quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Adagiário - 7

Comadre andeja, não vou a parte que a não veja.

Adagiário - 6

Quem quer dar, pau acha.

Adagiário - 5

Em cama feita, qualquer um se ajeita.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Ar do tempo - I

A arte segue sempre o ar do tempo, se antes o não antecipa. Enquanto expressão humana, nela se repercutem todos os aspectos da vida dos homens: religiosos, científicos, sociais, políticos, filosóficos, económicos, técnicos e materiais. E a sua história é uma eterna hesitação, quando não um conflito, entre polos antagónicos: o claro e o escuro, o apolíneo e o dionisíaco, a razão e o sentimento, o equilíbrio e a perturbação, o objectivo e o subjectivo, o conteúdo e a forma, a realidade e o sonho, a ordenação e o caos, o exterior e o interior, a certeza e a dúvida, a materialidade e a transcendência, o racionalismo e o seu contrário. Em cada período, segue o factor dominante. E esta ciclicidade é particularmente visível na literatura.
Deixemos de lado os tempos medievais, os últimos de fundo popular genuíno, que percorre outros caminhos. No Renascimento o homem conheceu globalmente a geografia do planeta. O sol foi o centro do sistema planetário. O antropocentrismo substituiu o teocentrismo medievo. O ideal estético era a harmonia e a justa medida clássica. O primeiro Classicismo foi um tempo do equilíbrio, da razão e do concreto. A própria criação artística obedecia a uma fórmula.
(...)

domingo, 26 de setembro de 2010

Calceteiro

Trouxe de Itália o soneto. Mas porém deles fazia como quem calceta ruas. Ora a maço, ora a martelo.

sábado, 25 de setembro de 2010

Portugalmente - 76

(...)
9
Quem vem dos lados da Lapa, como é o caso deste viajante, e abriu os olhos ao mundo a espreitar a brutidão das serranias do demo por onde nem Cristo andou, por força fica encantado em terras de Riba-Côa.
Embora estafado da jornada, o viajante veio no seu vagar, flutuando no requebro feminino das colinas e das charnecas que avistam a Marofa. E ao chegar a um cruzamento decidiu-se pela estrada de Escarigo, Almofala, Malpartida, Vale da Mula, estranhas terras de nomes peregrinos. Andou por sítios em que Espanha e Portugal parecem a mesma coisa, se alguma vez foram coisa diferente. E não deu o tempo gasto por mal-empregado, embora só tenha chegado a Almeida à hora do crepúsculo. Por trás da silhueta escurecida do burgo havia um céu pintado de cor-de-rosa e o dia estava a morrer.
O viajante não é versado em crepúsculos, mas já se tem deixado impressionar. Enquanto foi menino, na idade em que tudo se aprende, o pôr-do-sol era sempre atrás do monte, nas costas da serrania. E se não trouxesse agora tanta pressa, o mais certo seria ter parado.
Assim não foi. Passou a deslado da estacada, espreitou de fugida as quinas aguçadas de revelins e baluartes, e seguiu adiante. Ainda lhe veio à lembrança a explosão dos paióis e a destruição de Almeida, no tempo das invasões. Mas mesmo assim não parou, que era outro o seu destino. E lá seguiu estrada fora, na direcção da fronteira.
Tanta lida para tão pouca vida, é o que sugere o tardio da hora e a dureza da jornada. Depois do serão de ontem à noite, que foi a dádiva última do pai dos pobres, o viajante levantou-se cedo. Tinha à espera o seu anfitrião, disposto a mostrar-lhe Almendra e o mais que o viajante não esperava encontrar.
A aldeia é hoje uma princesa singela. Mas já foi rainha em Riba-Côa, quando as ruas, e as casas todas que há nelas, fervilhavam de força de trabalho e bocas para alimentar. Foi sede municipal, teve um façanhudo forte de que hoje não há sinais, e uma prisão a que levaram as paredes, por falta de prisioneiros. E como era cá da terra o dono dos filmes todos, que os distribuía no país inteiro, chegou a haver um cinema com entrada graciosa, coisa que noutros lugares nem sonhada. Agora deixou de haver, porque a liberdade à solta é bicho que se tresmalha. Por libertinagens várias, deixaram de vir as fitas.
No seu tempo foi Almendra celeiro de cereais, e de garrobas para os gados. Teve lagares e moagens, e uma fábrica de azeites que os seus donos levaram à ruína. Quando as latas de sardinha portuguesa, nos duros tempos da guerra, eram a ração da Europa inteira, de Londres a Estalinegrado, os traficantes da fábrica trocaram os bons azeites de Almendra por águas ruças e aditivos químicos. Houve gente que morreu envenenada e conserveiros falidos. Os operários foram para o olho da rua, a fábrica foi selada em alvoroço, e ficou desde então a enferrujar. Ainda hoje lá está, qual rainha destronada a lembrar glórias antigas, ao comprimento da estrada.
(...)

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Auto-frugalismo

ouviste falar?! Ou preferes depois queixar-te?

[A um amigo andarilho, que foi de férias para a Índia.]

Encore

A propósito de Trovas, que tornam a fazer falta.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Mais coisa menos coisa

Mais coisa menos coisa, foi aqui que um dia rebentaram os paióis da fortaleza, que derreteram Almeida. Saíram estes senhores para logo entrarem aqueles, que não chegaram a sê-lo, allons enfants de la patrie.
O rei, que não apreciava fumaradas, reunira a comandita e já estava no Brasil. Chamaram-lhe notável estratega.
Ao povo, abrigado num talude, mandou dizer que assim era o destino, assim é que estava bem.
Não era a verdade toda, mas logo passou a sê-lo.

Pesadelo

Os papagaios de serviço apregoam que a economia americana saiu da crise, o que é um sinal de esperança. Nada mais falso.
Com 20% dos americanos sem trabalho, com um déficit que desafia a imaginação e o mundo inteiro não financiará por muito mais tempo, com as castanhas do Iraque e do Afeganistão a rebentarem-lhe na boca, com o Tea-Party da América profunda a afiar as unhas ao presidente negro, com as finanças em ruínas e a administração em colapso, nem a América, nem o mundo com ela, encontrarão saída sossegada.
Não foi para isso que um tipo chamado Reagan inaugurou a folia, que um tipo chamado Bush elevou a pesadelo. Conforme mostrarão os próximos capítulos, depois das eleições de Novembro.

domingo, 19 de setembro de 2010

Refrão

O pargo estava no ponto e a bola na tv até corria bem, com os lampiões a ganhar. O que me deprimia era o casal em frente.
Trinta e tal anos, uma filhita pré-adolescente, o raspejar duma colher no prato e um silêncio de sepulcro a dividi-los.
- Ao menos um estralejar de hormonas! - matutei. - Nem esse pouco?!
Foi quando a rapariguita me trouxe à realidade e se pôs a trautear:
- Olha a bola, Manel, olha a bola...
Ainda agora me interrogo como é que soube o meu nome.

Adagiário - 4

Cabra ruiva, o que faz, cuida!

[Confirmo que assim é. E atesto com cicatrizes.]

Adagiário - 3

A rico não devas, a pobre não prometas!

Transição

Quem te alerta, bom amigo é.
Quer estejas de acordo ou não!

sábado, 18 de setembro de 2010

Inverno bom só no Verão

A actividade editorial, (e a literatura digna desse nome), foi em tempos uma camisola, pela qual boa gente deu o coiro, com proveito geral. Havia editores que eram uma marca de água, uma garantia de qualidade.
Mas agora já deixou de o ser, e a sua recente concentração em mãos de comerciantes, que apenas visam o lucro, está aí para o confirmar. De acordo com as novas regras, não é indispensável que uma coisa exista para a tornar realidade; basta que se fale dela, e o deus mercado encarrega-se do resto.
Pelos vistos assim é também com a literatura. O novo romance de João Tordo já era top de vendas, mesmo antes de ser lançado oficialmente, com auras de epifania. E outras ameaças há no horizonte.
O jovem autor sentenciou a propósito, falando com a jornalista: Existe um cânone em Portugal que endeusa certos escritores e sacraliza a escrita, tentando fazer dela uma actividade de deuses e não de homens. (...) A nova geração de escritores tem que fazer tudo para o reformular. Isto enquanto a jornalista destacava a importância que (o autor) dá ao poder da narrativa, em detrimento de artifícios e metáforas de linguagem.
O crítico António Guerreiro veio pôr alguma água na fervura. Referindo a máquina narrativa, reconhece no romance um grande domínio dos códigos e requisitos do género a que pertence. Acrescenta no entanto que este romance responde às exigências de um thriller, mas aliena-se das exigências literárias. (...) Porque não há nele nenhuma espessura.
São exactamente aquelas exigências que a jornalista chamou artifícios e metáforas de linguagem, lá no linguajar dela. Uma e outro desconhecem, pelos vistos, o mais elementar: que a linguagem da literatura é diferente da linguagem comum, normalizada e unívoca. É de natureza conotativa, desviada, não referencial. Entre outros, é desse modo que a arte chega à pluri-significação, que lhe permite sugerir mais do que diz, e dizer muito mais do que afirma. Sob pena de não ser o que é.
Eu não li, nem tenciono ler o livro. Já lhe sofri a receita, e o travo, e a azia. Se o autor considera que a literatura é uma noz que só tem casca, faz ele muito bem. A imbecilidade ainda não paga imposto. Não prometa é reformular uma coisa de cuja existência nem suspeita.
E a multidão dos leitores, que das nozes com a casca se contentam, faz ela ainda melhor. A quem não dispõe de dentes, de que servia o miolo?
No entretanto, a questão fulcral continua a ser uma: a quem serve esta literatura?

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Vá lá!

Sai de casa e inebria-te!
Ou pelo menos comove-te!
Ou pelo menos emociona-te!
Ou pelo menos perturba-te!
Ou pelo menos encanta-te!
Ou pelo menos erudita-te!
Ou pelo menos reforma-te!
Ou pelo menos aplica-te!
Ou pelo menos cosmopolita-te!
Ou pelo menos contemporaniza-te!
Ou pelo menos elucida-te!
Ou pelo menos diverte-te!
Ou pelo menos distrai-te!
Ou pelo menos interroga-te!
Ou pelo menos aliena-te!

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Críticos

Já um dia aqui se falou do prémio literário José Saramago 2009. Para dizer, em suma, que os embondeiros fazem mais falta, vivos, nas paisagens do mundo, do que imolados ingloriamente à pasta de papel. Que este romance é um arado, que em lugar de lavrar vai fazendo riscos pelo chão; ou a mó andadeira de um moinho a fingir, que mói, mói, mói, mas não deita farinha. Porque isto da literatura não é nada trigo limpo e farinha amparo, como boa gente pensa e o santo mercado exige.
O jovem autor voltou agora à carga com um trabalho novo, sobre o qual diz o crítico do Expresso estarmos perante um thriller, sujeito a um fator perverso. É a boa recepção que teve o anterior, o premiado, "construindo" o autor como uma das grandes revelações da literatura portuguesa, na ficção narrativa.
Isto por haver um desajuste gritante entre as auréolas antes "construídas", e a realidade do trabalho actual, porque não há nele nenhuma espessura.

Se projetarmos neste romance as aspirações literárias que lhe têm sido atribuídas, ele revela-se vazio e nem deixa que assomem as virtudes que lhe são próprias. Em suma: falha-se o objecto.

No final (...) do texto nada resta porque não há nele qualquer opacidade.

Em nenhum momento ele se fecha sobre si, de modo a que se possa ler outra coisa diferente daquilo que ele quer dizer.

(...) uma intriga que até parece ter sido engendrada para ser contada por outros meios.

Já um crítico do Público e outros espaços do meio, enquanto afina as trombetas, considera este o melhor dos romances do autor.
Para que nem tudo se perca, vamos agora saber: se englobarmos nós o júri do prémio Saramago, que invocou o nome dum deus em vão, quantos papagaios palradores povoam a peripécia?

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Peregrinação

Tomemos o caso do Fernão Mendes Pinto, agora reeditado.
O homem que fala dirá da Peregrinação que ela nos escancara uma rara visão sobre o que fomos, aquilo que vivemos e fizemos, em que é que nos consumimos e gastámos. E que só isso esclarece aquilo que hoje somos, e o que devemos fazer.
Um papagaio falante diz-nos que esta obra conta as fantásticas aventuras do seu pícaro autor, nas partes da Índia aonde foi.
Por cada homem que fala, há nove papagaios palradores.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Tabuleiros

Convirá sumamente destrinçar entre o homem que fala e o papagaio falante. Nada mais difícil e nada mais proveitoso.
O homem que fala elabora um pensamento, partilha concepções novas, oferece pistas de compreensão do mundo. Ilumina a escuridão que nos afoga.
Já o papagaio falante nunca arrisca. Prefere as águas turvas, ambíguas, movediças, donde espera sair de pés enxutos. Quando alguma coisa afirma, logo em seguida expõe o seu contrário, não vá perder nalgum dos tabuleiros.
O homem que fala acende uma luz própria, diz o que tem de ser dito.
O papagaio falante reflecte um sol alheio. Diz o que lhe encomendaram, ou o que lhe convém que seja dito.
O homem que fala ajuda-nos a pensar, mesmo se erra. Empurra-nos para a análise, estimula o espírito crítico, desperta a consciência. Dá-nos armas de defesa.
O papagaio falante convida-nos ao sono e quer-nos a ruminar. Usa cortinas de fumo e sabe muito bem o que é a alienação. O seu fim último é deixar-nos desarmados.
O homem que fala persegue a razão e a objectividade.
O papagaio falante foge delas, manuseia paixões e as suas manhas obscuras. Cultiva, com eufemismos, a parte vaga das coisas. E reduz a realidade às formas com que labora.
Ao contrário do homem que fala, o papagaio falante é multifacetado, pelas múltiplas razões por que chegou a sê-lo: a solidez da carreira, a subserviência ao poder, a humana sobrevivência, a indisposição mental para outra coisa.
O homem que fala cria, o papagaio falante apenas presta serviços: no púlpito, na academia, na tribuna, nos meios de comunicação, no foro, no palco, nas artes, (ah, nas artes!), nas tardes de domingo, nas segundas de manhã...
Um quer romper-nos o cerco, o outro existe para o perpetuar.

domingo, 12 de setembro de 2010

Ah!

Ah o que eu não dava para ter acompanhado os últimos cem anos do império de Roma!
Ah a luxúria do sangue do gladiador núbio, a esguichar, espesso, da carótida escura!
Ah o magnífico ranger duma quadriga, a desconjuntar-se na curva do forum!
Ah a escarninha risada do vândalo de barbas, a jogar à sueca à sombra do coliseu!
Ah o rugir da turba apinhada no circo, suspensa do polegar dum deus de carne e osso!
Se eu tivesse acompanhado os últimos cem anos do império de Roma, já conhecia agora o restante da história. E escusava de me pôr para aqui a adivinhar.

Conspiração, dizem eles!

1 - O que é que fez implodir o edifício 7, a cem metros das torres, e que nenhum objecto voador atingiu?
2 - O que é que fez fundir e colapsar o aço dos pilares, suporte principal de toda a estrutura das torres? A combustão do querosene das turbinas não gera mais que mil e tal graus, o que não é bastante. Mas a termite pode ir além dos 3000 ºC!
3 - Que objecto voador atingiu o Pentágono? A parte menos destrutível dum avião comercial são os motores, que incorporam ligas particularmente resistentes. Porém o que nos mostraram foi um buraco redondo, sem mais danos laterais. Um míssil de cruzeiro podia tê-lo feito. Um simples avião é mais que duvidoso.
4 - A vala que apareceu na Pensilvânia é o lugar onde um avião se despenhou, ou é trabalho dum catrapilo? É que, se não for, parece.
5 - O NORAD é um serviço de vigilância e controle do espaço aéreo americano, de irrepreensível eficácia. Não há notícia de que um objecto suspeito apareça no radar, sem ser de imediato interceptado por caças com uma prontidão surpreendente. O que é que falhou exactamente nesse dia, com tantos pardais à solta?
6 - Determina a lei que os destroços duma catástrofe só possam ser removidos depois de libertos pelos serviços de investigação e de justiça. Por que motivo estes foram removidos de imediato, postos a caminho das fundições de sucata do Extremo Oriente?
7 - A quem interessava mais, e a quem afinal serviu, o 11 de Setembro?
Um dia sabê-lo-emos, quando já não fizer falta.

Crime

O crime fez anos ontem.
Já são nove.
E outros nove passarão, até que o conheçamos.

sábado, 11 de setembro de 2010

Borda d' Água

E agora falta acabar as vindimas, pôr a fermentar o mosto, crestar ainda as colmeias e recolher as nozes. E decruar a restolha do nabal, que é o que sobra da ânsia das searas.
Depois há que apanhar as castanhas, tarefa de Saturno. E varejar as azeitonas, que hão-de manter acesa a luz do mundo.

Litografia

[Sá Nogueira]

Então a minha mãe voltava-se para a janela, creio que para ver melhor e não errar. Entalava o corpo da galinha nos joelhos, com a esquerda segurava-lhe a cabeça por cima da tigela, enquanto a mão direita lhe apontava, ao comprido da crista, o fio duma faca.
A galinha esperneava ao golpe na cabeça. E à medida que o sangue gotejava, tingia-se a malga de vermelho, até ela ficar apaziguada.
A mão que, às manhãs de gelo, me trazia à boca ainda adormecida uma colher de mel, era a mesma mão que manejava a faca.
E agora que eu já cresci, e me fiz velho, e descobri que todas as galinhas têm alma igual à minha, como é que eu resolvo isto?

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Catarse

Os tipos andaram o verão inteiro a furar o passeio, a abrir valas no passeio, a enroscar tubos negros no passeio, a despejar areia no passeio, a desenhar quadrados de cimento no passeio, e a pôr tábuas bailarinas a atravessar o passeio, para as pessoas poderem entrar em casa e não terem que dormir na rua. Encheram o verão de poeiradas, e a rua de poeiradas, e a escada de poeiradas, e os quartos de poeiradas, e até a gaveta das peúgas se cobriu de poeiradas.
Quando o cimento secava, os tipos arrancavam do passeio as cancelas de arame e traziam outra vez o compressor, e carregavam no gatilho do martelo pneumático, e punham-se outra vez a esventrar o passeio porque os canos e tal, a velhice era muita e isso, e a ferrugem ainda mais, derivado aos muitos anos.
De modo que um dia meti-me no carro, fartei-me de andar quilómetros por essa merda de estradas até encontrar uns montes onde não chegava a raiva do martelo pneumático a mastigar o passeio e a lixar-me os ouvidos. Lá fiquei.
Lá fiquei até dar conta de que as peúgas lavadas tinham acabado. As camisolas também já cheiravam mal, mas pior eram as putas das peúgas, quando abria o saco da roupa suja. Era uma coisa que me lixava o juízo, o saco da roupa suja cheio de peúgas podres.
Então lembrei-me da máquina de lavar e voltei para casa, cheguei há uns três dias. O passeio parecia a cara da lua nas imagens da Nasa, mas o compressor estava calado e assim. Não havia cancelas de arame nem tábuas a pendular, nem tipos de cigarro nos queixos, a piscar os olhos atarantados do fumo. De forma que aproveitei para entrar na garagem, a merda do elevador até subia. Atafulhei de peúgas a boca da máquina, dobrei as doses do pó e dos cheirinhos de plástico e deitei-me a dormir.
Ontem à noite carreguei as tralhas no carro. Meti lá dentro a televisão que deixou de dar imagens porque os cabrões me cortaram a antena, arranquei das paredes as gravuras e as reproduções e as serigrafias e as imitações baratas e coiso. A ideia era voltar para os montes logo de manhã, com o saco das peúgas lavadas e camisolas frescas e tudo o mais.
É certo que o verão vai acabar, e toda a gente sabe que os montes no inverno não são pêra doce. São uma porra muito complicada por causa do frio, por causa da chuva, por causa das flores que já não há na horta, à beira do poço e assim. Mas quando vemos um tipo sair de casa com o carro atafulhado de televisões, e molduras empilhadas, e sacos por tudo o que é sítio, ou é que o gajo se passou, ou tem alguma fisgada e está por tudo.
É muito bem capaz de ser verdade. Mas que merda é que se faz numa puta duma casa onde não há barulhos da televisão nem gravuras nas paredes?!
De manhã, ia a sair, dei com os tipos do capacete amarelo a remendar o passeio, a endireitar o passeio, a desenhar quadrados no passeio. Os cabrões tinham montado as cancelas de arame mesmo em frente do portão, e passaram naquilo o dia todo. Que era preciso deixar secar a massa e tal, e que sair só à tarde, lá muito para o fim do dia.
Puta que os pariu a todos, falando mal e depressa. Amanhã tiro a banheira cá para fora. E se ela resistir aos quadrados e aguentar com as livralhadas, as televisões e as molduras, meto por essas estradas à procura dos montes e estou-me cagando para os passeios deles. É que nem ao trabalho me dou de fechar a garagem!

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Fim do Verão

A vida em Portugal é tão precária, que a um suspiro do Outono se arreceia.
E as almas tão enfermiças, que às primeiras névoas se constipam.

Ecos da Sonora - XXIV

Uma coisa é a loucura, ou estultícia, que um humanista herético exaltou. O mesmo São Francisco só por esquecimento lhe não chamou irmã.
Outra coisa diversa é esta insânia em que nos querem a viver.

Linguagem

Qualquer sim-bolo integra. É o caso do pendão da confraria, dum hino nacionalista.
Já um dia-bolo apenas desintegra. Como sabe muito bem quem se mete com ele.

Riscos

Alguém disse, não sei quem: no espírito, carrego o pessimismo; na vontade, o optimismo sobra-me.
Nem mais.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Há quanto tempo...

Sim, há quanto tempo não vias uma libelinha azul?!
[fotos de Ana Cardinal]

Contemporâneos - 2

A estética contemporânea é um modismo, uma onda, se não quisermos dizer uma gangrena. Integra o espírito do tempo que vivemos, o da chamada pós-modernidade. E tão passageiros são um como a outra.
Faz parte dum modo peculiar de ver o mundo e a vida nele, de ver a arte e as relações humanas, e o modo de fazer política, e gerir a economia, e exercer um poder, o da cultura. De ver, ou de impedir que se veja. Não lhe escapa nenhum aspecto da vida, nenhum recanto da sociedade. Nas artes plásticas e performativas, na literatura, na música, no teatro, na dança, é duma vera enxurrada que se trata.
Cada tempo da história teve um espírito seu, sempre assim foi. Este é o de hoje, e é composto dum misto de cinismo e despudor, de efemeridade e caos, de hedonismo e de vazio, de provocação e desfaçatez, de destruição e de descrença, de desespero e desordem, de relativismo, de excesso, de irracionalismo.
Corresponde ao fim da linha em que se encontra a elite burguesa dirigente, enfim só e globalizada, exaurida e esgotada, sem soluções para o mundo absurdo que engendrou. É um fruto do endeusamento do mercado como valor supremo.
Os figurantes da cena contemporânea não procuram emoções estéticas, são agentes de mercado. Nem ela existe para gerar significados, antes para fazer negócios. Vive em circuito fechado. Do público não espera espírito crítico, uma vez que lhe reserva o papel de béstia ruminante.
O criativo contemporâneo capturou o estatuto duma vaca sagrada. Segrega arte porque ele próprio o afirma, enquanto larga poias pela rua. O seu vulto de iluminado e as respectivas criações são indiscutíveis, face a tamanha ignorância e tacanhez. E o público, que é bem-mandado, torce o nariz e silencia.
O distante Wahrol, que como ser humano era um escroque e como artista um farsante, foi o primeiro papa deste evangelho apócrifo.

Cavaco

O nosso Presidente andou pelo Alentejo, a recomendar que os jovens empresários se entreguem à agricultura e ao turismo rural.
Quem havia de dizer que um aprendiz de feiticeiro viria ressuscitar as nossas terras, depois de lhes ter cavado a sepultura, na década dourada do oásis?!

Maputo

Os motins da carestia e da fome no Maputo hão-de parecer, aos beaux-esprits, efeito simples de disfunções locais. Infelizmente não são.
Hoje só há fenómenos globais, resultantes de causas inelutáveis: escassez de energia barata, irregularidades climatéricas, colheitas deficitárias em especial nos cereais, insuficiência de stocks, especulação desenfreada nos mercados alimentares, desregulação da economia em benefício último de cleptocratas.
A cadeia parte sempre pelo elo mais fraco. Mas isso é apenas o começo.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Contemporâneos - 1

Em 2007, uma criação do génio plástico britânico Damien Hirst foi leiloada pela Sotheby's por 13 milhões de Euros. Hirst tinha então 42 anos, e nunca uma obra dum artista vivo atingira um tal valor no mercado da arte.
A peça chamava-se Lullaby Spring, e era nem mais nem menos do que um armário metálico de produtos farmacêuticos cheio de comprimidos pintados à mão.
Para o observador corrente, que de longe tropeça nas questões da expressão artística, uma tal circunstância perturba o senso comum, semeia perplexidades e convida à reflexão.
Nos anos 80, Hirst conheceu Charles Saatchi, um homem de negócios que era dono de uma das mais importantes agências de publicidade britânicas. E parece que as cabotinices artísticas de um casaram na perfeição com o sentido publicitário do outro. Em bom rigor, juntou-se a fome com a vontade de comer.
Porque logo em 1995 Hirst recebeu o prémio Turner, atribuído anualmente pelo museu Tate Britain. Ora o prémio Turner fora instituído por um grupo de mecenas criado por Saatchi, em colaboração com o Tate. A obra premiada chamava-se Mother and Child, e era um vitelo cortado ao meio, imerso numa solução de formaldeído.
Três anos depois a cotação artística de Hirst atingia os píncaros da fama, e o seu volume de negócios aumentava mil por cento. 100 € investidos numa obra de Hirst em 1997 valiam cerca de 700 € em 2007.
Entre as muitas perplexidades suscitadas pela arte contemporânea, a sua natureza de negócio especulativo não é a menor. Faz lembrar um subprime das artes. Na realidade, tudo nela parece funcionar num circuito fechado, que tanto mais atrai especuladores e crentes quanto mais inflaccionado for o valor das peças. Artistas, marchands, comissários, galeristas, coleccionadores e especuladores constroem uma rede de influências que legitima a arte e define o seu valor.
A Art Review edita anualmente o Power 100, onde cataloga as cem personalidades mais influentes no mercado da arte contemporânea. Em 2007, 19% eram artistas (com Hirst em 6º lugar); 31% eram coleccionadores; e 22% eram galeristas.
Assim é que a garantia de qualquer comprador não reside no valor do artista, nem sequer da obra. Antes se apoia na solidez da rede de frequentadores e devotos. Muito mais que a própria obra, vale quem dela se ocupa. E para ter êxito no mercado da arte não é necessário ser artista, pois que isso está ao alcance de qualquer espontâneo. O que é indispensável é saber vender-se. A desfaçatez transgressiva, o culto da seita privilegiada, o martelamento mediático e a rede de influências sociais e financeiras são os ingredientes do milagre.
O comprador da obra de arte contemporânea não oferece a si mesmo uma obra mas um preço. E quanto mais elevado o preço for, menor será a capacidade de a criticar. Porque os críticos, os especialistas, os entendidos na coisa não são mais do que pagens avençados, numa corte cujo rei vai nu.