-cariátides, empenachados como índios do Brasil.
Finalmente o Gastão conduzia à capela um viajante estonteado, cativo do esplendor dos ouros, do jogo das simetrias barrocas, dos exotismos da flora mineira, com crocodilos, e palmeiras e coqueiros. A Senhora da Penha de França lá estava em apoteose, entre prodígios de arte e opulência, cercada de querubins, envolta em festões e grinaldas. À direita uma porta a fingir, reflectindo a entrada verdadeira na parede da esquerda. E em cima, à esquerda, uma janela pintada, a espelhar a verdadeira, que à direita abria para a ruela.
Depois contava ao viajante a história do fidalgo, que ali se mostrava em dois retratos de tamanho natural. Dum lado o escarlate da labita cortesã, do outro o hábito escuro das ordens que tomou, já sexagenário. Luís de Figueiredo Monterroyo foi-se ao Brasil, ao ouro, no tempo dele. Era capitão da armada real e provedor dos quintos de el-rei em Vila Rica de Ouro Preto, nas minas de Sabará. E à desmedida fortuna acumulava uma filha, a mulatinha Angélica, que fez numa escrava da Mina por quem tomou paixões. "Mercê que fez Nossa Senhora no Instituidor, vendo-se em perigo de morte no sertão do Brasil, em jornada de 900 léguas às Minas de Ouro". E o Gastão mostrava, num ex-voto, um dragão pintalgado, a soprar fogo ao fidalgo em terror. "Milagre que fez Nosso Senhor, no mar da Bahia...". E era um barco a adornar, a vela já perdida, o fidalgo no convés a amparar a mulatinha.
Ao ver-se em aflições, implorou D. Luís a protecção da santa, jurou construir-lhe uma capela que não tivesse igual. Em 1727 cumpriu-se o voto aqui, ao lado dum solar que ninguém concluiu, e dum convento franciscano que não chegou a existir. Onde o meu cavalo parar, aí o santuário hei-de levantar. O cavalo é que escolheu este lugar, concluía o Gastão, antes de mostrar ao viajante, num livro dum letrado, que a mulatinha se finou solteira sem deixar descendência, no ano em que assaltaram a Bastilha. E que o Solar dos Brasil é testemunho da boa aplicação em Portugal do ouro de Sabará.
Agora o Gastão foi-se embora e com ele a sorte deste viajante, que se limita a uma ronda exterior do solar dos Brasis. O IPPAR pôs-lhe um telhado novo, e trancou as portas e janelas com grades de ferro chumbadas na ombreira.
Ao contrário do letrado, o viajante só vê neste lugar um tempo triste da história, que deixou aqui um túmulo, mais um, onde embalsamaram Portugal. Chegavam rios de ouro nos porões, a um país sangrado pelo império. E acabavam aqui, neste espavento, sem deixar outro sinal nas vidas. Mas este viajante nunca o disse ao Gastão, e ele foi-se embora sem saber a verdade. Ao menos foi em paz. (...)".
[PORTUGALMENTE - Peregrinação da Lapa a Riba-Côa, Ed. Âncora e Fund. Vox Populi, Lisboa, 2012]